Domingos da Cruz, para o Por dentro da África
Coordenador do Observatório da Imprensa de Angola
Em homenagem ao Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, comemorado 3 de maio
RESUMO: Este artigo tenta compreender as diferentes normas que compõem o Sistema Africano de Direitos Humanos no que a liberdade de imprensa diz respeito, estabelecendo um contraponto que representa incumprimento do Direito entre este Sistema Regional e o caso angolano, um país membro da União Africana, e em conseqüência do Sistema de Proteção e Defesa dos Direitos Humanos. A argumentação adota as perspectivas jurídico-positiva e histórico-crítica.
Palavras-Chave: Liberdade de Imprensa. África. Direitos Humanos. Caso Angolano.
Introdução
O Sistema Africano de Proteção e Defesa dos Direitos Humanos também manifesta preocupação em relação à liberdade de expressão, de imprensa, democracia e temas correlatos. A defesa da liberdade de expressão com relativa “timidez” é identificada no artigo 9º da Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos, também designada por Carta de Banjul, que foi adotada pela OUA em Nairobi, no Quênia, em junho de 1981, e entrou em vigor em outubro de 1986.
O referido artigo declara literalmente que, “1. Todas as pessoas têm direito à informação. 2. Todas as pessoas têm direito de exprimir e de divulgar as suas opiniões dentro das leis e dos regulamentos.” É obvio que pela lógica argumentativa (indivisibilidade dos direitos) da presente pesquisa deve-se combinar com artigo 8º que advoga a liberdade de consciência. Segundo Silva (2009, p.198-199) o receio da OUA na formulação da liberdade de expressão deve-se ao fato de, nos anos sessenta e setenta, a grande preocupação da OUA era, ainda e essencialmente a libertação do continente do colonialismo e de todas as formas de opressão do homem africano, incluindo o Apartheid, na África do Sul e na Namíbia.
Num tal contexto, acompanhado por uma envolvente de guerra-fria, a liberdade de imprensa e outras liberdades fundamentais viriam a ser sistematicamente relegadas para segundo plano, perdidas no confronto da retórica belicista e ideologicamente carregada que travavam os dois blocos, entre a primazia dos direitos cívico-políticos ou os direitos econômicos-culturais.
- Aprofundamento formal do Sistema regional em matéria de liberdade de imprensa e aspectos correlativos
Depois deste instrumento jurídico inaugural (acima expresso) seguiram-se outros: a Declaração de Windhoek de 1991, apesar de ser da iniciativa da UNESCO, alguns estudiosos, como Silva (2009, p. 199), a consideram um instrumento do sistema africano e rotulam-na a Declaração sobre a Promoção de uma Imprensa Africana Independente e Pluralista. Em 2001, quando a Declaração de Windhoek completou 10 anos foi complementada pela Carta Africana de Radiodifusão, a qual estabelece os princípios de um setor tridimensional na África — o setor público, comunitário e comercial. Esta Carta não deixa de defender a liberdade de expressão e o pluralismo na rádio e TVs africanas.
A Carta Africana dos Direitos e do Bem-Estar da Criança, adotada em Adis- Abbeba, na Etiópia, em julho de 1990, entrou em vigor em novembro de 1999. Na presente Carta, a liberdade de expressão tem a seguinte formulação (artigo 7º): “todas as crianças que sejam capazes de comunicar as suas opiniões deverão ter garantia do direito à expressão, de forma livre, das suas opiniões respeitantes a todos os assuntos e a divulgar as suas opiniões, sujeitando-se a restrições prescritas na lei.” O artigo parece ter uma formulação incomum, ao atribuir liberdade de expressão às crianças que sejam capazes de se exprimirem, como se houvesse crianças que não comunicam. Mesmo por razões psicossomáticas, limitadoras da fala, não exclui da criança e a todos indivíduos a possibilidade de comunicar de múltiplas maneiras. Por sua vez, o artigo 9º trata da liberdade de pensamento, de consciência e de religião da criança.
Os Princípios de Johanesburgo sobre a Segurança Nacional, Liberdade de Expressão e Acesso à Informação, adotado em 1996, também aborda o problema em análise. Este documento reafirma os postulados contidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos e no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos.
A marcha dos africanos pela promoção e defesa da liberdade de expressão (pelo menos formalmente) continua, por isso, a Declaração e Plano de Ação de Grand Bay adotada pela Primeira Conferência Ministerial da OUA sobre Direitos Humanos, realizada em Abril de 1999, nas Ilhas Maurícias, no seu artigo 21,
[…] reconhece que os órgãos de comunicação são importantes na construção de pontes entre os governos e os povos; assim, exorta os Estados a garantirem uma imprensa livre e independente dentro das suas fronteiras nacionais e que possa intervir na promoção dos Direitos Humanos na África. Para o efeito, apela ao Secretário-Geral da OUA que estude a possibilidade de apoiar as instituições continentais de informação.
A Declaração sobre Mudanças Inconstitucionais de Governo adotada em Lomé, no Togo, pela Assembleia da OUA de Chefes de Estado e de Governo em julho de 2000, considera que a governança democrática pressupõe “garantia da liberdade de expressão e da liberdade de imprensa, incluindo a garantia de acesso aos meios de comunicação social para todos os atores políticos” (artigo 7º).
