“O governo quer intimidar todos nós”, diz ativista congolês

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Foto – Natalia da Luz em protesto no Rio de Janeiro

Natalia da Luz, Por dentro da África

Rio – Às vésperas do fim do mandato de Joseph Kabila, presidente da República Democrática do Congo, imigrantes e refugiados congoleses que vivem no Brasil foram surpreendidos com carta da embaixada de seu país após caminhada realizada no Rio de Janeiro, em 20 de novembro, um mês antes das eleições – que foram canceladas.

-O documento assinado pelo embaixador diz que manchamos a imagem do nosso país, mas não é verdade. Não queremos que nossos parentes e amigos sejam reprimidos pelo direito de manifestar opinião. Não queremos que o país continue sendo governado por um presidente que quer permanecer no poder por mais tempo do que deveria – disse, ao Por dentro da África, J.A, congolês que vive há 18 anos no Brasil.

J.A, que não se identifica por receio de represálias, destacou que congoleses que vivem no Brasil e em várias partes do mundo estão se mobilizando para pedir respeito à democracia. Segundo a Constituição do país, um presidente pode ser eleito, no máximo, duas vezes.

Kabila – Foto – Divulgação

Há 15 anos no poder, Kabila está em seu terceiro mandato (no primeiro, ele substituiu o pai; nos outros dois, foi eleito pela população). Em 19 de dezembro, o país de 80 milhões de habitantes deveria ir às urnas para escolher seu próximo representante, mas isso não vai acontecer.

Na semana passada, o governo afirmou que não há condições de realizar eleições antes de 2018 por causa da desatualização dos cadernos eleitorais, mas a oposição questiona essa versão, dizendo que o presidente quer apenas ganhar tempo. Somando os 15 anos de Kabila e do seu pai, que assumiu o poder após a queda de Mobutu Sese Seko, em 1997, eles alcançam 19 anos de comando.

“Há um sério risco de o país mergulhar na violência generalizada e no caos nos próximos dias, com repercussões potencialmente voláteis em toda a região”, disse, em comunicado à imprensa, o diretor-executivo da Human Rights Watch, Kenneth Roth.

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Dozens killed in Congo anti-government protest: UN

Nos últimos meses, de acordo com a Human Rights Watch, as tensões políticas aumentaram em todo o país à medida que líderes políticos e ativistas contra as propostas de mudanças na Constituição começaram a se manifestar.

“A luta é pela paz, liberdade e democracia na República Democrática do Congo”, diz ativista

Em relatório sobre o cenário político, a organização descreve que autoridades governamentais têm procurado silenciar a dissidência com ameaças e prisões arbitrárias. No leste, dezenas de grupos armados permanecem ativos. Muitos dos seus comandantes lideram grupos que foram responsáveis por crimes de guerra pelos quais poucos foram responsabilizados.

Ameaças ao direito de protestar

Em setembro, segundo a ONU, cerca de 100 pessoas foram mortas em protestos na capital Kinshasa. K.M, que vive no Brasil há 2 anos, diz que a repressão vêm se tornando frequente no país e teme que ela atinja  aqueles que tiveram que deixar a República Democrática do Congo.

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Congo-Kinshasa: UN Mission Deplores Loss of Life As Police, Protesters Clash in Capital

-Lamentamos essa mensagem da embaixada em um momento que precisamos de união. Ela tem um caráter intimidatório e já conseguiu intimidar alguns de nós. O governo  quer tirar de nós a liberdade de expressão, a liberdade de denunciar o que acontece no país – disse ao Por dentro da África, K.M, que mora no Rio de Janeiro, lugar com a maior concentração de congoleses no país.

Segundo a Agência da ONU para Refugiados, os congoleses representam, atualmente, o maior grupo de refugiados no estado do Rio de Janeiro, com 116 chegadas registradas no primeiro trimestre de 2016, o que representa 55% do total. No primeiro trimestre de 2016, mais da metade das novas chegadas (55%) foram da RDC. Atualmente, segundo a Cáritas, há 868 refugiados e 600 solicitantes vivendo no estado.

Veja mais: “Diáspora congolesa e o apelo aos nossos irmãos”, por Charly Kongo

-Sabemos que dois colegas, um do Rio e outro de São Paulo, não puderam renovar o passaporte com a justificativa de terem participado de manifestações – completou K.M.

Vano – Foto – Divulgação

Segundo a Anistia Internacional, a liberdade de expressão no país foi seriamente reduzida durante o último ano. Um caso que ganhou repercussão foi o de Vano Kiboko, ex-deputado da coalizão governista, preso e condenado depois sugerir que a coalizão deveria identificar um sucessor para Kabila.

Nos últimos meses, de acordo com a organização, jornalistas foram vítimas de assédio, ameaças e detenções arbitrárias. Em 16 de janeiro, o Canal Kin Télévision (CKTV) e Radiotélévision Catholique Elikya (RTCE) tiveram seus sinais de transmissão cortados depois de transmitirem o pedido da oposição para protestos em massa. O sinal da RTCE foi reestabelecido em junho. A  Rádio Télévision Lubumbashi Jua, uma estação pertencente a Jean-Claude Muyambo, foi fechada quando deixou a coalizão governista.

Abusos de milícias e soldados do governo

Na carta, a embaixada também questiona as referências aos abusos de militares contra a população em cartazes usados pelos manifestantes. Cabe lembrar que, de acordo com relatório da ONU, comandantes da República Democrática do Congo são suspeitos de vender armas para grupos acusados de realizar massacres generalizados. O documento afirma que o general Amisi supervisionava uma rede de distribuição que fornecia armas e munições para grupos criminosos e rebeldes do leste do país.

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-Há muitas milícias em todo o país, mas temos evidências de que tropas do governo também cometem abusos. Não suportamos mais a violência de qualquer lado que seja. Queremos que o governo se comprometa em pacificar o país – disse J.A.

A paz é a grande busca dos congoleses, que, há duas décadas, convivem em meio a conflitos que já deixaram mais de 6 milhões de mortos, principalmente em Kivu, no nordeste do país. Nas fronteiras do país, milícias, rebeldes, empresas de exploração de minérios e governos participam de uma guerra que fere a dignidade dos congoleses e seus vizinhos. A República Democrática do Congo possui, pelo menos, 64% das reservas mundiais de coltan, imprescindível para a fabricação de eletrônicos portáteis.

Saiba mais: Recursos minerais nos Grandes Lagos: a relação entre Angola e República Democrática do Congo

-Nós deixamos o país, mas ainda temos uma grande ligação com a nossa terra. As manifestações fora da República Democrática do Congo são uma forma de fortalecer a nossa diáspora, de motivar os que ficaram, de dizer  que podemos pressionar os nossos dirigentes – contou J.A.

Assista ao vídeo da caminhada do dia 20 de novembro