Natalia da Luz, Por dentro da África
Tripoli – Com fronteiras porosas entre regiões atualmente conflituosas, a instabilidade política interna potencializa os desafios para o avanço da Líbia, que ainda tenta experimentar o regime democrático. Após três anos de revolução (iniciada em 17 de fevereiro de 2011), o país busca um caminho tentando desviar do controle das milícias (que ameaçam tomar o Estado) e reconstruir as suas instituições sobre os pilares da democracia (na última segunda-feira, o Parlamento líbio se reuniu pela primeira vez desde as eleições nacionais de 25 de junho).
– Atualmente, a Líbia está sendo dilacerada por um conflito violento entre forças islamitas e não-islamitas, pondo o futuro político do país em risco. Este conflito vem sendo construído há algum tempo. É uma espécie de guerra civil, mas não no sentido tradicional – disse em entrevista exclusiva ao Por dentro da África Ronald Bruce St John, autor de uma série de livros sobre a história da Líbia.
St John conta que o número exato de milícias é desconhecido (pode chegar a 1700). Ideologicamente, as milícias se encaixam em dois grandes grupos: um favorece um sistema socioeconômico e político mais islamita; e outro, um sistema mais secular.
Durante o período que governou a Líbia (42 anos), Muammar al-Gaddafi manteve suas “milícias”. Mas depois de sua queda, novos grupos foram criados no país. Uma parte deles diz que vai proteger a população, mas há muitos abusos… Por dentro da África perguntou a Bruce como Gaddafi negociava com essas milícias durante sua época e como elas estão trabalhando agora.
– Em teoria, Gaddafi criou uma milícia popular para proteger a sua “Líbia do Grande Povo Socialista”. Na realidade, ele via as forças armadas líbias como uma potencial ameaça ao seu poder e usou a milícia deste povo como um contrapeso para as forças armadas. As formadas durante a era Gaddafi tinham pouco poder e poucas armas. Elas eram um corpo totalmente diferente na organização, treinamento e armamento, quando comparadas com as milícias pós-Gaddafi – cita o especialista.
Pesquisas recentes de opinião pública têm mostrado, repetidamente, que grande parte da população não quer um governo islamita. Partidos islamitas e seus candidatos não foram bem vistos nas três eleições nacionais realizadas desde a derrubada de Gaddafi.
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– Isso demonstra a falta de apoio público, que é a principal razão pela qual as milícias estão recorrendo à violência para conseguir o controle político do país. O conflito atual é, em grande parte, entre forças islamitas e não-islamitas, e há pouca referência histórica para ele. A Líbia é um país de maioria muçulmana, mas a esmagadora maioria do povo líbio nunca demonstrou atração pelo islamismo militante – conta Bruce, que tem pós-doutorado em Relações Internacionais pela Universidade de Denver, nos Estados Unidos.
Estado Islâmico
Na semana passada, o grupo Ansar al-Sharia disse que tomou o controle completo de Bengazi, declarando a cidade um “Emirado islâmico”. Ansar al-Sharia está na lista negra dos Estados Unidos sobre o seu suposto papel em um ataque contra o consulado dos EUA em Bengazi, em 2012.
A milícia surgiu durante a Guerra Civil da Líbia (em 2011). A organização tem, deliberadamente, alvos civis, tanto líbios quanto americanos. Várias fontes de notícias rotularam-na como uma organização terrorista.
– É muito cedo para dizer se a Ansar realmente tem o controle de todos em Bengazi. Precisamos esperar alguns dias para ver se os grupos querem impor um sistema socioeconômico e político islamita radical para todos na Líbia com base em uma interpretação extrema da sharia (lei islâmica) – ressalta o autor, que lançou a 5ª edição do Historical Dictionary of Libya, neste ano.
Tentativa de golpe de Estado
No dia 14 de fevereiro, houve uma tentativa de golpe de Estado por parte do general Khalif Hafitar Belgasin, que, durante 11 minutos, discursou na TV estatal afirmando ter o controle das instituições do país e declarando suspensos o governo e o Parlamento. No mesmo dia, ele foi demitido pelo primeiro-ministro Ali Zeidan.
Na semana seguinte, uma nova ameaça: milícias não identificadas deram um ultimato ao Congresso, pedindo que a instituição entregasse o poder para que elas agissem.
Muitos líbios acreditam que o filho de Gaddafi Saif al-Islam, de 42 anos, escondido nas montanhas de Zintan, estaria envolvido nesta ameaça. Saif al-Islam permanece com a milícia que o capturou dois anos atrás e que se recusou a entregá-lo ao governo. Saif é o primeiro na lista de réus do antigo regime que estão sendo julgados pela justiça líbia.
Com cerca de 50 mil habitantes, Zintan ingressou na revolução líbia em 2011, após o governo recrutar mais de mil soldados. O filho de Gaddafi foi capturado em 19 de novembro de 2011, quase um mês depois da morte de seu pai.
