Do Sudão para o Chade, a arte e resiliência de Oussam Abdallah Mahamat

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Gerson Brandão, Por dentro da África

Oussam Abdullah Mahamat Khamis, conhecido como Mestre Oussam, é um talentoso pintor sudanês e professor de artes plásticas que atualmente vive em um campo de refugiados na cidade de Iriba, no Chade, após deixar o Sudão em um caminho de arte e resiliência.

Nascido em abril de 1988, no vilarejo de Abu Qamra, em Darfur do Norte, cresceu em meio às adversidades impostas pela aridez do clima e pela escassez de água. Apesar das dificuldades, sua família manteve-se dedicada à criação de cabras e camelos — um ofício exigente, que frequentemente demandava longas caminhadas, por vezes de dias ou até semanas, em busca do alimento necessário para os animais.

As jornadas longas em busca de água e alimento para os animais são uma prática comum não só nas zonas desérticas e semiáridas do Sudão, mas em toda a região da África Subsaariana, onde há séculos agricultores e pecuaristas tentam de maneira justa dividir pacificamente o acesso aos recursos escassos hídricos da região.

Sudanese refugees wait in line to receive food in Adre, near Chad’s border with Sudan. © UNHCR/Nicolo Filippo Rosso

Entretanto, não são raras as ocasiões em que conflitos surgem — seja quando os animais, aproveitando-se de momentos de distração dos pastores, invadem plantações vizinhas, seja quando as mudanças climáticas, cada vez mais frequentes, desregulam os ciclos naturais das chuvas.

Vida de Oussam

Aos 8 anos, os vales e dunas ao redor da aldeia eram a vida cotidiana do pequeno Oussam, mas a seca tornou as condições de vida cada vez mais difíceis, o que levou a família a se mudar para a cidade de El Flasher, capital de Darfur do Norte.

Em El Fasher, Oussam iniciou sua trajetória escolar. Concluiu o ensino fundamental, mas, pouco antes de terminar o ensino médio, protestos organizados pela população local — que exigia melhores condições de vida e mais investimentos governamentais em Darfur — resultaram no fechamento das escolas.

A resposta do governo central às manifestações pacíficas foi brutal. A guerra eclodiu no Darfur quando a milícia Janjaweed (homens a cavalo), formada e treinada pelo próprio governo, foi mobilizada para reprimir a agitação social com violência extrema. O conflito teve início em 2003, quando a maioria da população local — composta majoritariamente por grupos étnicos negros — se insurgiu contra o governo, denunciando décadas de discriminação e o abandono da região, rica em reservas de ouro, mas marcada pelo subdesenvolvimento.

Em retaliação, o governo, dominado por árabes, lançou mão das milícias Janjaweed para sufocar a rebelião, mergulhando a região no caos. As tensões étnicas se intensificaram, desencadeando uma onda de violência que gerou indignação internacional. No entanto, nem a chegada de forças de paz das Nações Unidas nem os mandados de prisão emitidos por tribunais internacionais contra membros do regime foram suficientes para restaurar a ordem em Darfur.

Os janjaweed cometeram vários crimes contra o povo do Darfur. Casas foram queimadas, estupros em série e milhares de pessoas foram assassinadas e enterradas em valas comuns. A palavra humanidade perdeu o significado em todos os três estados de Darfur!

Oussam, sua irmã e seus pais foram buscar refúgio no estado de Aljazeera, a cerca de 900 quilômetros de El Fasher. Enquanto isso, outra parte de sua família foi viver no campo de deslocados de Abu Souk, estabelecido por organizações internacionais, não muito longe de El Fasher.

Gradualmente, ele conseguiu reorganizar a vida na Jazeera, onde concluiu os estudos secundários ao mesmo tempo em que se candidatou a uma vaga na prestigiosa Faculdade de Belas Artes da Universidade Sudanesa de Ciência e Tecnologia. Após ser aceito na Faculdade de Belas Artes em 2005, Oussam partiu novamente em uma nova jornada, dessa vez sozinho, mas carregando grandes sonhos e esperanças, de ir viver na capital sudanesa Cartum.

