Natalia da Luz, Por dentro da África
Em Ukrewe, uma ilha remota na Tanzânia, um grupo de 20 pessoas com albinismo gravou um álbum com mais de 20 músicas que servirão para romper barreiras e conscientizar o mundo sobre uma realidade vivenciada em algumas regiões do continente africano: a desumanização e ataques contra pessoas nesta condição.
“Compartilhar essas histórias revela o que esses indivíduos sofrem diariamente e, certamente, coloca muitos “problemas” que os cidadãos dos países mais desenvolvidos têm no seu devido lugar. Assédio, mutilação, estupro e assassinato de pessoas com albinismo acontecem com frequência aqui. “É necessário educar para superar preconceitos e mitos”, disse, em entrevista exclusiva ao Por dentro da África, o produtor musical Ian Brennan, responsável pelo projeto White African Power.
De acordo com o site da ONU ‘Pessoas com albinismo: Não são fantasmas, mas seres humanos’, o albinismo é uma condição rara, não contagiosa, geneticamente herdada, que ocorre em todo o mundo. Geralmente, resulta da falta de pigmento de melanina no cabelo, pele e olhos, causando vulnerabilidade à exposição ao sol, que pode provocar câncer de pele e deficiência visual severa. Os pais devem ter o gene para que ele seja transmitido aos filhos, mesmo que eles próprios não tenham manifestações da condição.
Hoje, 13 de junho, é o Dia Mundial de Conscientização sobre o Albinismo. Conscientizar as pessoas em todo o mundo é uma urgência, principalmente em países como Tanzânia, Burundi, Malawi e Moçambique, onde as pessoas com albinismo sofrem perseguição. Cabe lembrar que, em muitas áreas também do continente africano, os albinos são respeitados e reverenciados.
A prevalência do albinismo varia em todo o mundo. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, as estimativas oscilam de 1 em 5 mil para 1 em 15 mil pessoas na África Subsaariana. A Tanzânia tem a maior taxa com 1 para 1500, já na Europa e América do Norte, a estimativa é de 1 em cada grupo de 20 mil.
PESSOAS DA MINHA ALDEIA ME CHAMAvaM DE “ACORDO”, QUE SIGNIFICA “DINHEIRO”. ELaS SE REFERiam AO MITO DE QUE PARTES DO CORPO de PESSOAs COM ALBINISMO PODeriaM deixá-las ricas. —THEREZA PHINIAS
Em algumas áreas da África, a desumanização fortalece os ataques contra as pessoas com albinismo. Isso porque alguns acreditam que eles são seres ‘mágicos’ ou ‘fantasmas’. Por isso, elas são perseguidas e assassinadas para que partes do corpo sejam usadas em rituais. No mercado ilegal, segundo a Cruz Vermelha, um cadáver inteiro chega a custar 75 mil dólares. Crianças são vítimas preferidas devido à crença de que sua inocência tornaria os rituais mais poderosos.
Na Tanzânia, essa crença é muito forte e por isso Ian e sua esposa Marilena Delli, uma cineasta de Ruanda, escolheram a ilha Ukrewe para criar um álbum com pessoas que nunca haviam tocado instrumentos ou escrito músicas em suas vidas. Esse desafio se transformou em um álbum gravado em swahili, jeeta e kikirewe, línguas locais. Para ter acesso à ilha, ele o casal teve suporte da instituição Standing Voice, responsável por levar cuidados médicos e objetos para centenas de pessoas da comunidade como protetores solares e óculos de sol.
“Quase todos eles sofreram dificuldades incríveis. Muitos foram rejeitados e abandonados por familiares e expulsos de suas aldeias. Além de lutar contra a pobreza, muitos deles ainda enfrentam problemas graves de saúde”, lamenta o músico.
A ideia do álbum existe há muitos anos, mas, apenas no ano passado, Ian decidiu gravar com o grupo. Esse não é o primeiro projeto dele com temática que precisa ser debatida. Há dois anos, ele gravou com um grupo de prisioneiros do Malawi o álbum Zomba Prison Project, indicado ao Grammy. Saiba mais sobre o Zomba Prision
“Depois do Malawi, focamos neste projeto da Tanzânia e descobrimos que muitos deles haviam sido desencorajados até mesmo de cantar na igreja, um abrigo sagrado onde, nos tempos de escravidão, as pessoas geralmente podiam se expressar por, pelo menos, uma hora por semana. Nos tempos atuais, alguns deles tiveram essa liberdade negada”.
No centro da organização Standing Voice, o grupo recebeu os instrumentos antes da chegada dos produtores, mas Ian lembra que eles nem sequer encostaram nos instrumentos. Quando ele e a esposa chegaram, ainda estava tudo empacotado e a primeira coisa a fazer foi tirar as guitarras e baterias de dentro das sacolas para começar um workshop intensivo de duas semanas.
“Pedimos a todos que escrevessem, pelo menos, uma música como uma condição de sua participação. Em troca, oferecemos uma taxa modesta e uma refeição por cada dia. Outra coisa foi sugerir que cada um levasse um instrumento para casa para retornar com uma música nova. Surpreendentemente, eles retornaram com mais músicas e elas iam melhorando a cada dia”.
Apesar do pouco tempo de gravação e treino, o grupo fez muito progresso e foi ganhando confiança em suas vozes. Em suas composições acompanhadas de teclados, guitarras e instrumentos de percussão (feitos com garrafas de cerveja, baldes, tampas de mesa, panelas, arco e flecha, vassouras), há frases como “Eu sou um ser humano”, “A vida é difícil” e “Parem os assassinatos “. Frases fortes que expressam uma realidade compartilhada por todos eles.
QUANDO EU PROPUS ME CASAR COM MINHA ESPOSA, A FAMÍLIA dela NÃO ME ACEITOU. ELES DISSERAM QUE EU ERA UM “PORCO” E NÃO PODIA SER MARIDO DELA. FIQUEI FELIZ PORQUE ela DECIDIU FICAR COMIGO.
—RIZIKI JULIUS
White African Power foi lançado em 2 de junho e, no mesmo dia, cinco deles (duas mulheres e três homens) foram foram convidados para ir a Londres participar do Womad Festival, de Peter Gabriel, no final de julho. Nenhum deles tinha passaporte ou havia deixado o país antes.
“Não sabemos como será a apresentação disso ao vivo, mas independentemente de qualquer limitação técnica, é garantido que será especial, sem precedentes, histórico, memorável e único! Mais de 100 mil músicas são lançadas anualmente nos Estados Unidos. O que eles realizaram é simplesmente incrível e eles merecem reconhecimento pelo seu trabalho”.
OUÇA AQUI O PODCAST DO POR DENTRO DA ÁFRICA SOBRE AS MANIFESTAÇÕES DO ALBINISMO EM MOÇAMBIQUE