Um dos mais graves incidentes envolvendo milícias foi o sequestro do primeiro-ministro Ali Zeidan, em outubro de 2013, por um grupo que foi criado para garantir a segurança na capital. Em novembro, confrontos entre milícias da cidade de Misrata e manifestantes locais deixaram mais 50 mortos e centenas de feridos
Após o sequestro do ministro e a ameaça em que Tarek Mitri, representante da ONU para a Líbia, se envolveu, foi definido um novo cronograma político a fim de acelerar as eleições gerais.
Segurança
Garantir a segurança ainda é o maior desafio para a Líbia pós-revolução, que tem como uma das heranças de Muammar al-Gaddafi (capturado e assassinado em outubro de 2011) um arsenal espalhado por todos os cantos do país.
– A maior parte das milícias utiliza armas apreendidas a partir de estoques da era Gaddafi. Como ele não confiava em suas forças armadas regulares, quase todas as armas e munições foram deixadas pelo regime de Gaddafi em áreas bloqueadas, para que os soldados não pudessem usá-las um golpe de Estado contra o governo. Relativamente, poucas armas entraram na Líbia desde o fim da era Gaddafi. Dito isto, Qatar tem sido suspeito de fornecer armas a grupos islâmicos – completou.
Durante a revolução que começou em Bengazi no dia 17 de fevereiro de 2011, a população se armou, seja para se defender das milícias de Gaddafi ou para defender o antigo ditador. Apesar de o governo de transição ter começado uma campanha de desarmamento, apreender todas essas armas é uma tarefa muito árdua.
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A raiz da crise indica para a existência de uma infinidade de grupos armados que surgiram a partir da guerra civil da Líbia. Esses grupos são vistos de forma polarizada: com bons e maus olhos. Por um lado, na ausência de um exército efetivo, eles oferecem segurança; por outro, são acusados de cometerem abusos dos direitos humanos, detenções ilegais e de tomarem a lei em suas próprias mãos. O exército ainda não tem força efetiva. Ao longo de 2013, ele tentou recrutar, mas esbarrou na falta de soldados experientes. Muitos que serviram ao exército de Gaddafi não retornaram.
– As milícias islamitas mais fortes incluem as Brigadas Misurata, que constituem cerca de 200 brigadas diferentes, Ansar al-Sharia, a Líbia Operações Revolucionárias e a Brigada dos Mártires 17 de Fevereiro. Forças não-islâmicas mais representativas incluem o Conselho Militar revolucionários Zintan, que é aliado do Qaaqaa ea al-Sawaiq e do Exército Nacional, comandado pelo general Hafter – explicou Bruce.
Transição
A Líbia ainda parece estar em um permanente momento de transição. Em julho de 2012, o Congresso Nacional foi formado, escolhendo 200 representantes entre mais de 2500 candidatos. Em agosto do mesmo ano, o Congresso elegeu o primeiro representante do governo de transição: Mohamed Yousef el-Magariaf, que era o líder do Partido Nacional.
Pelas ruas da capital, é possível notar uma certa descrença no sistema. O entusiasmo diminuiu, mas a esperança continua. Os líbios continuam acreditando em um futuro promissor, estimulado pela consciência dos seus recursos naturais. Diferentemente do Egito (em meio a uma grave crise econômica) e da Tunísia (com recursos naturais limitados), a Líbia possui um enorme potencial econômico alimentado pelo petróleo.
– Os fundamentos da indústria de hidrocarbonetos não mudaram. A falta de vontade ou incapacidade do governo central para enfrentar várias tribos, milícias e outros grupos de interesse têm impedido a indústria de abastecer suas demandas.
Relação com os Estados Unidos
Em “Libya and United States: two centuries of strife”, o autor escreve sobre a diplomacia entre os EUA e a Líbia, desde a primeira ruptura diplomática, em 1973. A maioria dos líbios desejava retirar Gaddafi do poder, mas foi necessária a pressão dos EUA para isso.
Por dentro da África perguntou se esta é a principal razão pela qual parte dessas milícias está ameaçando os representantes dos EUA no país.
– O tipo de democracia pluralista, defendida pelos EUA, é a antítese do que as milícias querem impor sobre a Líbia, que é a razão pela qual eles se opõem à influência dos EUA.
Futuro
Muitas embaixadas retiraram seus representantes do país por conta da escalada de violência das últimas semanas. Apenas no último domingo, conflitos pelo controle do aeroporto de Trípoli (capital do país) deixaram 22 mortos.
Apesar da instabilidade política, da falta se segurança e da queda (diária) de eletricidade, o comércio se esforça para voltar à normalidade. A questão dos direitos humanos não pode ser ignorada na estrada para o futuro do país. Na medida em que a reconstrução do Estado avança, é urgente a garantia dos direitos de todas as minorias em um país que por 42 anos (durante o governo de Gaddafi) não respeitou quem pensasse e não se enquadrasse em seus padrões.
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O Parlamento se reuniu pela primeira vez nesta segunda-feira, uma novidade para a Líbia. O Parlamento tem 200 lugares no total, mas 12 não estão preenchidas porque a violência local impediu a votação nesses distritos.
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