Em seguida, a Declaração Solene da Conferência sobre a Segurança, Estabilidade, Desenvolvimento e Cooperação na África (CSSDCA), adotada em 2000 em Lomé. Togo. No item referente à estabilidade na África, subscreve que a UA deve “proteger e promover o respeito pelos Direitos Humanos e pelas liberdades fundamentais, como sejam a liberdade de expressão e de associação, o pluralismo político e sindical e outras formas de democracia participativa.” Esta declaração entende que a segurança e estabilidade na África também passam por uma mídia africana livre e independente.
A expressão mídia africana não é inocente. Ela decorre do consenso alcançado no continente de que a África precisa descontruir-construir e construir-descontruir uma imagem de si mesma e da África articulada por uma investida geopolítica ocidental. Este desiderato de construção do Eu coletivo africano pressupõe a existência e o domínio dos africanos das TICs, mas com liberdade. Neste âmbito a maior tribuna política do continente, OUA, criou a Agência Informativa Panafricana (PANA), com vista a contribuir na construção de uma imagem positiva da África. De acordo com Matumona (2002, p.31-32), as primeiras notícias foram divulgadas no dia 25 de maio de 1983.
A Declaração da Nova Parceria para o Desenvolvimento da África (NEPAD), adotada na Primeira Reunião do Comitê de Implementação da NEPAD de Chefes de Estado e de Governo em Abuja, na Nigéria, em outubro de 2001. É uma iniciativa política panafricana para a promoção dos Direitos Humanos. A NEPAD é vista também como agenda de desenvolvimento da UA e tem um forte componente de direitos fundamentais, onde a liberdade de expressão está encaixada. Da NEPAD resultou a Declaração sobre a Democracia e Governação Política, Econômica e Social, adotada pela Assembleia de Chefes de Estado e de Governo da UA em Durban, na África do Sul, em julho de 2002.
Sem cerimônias nem limites, esta declaração volta a reafirmar que a liberdade de expressão e de imprensa deve ser um imperativo para a construção de uma África assente na tradição, na sua história e com os olhos expostos para um futuro melhor (artigo 15 §4).
A Declaração de Princípios da Liberdade de Expressão na África (2002), da iniciativa da Comissão Africana dos Direitos do Homem e dos Povos, foi adotada na sua 32ª Sessão Ordinária, realizada de 17 a 23 de outubro de 2002, em Banjul, na Gâmbia. Esta declaração é particularmente marcante para o Direito Internacional dos Direitos Humanos na África, no âmbito da liberdade de expressão. O instrumento é dominado pelo binômio duplo mídia-democracia e liberdade de expressão-liberdade de imprensa.
Ela traz grandes avanços, ao demonstrar clara visão holística do problema, ao remetê-lo no quadro do Direito à Comunicação. É importante frisar os seguintes itens da declaração: liberdade de expressão dos grupos vulneráveis e em línguas locais (artigo 3º); mídia comunitária como forma de alargar a liberdade de expressão (artigo 5º); recomenda as figuras públicas que sejam tolerantes à críticas da mídia em virtude do seu status (artigo 12). O documento é bastante liberal ao sustentar que a “a liberdade de expressão não deverá ser restringida por razões de ordem pública ou de segurança nacional, […].” (artigo 13 §2).
Pelos avanços desta declaração, parece não ser possível resistir a “tentação” da análise comparativa, que leva a afirmar que a declaração africana em relação a outros sistemas tem ganhos teóricos e se adéquam melhor aos novos tempos.
Vale ainda recordar a decisão da Comissão africana de Direitos Humanos, tomada na sua 33ª Sessão Ordinária realizada em Niamey, no Níger, de 15 a 29 de maio de 2003, de nomear um Grupo de Especialista para Monitoramento Permanente, responsável pela supervisão de qualquer atividade relacionada com a implementação da Declaração de Princípios da Liberdade de Expressão na África em consonância com a Resolução que adota a Declaração.
No mesmo período foi proclamada a Declaração de Kigali, adotada pela Conferência Ministerial dos Direitos Humanos na África, em maio de 2003, no Ruanda e reitera no artigo 29,
[…] a importância dos meios de comunicação social na materialização do direito à informação e, por conseguinte, exorta os Estados-Membros a garantirem a existência de uma imprensa livre e independente, através da aplicação de medidas legislativas e de políticas apropriadas.
Não menos importantes foram as recomendações da Reunião Consultiva de Joanesburgo sobre a Liberdade de Expressão, realizada em Johanesburgo (África do Sul) em agosto de 2003, e da Conferência Africana sobre a Liberdade de Expressão, realizada em Pretória em fevereiro de 2004. Cinco meses depois, foram estabelecidas as Diretrizes para as Missões da UA de Observação e Monitorização Eleitoral. Estas Diretrizes encontram-se no Relatório da Reunião de Peritos de Eleições, Democracia e Governação na África em Adis-Abeba em maio de 2004, tendo sido aprovadas pelo Conselho Executivo da UA em julho de 2004.
As diretrizes preocupam-se com os seguintes aspectos: (artigo 1º § 3. iv),
Salvaguarda das liberdades humanas, […] incluindo a liberdade […] de expressão e de campanha, bem como acesso aos meios de comunicação por parte de todos os interessados durante os processos eleitorais”; (artigo 1º § 4. v) “pessoas individuais ou partidos políticos terão o direito à liberdade de […] fazer campanha e […] exprimir opiniões políticas, com pleno acesso aos meios de comunicação social e de informação, dentro dos limites das leis do país.
Leia a íntegra da pesquisa Liberdade de Imprensa no Sistema Africano de Proteção e Defesa dos Direitos Humanos