“Medida de segurança”: Agentes da Etiópia obrigam passageiros a defecar

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Com a justificativa de que passageiros poderiam ter ingerido alguma substância ilícita, policiais dão comida e papel higiênico para checar fezes de visitantes em trânsito na Etiópia

Natalia da Luz, Por dentro da África

Adis Abeba – Em aeroportos de todo o mundo, raio-x, revista física e cães farejadores são métodos usados para fiscalizar passageiros que, possivelmente, estejam portando objetos ou substâncias ilícitas, mas na Etiópia, funcionários do departamento de imigração fazem uso de outra modalidade: eles forçam os passageiros a defecar. Após oferecer um rolo de papel higiênico, eles submetem passageiros a uma sessão de humilhação e constrangimento que termina (ou deveria terminar) com a checagem das fezes.

Este procedimento adotado pelos policiais foi aplicado em um grupo de quatro passageiros do voo ET507, da Ethiopian Airlines na última quinta-feira (3 de agosto). Após a aterrisagem em Adis Abeba, Natalia da Luz (Brasil), Albino Eusébio (Moçambique), Yodvo Anoni (Togo) e Pedro Tesler (Brasil) tiveram que deixar seus passaportes nas mãos de um agente que, já no início da abordagem, revelava extrema incapacidade: Pedia para o grupo segui-lo, mas o próprio parecia não saber para onde ir. Ficamos em uma fila por cerca de 20 minutos até o oficial mudar de ideia e ir para o guichê de certificação de passaporte. Após essa etapa, fomos para a sala da polícia, onde teríamos nossos documentos e bagagem de mão checados.

Direita: Albino e Natalia, esquerda, Anoni e Pedro
Esquerda: Albino e Natalia, direita, Anoni e Pedro

Na sala, fomos recebidos por três agentes que se recusaram a mostrar suas credenciais (viraram os crachás para que a identificação não fosse possível). Eles nem revistaram as roupas, deram apenas uma breve olhada na bagagem de mão e, em sequência, levaram um de nós para outra sala, onde imaginávamos que houvesse o raio-x. Da sala ao lado, Albino retornou aos berros dizendo que se recusaria a tamanho absurdo: ser obrigado a defecar na frente dos agentes. O moçambicano, que estava há quatro anos estudando no Brasil, retirou da mochila sua monografia em Ciências Sociais afirmando que era estudante e não traficante de drogas.

“Que tipo de conduta é essa? Isso é constrangedor, é ilegal. Desde o Brasil já passamos por vários aparelhos de raio-x. Se há alguma suspeita, que tragam o raio-x, que interroguem, que tragam os cães farejadores, mas isso, de obrigar alguém a ir ao banheiro enquanto eles olham, é um grande abuso”, disse Albino.

Chocados, questionamos o procedimento, enquanto eles, os agentes, respondiam que era uma medida padrão e ainda perguntavam, com sarcasmo, se nós não defecávamos no Brasil, Togo ou Moçambique. “Vocês podem ter ingerido alguma substância e ela pode estar no estômago de vocês. Vocês não vão ao banheiro? Qual o problema em fazer cocô”?, disse um deles.

Enquanto o tempo passava (perdemos três horas em um procedimento que deveria levar cerca de 20 minutos), insistíamos que essas medidas eram absurdas e abusivas. Um deles respondia com afinco que “aquilo era lei”, Perguntamos qual era e onde estava a lei. O oficial ficou sem resposta.

Após a saída da sala de imigração
Após a saída da sala de imigração

Com intenção de solicitar os nomes dos agentes que recepcionaram o voo ET507 do dia 3 de agosto e de questionar o procedimento abusivo, Por dentro da África fez inúmeras tentativas para os três números de telefone do aeroporto, inclusive, para o setor de imigração, mas não foi atendido. Também enviou email para os três endereços de contato do aeroporto, mas não obteve resposta.

Após Albino retornar, foi a vez de Anoni ser levado para o banheiro. O togolês que estava a caminho da República do Congo a trabalho e que só havia parado na Etiópia para aguardar o voo do dia sequinte (assim como todos do grupo) foi submetido ao mesmo constrangimento.

Perguntamos porque nós brasileiros (Natalia e Pedro) não tínhamos ido para a sala ao lado (banheiro) e por que essa “medida de segurança” foi aplicada aos africanos do grupo e não foi aplicada a nós. Foi quando um deles disse que teríamos que defecar também e que buscariam nossas bagagens já encaminhadas para o destino final (Índia e Mali). Depois de questionarmos, desistiram.

Além de todo o absurdo e de uma monumental inabilidade dos agentes, ficou evidente o preconceito e o racismo na conduta dos policiais. Dificilmente eles submeteriam um cidadão de passaporte britânico, canadense ou estaduniense a tamanho absurdo.

Segundo o especialista em segurança e direito internacional, Faysal Mohamood, há diferentes tipos de abusos aplicados por agentes da imigração. Retirar os documentos, bagagens, celulares, interrogatórios longos e que privam o passageiro da liberdade são medidas abusivas comuns e devem ser combatidas, mas essa conduta na Etiópia é algo desproporcional.

Entrada do aeroporto de Adis Abeba - Divulgação
Entrada do aeroporto de Adis Abeba – Divulgação

“Por conta do crescimento do tráfico de drogas na África, há medidas de segurança que vêm se tornando comuns. Aqui na África do Sul, por exemplo, vemos com frequência o procedimento de passar o raio-x para identificar drogas no organismo. Se ainda assim houver uma grave suspeita contra o passageiro, aí, em raros casos, ele toma um laxante para ir ao banheiro, mas forçar essa medida tão radical sem justificativa, sem que haja uma suspeita, é absolutamente abusivo”, destacou o advogado sul-africano.

Argumentamos, insistimos e nos recusamos a sair sem o grupo completo até um dos agentes afirmar que Anoni passaria a noite na sala para ir ao banheiro. Anotei os contatos dele em um caderno, a situação ficou tensa mais uma vez e eles tomaram, novamente, os nossos passaportes. Recuperamos e saímos da área de imigração. Cerca de uma hora depois o nosso colega togolês apareceu.

O jovem togolês praticamente implorou para ser liberado. A última tentativa dos agentes para fazer Anoni defecar foi enchê-lo de comida. “Disseram que eu tinha que comer, mas eu não conseguia. Fizeram eu comer um prato que seria para umas quatro pessoas. Eu já não aguentava mais e disse que só estava viajando a trabalho e que não era traficante, que não tinha nada em meu estômago…”

Procedimentos como esses são ilegais e precisam ser denunciados. Além disso, há perguntas que precisam ser feitas: Obrigar um passageiro a defecar está em qual lei, manual de conduta ou protocolo de segurança? Como o grupo (dois brasileiros, um togolês e um moçambicano) se tornou suspeito? Por que não foram feitos revista física ou raio-x se havia qualquer suspeita contra os passageiros?

Não podemos naturalizar ou nos calar diante de ações que ferem a liberdade e que são tomadas de forma despropositadas sem qualquer justificativa. Denunciar às autoridades e ao público ajuda a combater novos abusos.