Arte como refúgio e abrigo

A arte tornou-se um refúgio para Oussam diante das duras realidades da guerra. A vida em Cartum era especialmente difícil para pessoas oriundas de Darfur. Durante o dia, ele frequentava a universidade; à noite, trabalhava para custear os estudos. Em meio a circunstâncias cada vez mais desafiadoras, conseguiu concluir o primeiro ano, mas precisou interromper a formação acadêmica por não conseguir conciliar a rotina universitária com o trabalho, essencial para sua sobrevivência na cidade.

Após dois anos afastado da universidade, Oussam conseguiu retornar em 2008, utilizando as economias obtidas em diversos trabalhos — da construção civil à venda de frutas e verduras no mercado central. Apesar da discriminação e das inúmeras dificuldades enfrentadas, formou-se na Escola de Belas Artes em 2011. Durante todo o período em Cartum, não teve contato direto com a família. As viagens durante as férias eram inviáveis — proibidas pela guerra ou impossibilitadas pela falta de recursos.

O reencontro com os familiares só aconteceu em 2012, quando Oussam retornou a El Fasher. Encontrou-os vivendo em campos de deslocados internos, após a destruição das casas pela milícia Janjaweed. Nada havia sido reconstruído. Nesse retorno, descobriu que muita coisa havia mudado: sua irmã mais nova havia se casado, seus pais haviam se divorciado e o pai havia partido para a Líbia em busca de melhores condições de vida. Oussam nunca mais o veria.

Leia também: Chade: Solidariedade africana contra a indiferença do mundo

Até 2015, viveu com a mãe em acampamentos nos arredores de El Fasher, apoiados por organizações internacionais. No entanto, a crescente deterioração da segurança obrigou-os a cruzar a fronteira com o Chade. Desde então, a família vive como refugiada no campo de Iriba, no Chade.

Ele entrou em contato com o estado chadiano pela primeira vez em 2014, buscando maneiras de organizar uma exposição de artistas sudaneses que contam a vida e a história do Sudão por meio da arte. Desde que fixou residência no campo de refugiados, Oussam tem dado aulas em escolas, ensinado crianças refugiadas. Com pincéis doados nas mãos, transformando incerteza em força.

Apesar dos recursos extremamente limitados, da falta de um estúdio adequado e das dificuldades para obter os materiais necessários, vivendo em um lugar onde tinta e pincéis não são artigos de primeira necessidade. Ele continua produzindo, dizendo que: “a arte reflete uma vontade de sobreviver, um caminho para um futuro melhor!”

A arte preserva a memória de um determinado local, de um tempo ou de um povo porque cada pintura ou esculturas são documentos que podem ser guardados por muitos anos.

Hoje, Oussam é casado e pai de dois filhos. Sua esposa, órfã de guerra, perdeu os pais em uma das muitas fases do conflito que continua devastando o Darfur e outras regiões da África. Apesar das dificuldades do cotidiano no campo de refugiados, ele persiste em sua missão de pintar e ensinar, guiado pela convicção de que a arte tem o poder de transformar a sociedade e ajudar a curar os traumas deixados pela violência.

Oussam segue sonhando, como no dia em que deixou Jazeera rumo a Cartum. Sonha com mais recursos para criar, com um ateliê próprio, e, quem sabe, um dia organizar uma exposição internacional — um espaço para trocar ideias com outros artistas sobre o papel da arte na construção da paz.

  • Dica: 

Aproveitando a temática relacionada à migração e deslocamentos, Por dentro da África indica duas obras do Nobel de Literatura  Abdulrazak Gurnah. Nascido em Zanzibar, Gurnah foi obrigado a fugir da Tanzânia aos 18 anos devido à perseguição a cidadãos árabes durante a Revolução de Zanzibar. A temática de refugiados é a base de todo seu trabalho. 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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