“Muitas vezes, a mídia e ONGs reforçam uma ideia errada sobre as africanas”, diz Nadifa Mohamed

0
647
Flupp Rio de Janeiro 2016 - Foto de Natalia da Luz
Flupp Rio de Janeiro 2016 – Foto de Natalia da Luz

Natalia da Luz, Por dentro da África

Rio – Ela cresceu em Hargeisa, Somalilândia, região autônoma na Somália, e fez deste cenário a história de um livro premiado. Em o Pomar de Almas Perdidas (The Orchard of Lost Souls), Nadifa Mohamed apresenta, a partir de três mulheres, o cotidiano e a cultura de forma tocante, lembrando como a guerra afetou a vida de seus conterrâneos.

Assista ao vídeo abaixo!

“Eu tinha que falar sobre a Somália porque meus pais foram afetados pela guerra, minha vida foi atingida pela guerra. E isso trata muito da política. A política está em tudo. Qual emprego você tem, onde você vive, sua segurança, tudo é política – disse, em entrevista exclusiva, a escritora somali que vive em Londres e conversou com o Por dentro da África, na Festa Literária das Periferias 2016, no Rio de Janeiro.

A história do livro é contada a partir da menina Deqo (uma criança abandonada que vivia em um campo de refugiado), da viúva Kawsar (personagem preferida de Nadifa pela sua generosidade) e da soldada Filsan (que também era responsável por reprimir a rebelião que crescia no norte do país no final dos anos 80 e início dos anos 90. Ela combatia, mas também reproduzia muitos atos de violência).

Em 1987, uma crise econômica abriu espaço para o crescimento de uma oposição armada na Somália. Três anos depois, um grupo adquiriu o controle de grande parte do território, dissolvendo o Estado somali existente.

Com o início da guerra civil em 1991, a Somalilândia conseguiu independência. Neste momento, ocorreu um lento processo de reconstrução de infraestrutura de Hargeisa e de outras cidades da região. Na obra, Nadifa conta detalhes da guerra e um pouco mais sobre a região autônoma de quase 5 milhões de habitantes.

Conheça a Somalilândia, pais que luta pelo seu reconhecimento internacional

“A nossa cultura é tudo o que fazemos, como nos comunicamos, as regras sociais. Eu gosto de colocar os detalhes nos romances, falar sobre o sabor de uma comida, descrever o estilo particular de uma joia… Eu não tenho um público-alvo, quero ser lida por pessoas que têm senso de compartilhar humanidade – disse a indicada ao Granta’s Best of Young British Novelists.

Protagonistas masculinos e femininos

BLACK MAMBAO primeiro livro de Nadifa foi Black Mamba Boy (2009), obra baseada nas experiências do seu pai, nos anos 30. As viagens da Jama, entre o Iêmen e o leste africano, mostram desertos, cidades, mercados, campos. Enquanto descobre o livro, o leitor vai absorvendo impressões da Somália, Eritreia, Sudão, Egito… Em algumas das páginas, há cenas de encontros de Jama com os homens de Mussolini na Etiópia e Eritreia, lembrando a investida fascista na África.

Em 1935, a guerra fez mais de meio milhão de mortos entre africanos e cerca de 5 mil baixas do lado italiano. Haile Selassie, imperador da Etiópia, fez um protesto na Liga de Nações, em 1936, contra o uso de armas químicas que atingiram seu povo.

Depois de Black Mamba Boy, Nadifa se dedicou aos estudos de uma parte da história do seu pais até construir suas personagens em O Pomar das Almas Perdidas. O livro, lançado em 2013, é uma coletânea de entrevistas que ela fez em Hargeisa. Muitas das memórias da guerra que estão na obra partiram deste encontro dela com mulheres de sua terra natal.

Imagem das meninas e da Africa

Como somali e africana, a escritora observa e questiona muitas das representações da África reproduzidas pela mídia e por organizações. Nadifa acredita que estamos em um momento de tentativas para persuadir pessoas para mudarem de opinião. Não no sentido dos fatos, mas de uma forma mais profunda, espiritual, refletindo sobre a sua participação no mundo.

Girls line up during a basketball drill in Mogadishu, Somalia. UN Photo/Tobin Jone
Girls line up during a basketball drill in Mogadishu, Somalia. UN Photo/Tobin Jone

“Precisamos informar as pessoas. Na visão da mídia e de muitas ONGs, a África continua sendo uma coisa ruim. Quando você vai para Londres, por exemplo, você vê, estampada em campanhas, garotas que precisam ser salvas, que precisam ser resgatadas antes de serem torturadas, abusadas. Isso é muito perigoso e reforça uma ideia errada sobre as meninas e mulheres do continente.”