Por Ulisses Manaia (Bàbá Olùmolà), Por dentro da África
Publicado na revista “Candomblés”, ano de 2008, editora Modus
Recife – A maioria de nós adeptos do culto aos Òrìsà, culto este de matriz africana e reestruturado na Bahia nos meados do século XIX por ex-escravos de etnia Yorùbá, oriundos principalmente do sudoeste da Nigéria, aprendemos e reproduzimos práticas, gestos e palavras, ensinados pelos membros mais “antigos”, sem muitas vezes entender o real significado deles.
Juana Ebein dos Santos diz que: “Todo o culto, sua morfologia, sua prática, todos os seus conteúdos se expressam por símbolos ou por estruturas simbólicas complexas, sendo assim, desvendar as correspondências dos símbolos e os interpretar nos permite explicitar os conteúdos do acontecer ritual.” (Juana Elbein dos Santos, 2002, p. 24;25)
A grande questão é que o significado desses “símbolos”, incluindo-se nesta categoria: os diversos elementos materiais utilizados nos rituais, bem como os gestos praticados e as palavras proferidas – na forma de saudações, evocações, súplicas e cânticos – vêm se perdendo ao longo do tempo. Esta perda está ligada principalmente a forma de transmissão do conhecimento Yorùbá tradicional: a oralidade. Uma vez que o idioma Yorùbá deixa de ser utilizado como meio de comunicação cotidiano, e passa a ser utilizado somente nos momentos rituais, o sentido de cada palavra é praticamente perdido. O que passa a importar é pronunciá-lo na situação requerida, e o seu significado será compreendido pela função ritual que está inserido!
Os Yorùbá conhecem a escrita após a colonização da Nigéria pela Inglaterra, até então o conhecimento era passado oralmente, no âmbito familiar e da comunidade, cabendo esta função aos membros mais antigos.
Esta prática passa a ser reproduzida nos nossos “Terreiros de Candomblé”, desde a sua origem, cabendo aos membros mais antigos do “Terreiro” a tarefa de ensinar aos mais novos. Com a morte dos descendentes diretos desses negros Yorùbá, alguns procedimentos rituais afastam-se daqueles realizados no território Yorùbá de origem, seja com acréscimos ou subtrações.
Quando recorremos à literatura de origem Yorùbá, aquela versando sobre o culto aos òrìsà, ou quando conversamos com algum deles sobre o assunto, percebemos logo a importância que é dada à palavra, como veículo transmissor de força. Eles evitam pronunciar determinadas palavras, consideradas “desfavoráveis”, justamente porque acreditam no seu poder de realização. Por outro lado, àquelas consideradas “favoráveis”, devem ser ditas com uma maior freqüência: “… Se a palavra adquire tal poder de ação, é porque ela está impregnada de àse, pronunciada com o hálito – veículo existencial – com a saliva, a temperatura; é a palavra soprada, vivida, acompanhada das modulações, da carga emocional, da história pessoal e do poder daquele que a profere…”(Juana Elbein dos Santos, 2002, p. 46).
Por ironia, convivemos com um segmento religioso cada vez mais crescente: os evangélicos, que colocam em prática este poder da palavra. Estão sempre proferindo palavras de otimismo e auto afirmação a seu favor, e de indignação e repulsa contra os seus “inimigos”.
O Yorùbá entende que a palavra é um instrumento condutor de àse (força dinâmica que permite o acontecer), no entanto, para que a palavra adquira esta função, deve ser dita de maneira e em contexto determinados.
Pensamos que a forma de recuperar esse conhecimento perdido é com o resgate do idioma Yorùbá, pelo menos no que diz respeito aos textos rituais. Se lançarmos um olhar sobre outros segmentos religiosos, veremos que o estudo faz parte de sua prática, e ao contrário do que alguns pregam, a leitura de textos rituais, aliada daquela relacionada a cultura do povo que deu origem ao culto, dá ao adepto um entendimento do que está praticando. Não achamos correto criticar àqueles que querem saber o que estão falando, até porque, como vimos acima, a palavra para cumprir seu papel ritual deve ser dita no momento certo, e se sabemos o que estamos falando não ficamos presos a “fórmulas fixas”, direcionamos as palavras àquele momento ritual, aumentando a sua eficiência.
Para o entendimento das diversas formas dos textos rituais Yorùbá, alguns aspectos devem ser considerados, como o frequente uso de “metáforas” e os valores “sócio-culturais” do povo em questão.
