Natalia da Luz, Por dentro da África
A escravidão moderna se manifesta de muitas formas em diferentes lugares do mundo, mas na Mauritânia esse modelo de opressão ainda é visto com naturalidade. Em 1981, o país africano foi o último a abolir a escravidão, mas apenas em 2007 criminalizou a prática. Apesar disso, hoje, em 2018, estima-se que cerca de 20% da população viva como escrava.
Para falar sobre o tema, Por dentro da África entrevistou um dos maiores abolicionistas do país, o ativista Biram Abeid. Após a nossa entrevista, Abeid foi preso.
“A etnicidade pode influenciar diretamente o futuro das lutas políticas e sociais na Mauritânia. A opressão da escravidão, a discriminação racial e a exclusão cultural e linguística formaram a base da hegemonia da minoria árabe sanhaja (um dos maiores grupos berberes que viviam principalmente em Marrocos e Mauritânia)”, disse o ativista Biram Dah Abeid, em entrevista exclusiva ao Por dentro da África.
Biram criou a organização Initiative for the Resurgence of the Abolitionist (IRA) para combater essa prática que escraviza uma parte da população da Mauritânia. O país de 4 milhões de habitantes precisa, urgentemente, desconstruir o sistema de apartheid em vigor. De acordo com o Global Slavery Index 2016, o país tem mais de 1% da sua população escravizada, mas organizações abolicionistas estimam que esse número seja de 20% da população.
Por conta da sua luta contra a escravidão, o ativista foi preso várias vezes. Em 2012, ele foi condenado à pena de morte por queimar o “Abrégé de Khalil” (uma interpretação não sagrada do Islã). Em novembro de 2014, apenas alguns meses após ter chegado em segundo lugar nas eleições presidenciais da Mauritânia, o ativista foi condenado a 2 anos de prisão e libertado 20 meses depois. Desta vez, em agosto de 2018, o IRA declarou que o único propósito de sua prisão foi comprometer sua candidatura para as próximas eleições legislativas, em setembro.
Atualmente, o político, que em 2013 recebeu o Prêmio da ONU de Direitos Humanos e o Prêmio Front Line Defenders, lidera um movimento abolicionista que além de libertar os escravos, conscientiza a população do país, onde a condição de escravo é passada de mãe para filho.
“Todos os assuntos relacionados à escravidão aqui são tabus. Por conta da impossibilidade de conduzir uma investigação confiável, organizações do país acreditam que o número alcance 20% da população. O escravo na Mauritânia trabalha sem remuneração, sem descanso, sem cuidado, ele não tem direito à educação, documentos, viagem ou casamento, exceto sob a autorização do seu ‘mestre’ (como são chamados os responsáveis pelo escravo)”, detalhou, completando que é comum os escravos sofrerem punição corporal, principalmente mulheres e meninas.
No país, os escravos fazem todo o trabalho duro sob o sol, bem como o trabalho manual, trabalho doméstico porque, segundo Biram, o ‘código de honra’ da comunidade árabe os proíbe de fazer trabalho manual e até mesmo tarefas domésticas.
História
Pergunto a Biram como a escravidão atual no país se solidificou e permanece até hoje, e ele responde fazendo referências ao passado, explicando que os escravos da Mauritânia são descendentes de nativos escravizados desde o século 11, durante a expansão do islaminismo. Entre alguns dos grupos atingidos estão os bambara, toucouleur e wolof.
Ao longo da história, a luta dos mauritanos negros contra a escravidão foi marcada também por aspectos etnolinguísticos. Isso porque, segundo Biram, a minoria sanhaja (20% da população) usa estatísticas baseadas na assimilação linguística de haratine (cerca de 50% da população) para decretar a maioria dos “árabes” e assim justificar a legitimação de uma maioria demográfica.
“Esta maioria está na base da justificação da exclusão econômica, política e cultural dos grupos étnicos mauritanos subsaarianos (30% da população), como peulh, soninké, wolof e bambara. Mas, muito estranhamente, eles representam um trunfo para reforçar ainda mais a exclusão e a opressão da maioria haratine, considerada e usada como “árabe” pela elite governante árabe, enquanto esses mesmos haratines são discriminados, excluídos e perseguidos”, contou Biram, que é haratine (o maior grupo étnico que emergiu de um legado de escravidão na África sob os berberes e mouros).
Segundo o ativista, esse passado fortalece um sentimento racista da extrema direita em relação aos mauritanos afrodescendentes. Ela (a extrema direita) chegou ao poder em 2008, depois de um golpe de Estado quando o país teve o seu primeiro presidente (Sidi Mohamed Ould Cheikh Abdallahi) democraticamente eleito, em 2007.
“Em 2007, uma das medidas do governo eleito foi promulgar leis que criminalizavam a escravidão e decretar o retorno de mauritanos negros que foram para o Senegal e Mali durante um período de ‘limpeza’ nos anos 80 e 90. Desde a aprovação da lei que criminalizou a escravidão em 2007, uma mudança notória ocorreu com esforços para a aplicabilidade da nova lei. Um ano depois das eleições, o chefe do novo regime, Mouhamed Ould Abdel Aziz, impulsionou uma nova tendência racista e iniciou uma perseguição contra o movimento abolicionista’, destacou o ativista.
Luta
Na Mauritânia, o IRA inspirou um movimento de direito civil muito forte, inserindo a questão da escravidão no cenário político e dos direitos humanos. Ao longo dos anos, a organização criada em 2008 liderou várias manifestações que foram reprimidas de forma violenta.
O movimento abolicionista estimula a reflexão sobre os aspectos culturais de um povo que vem sendo oprimido por escravagistas que lideram grupos dominantes há séculos. Em 2011, 4 anos após a lei antiescravidão ter sido sancionada, dois irmãos levaram o seu antigo ‘mestre’ ao Tribunal Criminal de Nouakchott, capital do país. Ele foi acusado de escravidão e privação dos meninos da escola e punido com dois anos de prisão e pagamento de indenização. Esse foi o primeiro caso bem-sucedido. Os abolicionistas aguardam novos.
“O governo mauritano ainda lida de forma muito hostil com os ativistas. A elite e o governo defendem seus interesses para continuar desfrutando dos privilégios indevidos da escravidão. É por isso que o movimento abolicionista é proibido de se manifestar e que as convenções internacionais ratificadas pela Mauritânia não são aplicadas”.