Por Ulrich Schiefer, Por dentro da África
(Artigo produzido em parceria com o Instituto Universitário de Lisboa)
Luanda – Quem pensa em sociedades africanas pensa em desenvolvimento: desenvolvimento como processo que está a acontecer, com mais ou menos sucesso, ou como processo que foi tentado e falhou, ou como processo, bem intencionado ou não, mas com consequências destrutivas.
A grande maioria, e especialmente as populações africanas, contudo, partilha a convicção que as sociedades africanas, como todas as outras, devem ser desenvolvidas. As sociedades hoje são todas constituídas como objetos de desenvolvimento. Como Brecht já disse em meados do século passado: o mundo de hoje só pode ser descrito às pessoas de hoje como um mundo que pode ser mudado.
De fato, pensar sociedades africanas sem pensar nas múltiplas intervenções externas com que estas têm que lidar não nos leva muito longe. Ou dito de outra forma: as dinâmicas internas das sociedades africanas não podem ser compreendidas se ignorarmos as condições externas que as influenciam. Ainda menos podem ser estudadas se as reduzirmos a objetos de desenvolvimento ou a vítimas de processos de globalização. E ainda mais longe ficamos de qualquer compreensão se as tratarmos como sociedades fundamentalmente iguais que apenas se distinguem por algumas diferenças mais ou menos folclóricas.
Portanto, nem a perspectiva que lhes confere o estatuto de vítima, nem o estatuto (heróico) sujeito histórico, permite ignorar as condições criadas por múltiplas intervenções externas. Para compreender melhor o conjunto destas intervenções externas podemos agrupá-las em quatro grandes áreas, o que permite contextualizar melhor as intervenções para o desenvolvimento.
Cada uma destas áreas, que denomino por complexos, é ocupada por um conjunto de agentes, ou organizações. Assim temos o complexo econômico, o complexo militar- segurança, o complexo desenvolvimentista e o complexo humanitário.
O complexo econômico agrupa as empresas de todos os tipos, como por exemplo, as indústrias (na África subsaariana na maioria extrativas), o comércio, entre outros. A industrialização no sentido de produção maciça de bens em fábricas, para o mercado interno ou para o mercado mundial, é pouco relevante na maioria das economias africanas.
E dada a abertura dos mercados (consagrada pelos acordos internacionais), que permite a importação de qualquer produto de qualquer origem, é extremamente difícil criar indústrias nacionais que sejam competitivas. O caminho do desenvolvimento, percorrido com mais ou menos sucesso por muitos países noutros continentes, que está subjacente a muitas teorias e ainda mais “estratégias de desenvolvimento”, e que consiste numa industrialização maciça, portanto, não parece muito plausível na conjuntura atual.
O complexo militar-segurança está em franca ascensão. Ocupa cada vez mais áreas das sociedades, nomeadamente partes crescentes das economias, por exemplo, através do controlo sobre recursos hídricos, recursos energéticos, e outros. Tenta controlar os movimentos das populações, os meios da comunicação, a investigação científica, as novas tecnologias, e outras áreas. Este complexo procura, cada vez com mais sucesso, a militarização e a securitização das sociedades.
Subverte e submete cada vez mais os outros complexos, nomeadamente o complexo humanitário que nasceu em direta colaboração com as estruturas militares e de segurança na Europa pós-guerra. Este complexo conseguiu, e consegue, um aumento notável das capacidades destrutivas das sociedades, bem como das suas capacidades repressivas, através de armamento, treino militar, formação de forças de segurança, etc. Se, de fato, contribui para aumentar a paz, a estabilidade, a liberdade, o bem-estar e a segurança, como não deixa de afirmar, requer uma análise detalhada e diferenciada que não cabe aqui.
Nas últimas duas décadas procura também, cada vez com mais sucesso, submeter o complexo desenvolvimentista. Onde há 50 anos o desenvolvimento de sociedades “subdesenvolvidas” ainda constituía uma justificação válida só por si, agora cada vez mais o desenvolvimento está a ser ligado e justificado através de questões de segurança – basicamente para controlar as migrações não desejadas e para combater o “terrorismo” – cada vez com menos sucesso.