Nem sempre podemos considerar “literalmente” o que está escrito, esses textos devem ser interpretados dentro de um contexto sócio-cultural. Estamos falando de um povo originalmente agrícola, caçador e que vivia em harmonia com a natureza, dela tirando vários ensinamentos. Frequentemente vemos ações de animais sendo utilizadas como ensinamentos na vida do homem. Os valores sócio-culturais também são importantes na compreensão desses textos. Qual o principal tipo de sorte para o homem Yorùbá? A vida longa, seguida da riqueza, da família e dos filhos. Logo, estes valores estarão sempre presentes nas evocações e nas súplicas, e nós podemos perfeitamente utilizá-los ao nosso favor, fazendo as adaptações necessárias.
Como estão associados aos elementos da natureza – ar, terra, água, fogo e ar – os textos dirigidos a determinado òrìsà, quase sempre pedirão proteção contra a ação do elemento a ele associado, é assim, que encontramos para Òsún, o pedido do favorecimento da ação da água – que não falte, mas que não cause destruição – para Sòngó, o pedido de proteção contra a ação do fogo, etc.
As diversas formas de textos rituais se apóiam no poder dinâmico da palavra. Recitados, cantados, acompanhados ou não de instrumentos musicais, eles transmitem um poder de ação – àse – que mobiliza a atividade ritual.
Apresentamos abaixo algumas modalidades desses textos, a fim de que o leitor verifique estas características:
IBÀ (saudações)
A saudação – ibà – faz parte do costume Yorùbá. Ao contrário do que registraram os primeiros navegadores e missionários, o homem Yorùbá é extremamente cordial e respeitoso, principalmente para com os mais velhos. Vemos na recitação de ibà, uma transferência de um traço sócio-cultural para o campo religioso, ratificando a idéia de que, o “culto aos Òrìsà” tem por base a cultura. Os ibà são dirigidos aos Òrìsà, aos demais ancestrais e às forças da natureza, e devem preceder qualquer outra forma de evocação. Como admitir “chamar” um Òrìsà, fazer-lhe um pedido, sem antes saudá-lo? Através da recitação de ibà procuramos criar um ambiente favorável energeticamente, a fim de proceder às demais evocações.
Trecho de ibà (Síkírù Sàlámì, 1997, p. 61):
(1) Mo júbà akódá. (2) Mo júbà asèdá. (3) Atiyo ojó. (4) Otiwó òòrun.
(1) Eu saúdo os primórdios da existência. (2) Saúdo o Criador. (3) Saúdo o sol nascente. (4) Saúdo o sol poente.
ORÍKÌ (evocação)
Oríkì significa louvar ou saudar o Orí ou a origem daquele a quem se refere. Entre os Yorùbá encontramos oríkì referente à pessoas, cidades e até animais.
Os oríkì são textos que relatam os feitos, virtudes, características e fraquezas daquele a quem se referem. Quando a referência é feita a um òrìsà citam-se suas qualidades e realizações, com o objetivo de “sensibilizá-lo”, como que se estabelecendo com Ele uma relação de “parentesco”. Nesse sentido, torna-se indispensável para que se tenha a presença dos òrìsà durante o culto, principalmente quando entendemos que o culto aos òrìsà, ancestrais divinizados, busca trazer o passado, a fim de favorecer o presente e o futuro.
Em Pierre Verger encontramos que: “…a recitação do oriki de um Orisa é, para seu adepto, um meio de provar à divindade que lhe pertence e, portanto, é digno de proteção, e um modo de agradá-lo, enunciando seus títulos e fazendo alusões lisonjeiras a seu poder e aos grandes feitos que ele realizou.” (Pierre Verger, 2000, p. 39)
Verger ainda diz que os oríkì podem ser qualificados como “senhas”, através das quais damos aos ancestrais a prova de nossa afiliação, e de nossa vontade de manter a ligação.
Trecho de oríkì Oya (Síkírù Sàlámì, 1990, p.159-164)):
(1) Oya òòsà ti í toko rè léyìn (8) Iyàwó orí Ògun. (9) Oya kan, Sàngó kan. (12) Baálé di méji, ara ò rò kan.
(1) Oya, o orixá que apóia seu marido. (8) Oya, a primeira mulher de Ogum. (9) Oya é única e Xangô é único.(12) Há dois maridos para a mesma mulher na casa, o que causa inquietação a um deles.
ÀDÚRÀ (reza)
Àdúrà são textos através dos quais fazemos pedidos e agradecimentos aos Òrìsà. Normalmente são realizados após as saudações – ibà – e evocações – oríkì.
Assim como os oríkì, os àdúrà podem ser dirigidos aos elementos da natureza associados aquele òrìsà, a fim de que sejam favoráveis ao homem.
Pensamos que não devemos recorrer aos àdúrà somente nos momentos dos “pedidos”, nos dias de hoje, sempre temos motivos para agradecer!
Em território Yorùbá os àdúrà são uilizados em momentos como batizados, casamentos e até funerais.
Àdúrà ti Òàsààlà (Altair B. Olveira – T’Ògún, 2001, p.75;76):
(1) Bàbá e pawó (atéwó) (2) Fún mi kórè pò. (3) Bàbá e pawó (atéwó) (4) Fún mi kórè pò.
(5) Sáré mi kí maa sìn e (6) E pawò (atéwó), e fún mi (7) Àse kórè, àse pè e o o. (8) Sáre mi k’omon sìn e pawó, (9) Sáre mi k’omon sìn e atéwó.
(1) Pai, batemos palmas para vós, (2) Dê-me colheita abundante. (3) Pai, batemos palmas para vós, (4) Dê-me colheita abundante.
(5) Faça-me feliz, o filho que vos saúda, cultua. (6) E aplaude, dê-me (7) o axé de colher, peço-vos este axé, ô ô (8) Faça-me feliz que sou o filho que vos saúda e aplaude. (9) Faça-me feliz que sou o filho que vos saúda e aplaude.
ORIN (cântico)
Os textos rituais entoados na forma de cânticos, são denominados orin. Eles carregam parte da carga informativa dos oríkì, e quando temos acesso à tradução desses orin, percebemos que na maioria das vezes descrevem características daquele òrìsà ou dirigem-lhes pedidos ou súplicas. Logo, quando sabemos o que estamos cantando, podemos adequar o repertório ao ritual que estamos realizando, melhorando a sintonia com o òrìsà cultuado.
Orin ti Obalúwàiyé (Altair B. Olveira – T’Ògún, 2002, p. 76):
(1) A jí dàgòlóònòn kí, wa sawo orò, (2) Dàgò ilé ilé, dàgòlóònòn kí wa sawo oro
(1) Ao acordar pedimos licença ao Senhor do caminho, aquele a quem fazemos o culto tradicional,
(2) Dê licença à nossa casa, que pede licença no caminho a quem nós fazemos o culto tradicional.
Diante do exposto acima, concluímos que uma das “chaves” para a otimização do nosso culto é a retomada da utilização da palavra, enquanto veículo transmissor de àse, como faziam nossos bàbá e ìyá no passado. Para tanto torna-se necessário uma religação com a África de origem, a fim de “reaprendermos” aquilo que foi perdido.
Referências Bibliográficas:
Oliveira, Altair Bento de (T’Ògún). “Cantando para os orixás”, 3a ed, Rio de Janeiro, Pallas, 2002; Pallas, 2001;
– Oliveira, Altair Bento de (T’Ògún). “Elégùn: Iniciação no Candomblé”, Rio de Janeiro,
– Santos, Juana Elbein dos. “Os Nagô e a morte: Pàde, Àsèsè e o culto Égun na Bahia”, Vozes, 1986; 1997;
– Síkírù Sàlámì (Prof. King). “Ogum. Dor e Júbilo nos Rituais de Morte”, Editora Oduduwa,
– Síkírù Sàlámì (Prof. King). “A Mitologia dos orixás”, Editora Oduduwa, 1990;
– Verger, Pierre Fatumbi. “Notas sobre o Culto aos Orixás e Voduns na Bahia de Todos os Santos, no Brasil, e na Antiga Costa dos Escravos, na África / Pierre Verger – 2a ed. – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000.
Referências do autor:
– Bàbá Asògún Oúmolà (Ulisses Manaia da Silva) é omo ti Òrìsà Obalúwàiyé e iniciado no culto de Òrìsà pelo Bàbá Asògún Odearaofa àti Ifáfunké (Marcelo dos Santos Monteiro) em 17 de novembro de 2007, no Ilé Àse Ìdàsílè Ode (Casa de Àse: liberdade do caçador) – Rio de Janeiro – RJ.
Ulisses Manaia da Silva é formado em Ciências Contábeis pela Universidade Católica de Pernambuco e estudioso da cultura iorubá e do candomblé no Brasil com pesquisas publicadas em revistas especializadas . O autor também participa de acões para a aplicação da Lei 10.639/2003 (que garante a obrigatoriedade da História e Cultura Afro-brasileira no currículo oficial)
Por dentro da África