O complexo desenvolvimentista, ou seja, o conjunto de todos os atores e organizações que pretendem produzir desenvolvimento, tem sofrido grandes transformações nas últimas cinco décadas. Tanto na sua constituição, nos seus atores, nas suas intenções declaradas e implícitas, no seu funcionamento, nas suas abordagens, nas suas justificações, nas suas produções teóricas e metodológicas, nas suas práticas e nas suas percepções. E ainda, nos seus impactos e consequências para as sociedades que constituem o seu objeto de ação.
Os seus objetivos originais, nomeadamente, apoiar países recém-independentes e pouco industrializados no caminho do desenvolvimento, entendido como crescimento econômico através de industrialização, tendo como ideia subjacente a criação de mercados para as economias dos países industrializados, ocupam cada vez menos espaço nos discursos políticos.
A impossibilidade da industrialização da maioria dos países subsaarianos tornou-se bem patente e levou a uma substituição do discurso e das estratégias: O combate à pobreza e à exclusão social encobrem mal a capitulação perante os objetivos de desenvolvimento, e demonstram a nova estratégia que visa a contenção tanto das migrações intercontinentais, como uma suposta imunização contra o vírus do terrorismo, que supostamente ataca de preferência os pobres e socialmente excluídos – mesmo que isso seja bastante discutível.
As mudanças reais na maioria das sociedades africanas no último meio século não são exatamente um testemunho de sucesso para as intervenções do complexo desenvolvimentista. As estratégias do complexo perante estes fracassos são múltiplas: desde a negação dos fatos à construção de cenários positivos, da mudança flexível das justificações, às lamúrias sobre a falta de recursos adequados, até à montagem de debates globais como exercício de marketing para garantir a continuação dos fluxos de recursos dos quais as organizações deste complexo dependem.
A atenção redobrada que se dá, por exemplo, à avaliação dos projetos de intervenção demonstra claramente a consciência da necessidade de aumentar a credibilidade das justificações das intervenções. Os apelos aos sentimentos e aos valores positivos das sociedades humanas (solidariedade, respeito pela dignidade, direitos humanos, entre outros) acompanham as campanhas de marketing e conseguem mobilizar muito boa vontade de muita boa gente.
O complexo humanitário nasceu destes sentimentos e da sua organização em moldes modernos, que criou os seus modelos, formatos de intervenção, as estruturas e modos de funcionamento e, mais importante, o seu volume e a sua escala de intervenção, na Europa devastada pela segunda Guerra Mundial.
Com populações deslocadas, extremamente traumatizadas, com as infra-estruturas físicas e o parque industrial e habitacional destruído, com a produção agrícola parcialmente destruída e insuficiente, o continente estava sob a administração militar. Neste contexto o complexo humanitário mobilizava boa vontade e recursos internacionais de vários tipos e, de facto, conseguiu atenuar o sofrimento causado por uma guerra devastadora e pela destruição maciça de populações por regimes totalitários.
Na África subsaariana o complexo humanitário costuma entrar em ação nas situações onde o complexo desenvolvimentista fracassa; portanto, nas conjunturas em que os atores do desenvolvimento fogem, em que as teorias de desenvolvimento são suspensas e em que guerras de todos os tipos, ou catástrofes naturais, ou as suas combinações, provocam crises humanitárias que exigem uma intervenção rápida para a sobrevivência das populações.
As intervenções mais habituais são a ajuda alimentar e os campos de refugiados, formatos entretanto já bastante testados, mesmo que as suas consequências e os seus impactos no médio e longo prazo sejam, em muitos casos, menos positivos. Quando a situação de emergência é resolvida, normalmente através de uma fase de transição, caracterizada pela reabilitação das infra-estruturas destruídas, regressa o complexo desenvolvimentista à ação e as teorias de desenvolvimento voltam a ser válidas.
Portanto, o desenvolvimento, em todas as suas dimensões, não é fácil de estudar, e ainda menos fácil de compreender, se não tomarmos em consideração o seu contexto. De que forma operam as interações entre estes quatro complexos, bem como entre eles e as sociedades africanas, e quais as consequências do conjunto destas intervenções sobre as sociedades, são questões fundamentais para a populações africanas – e não só.
Artigo desenvolvido pelo Curso de Estudos Africanos, do Instituto Universitário de Lisboa, para a parceria com o Por dentro da África. Saiba mais sobre o curso e a instituição aqui