Natalia da Luz, Por dentro da África
Ao chegar no Tribunal Provincial de Luanda, nesta segunda-feira (5), o jornalista Rafael Marques recebeu a notícia de que o seu julgamento havia sido adiado. Processado pelo então Procurador-Geral da República, João Maria Moreira de Sousa, o ativista é acusado de injúria e ultraje à soberania.
“Não há seriedade na justiça de Angola. Já imaginava que isso pudesse acontecer. O Ministério Público requisitou o processo e adiaram sem definir uma nova data”, disse Rafael ao Por dentro da África.
Em reportagem publicada em outubro de 2016 no site Maka Angola, o jornalista apontava a compra de um terreno de três hectares na região de Porto Amboim por João Maria. De acordo com a documentação, João Maria havia comprado a propriedade com a finalidade de construir um condomínio, o que é proibido para um magistrado em sua posição. Neste processo, além de Rafael, o juiz também acusa Mariano Bras, jornalista de o ‘O Crime’, por ter republicado o texto de “injúria”. Em defesa da liberdade de imprensa, angolanos marcaram uma manifestação diante do tribunal.
“O caso de João Maria é uma afronta, mas, em Angola, não se trata de um caso isolado. Muitos políticos, magistrados e servidores públicos estão envolvidos em negócios ilegais. Eles sabem que não podem fazer, mas fazem”, contou o ativista.
Neste caso (com uma possível penalidade de 3 a 4 anos de detenção), a defesa diz que o procurador não era titular do imóvel, e Rafael rebate a crítica com provas de que o magistrado fez a aquisição. Por não ter pago algumas prestações, ele teria perdido a titularidade, o que não altera a conduta ilegal. Todo esse processo está detalhado em escrituras.
Com essas provas, a acusação de injúria é desqualificada. Quanto à acusação de ultraje à soberania, não é palpável porque funciona como sombra de um governo ditatorial e ajuda a consolidar a ideia de que Angola não vivencia democracia, tampouco liberdade de imprensa.
Leia também: “Em Angola, o poder é visto como fonte de corrupção”, diz Rafael Marques
No país de cerca de 25 milhões de habitantes, onde políticos criam estratégias para punir quem se ergue contra abusos por parte do Estado, a justiça serve para favorecer quem se mantém no poder. São essas pessoas que Rafael diariamente desafia em seu trabalho incansável no Maka Angola.
Canal de denúncias e jornalismo investigativo
Até hoje, os angolanos têm apenas um órgão de imprensa, que funciona como um veículo de propaganda do governo. Ele lembra que um dos dois canais da TV pública foi entregue aos filhos do ex-presidente José Eduardo dos Santos (o outro já era do governo), o que torna ainda mais impossível enxergar qualquer sinal de liberdade de imprensa.
“O Maka (na língua kimbundu, significa “problema delicado, complexo ou grave”) é uma das poucas vozes que mostram uma realidade que o governo não quer que seja vista. Em julho de 2016, por exemplo, a Assembleia Nacional aprovou uma nova Lei de Imprensa e um pacote de repressão na internet. Eles criaram uma entidade reguladora que tem poderes policiais para, sem mandato judicial, deter jornalistas, pegar seus materiais de trabalho, seja nas redações ou em casa”, explicou Rafael.
Formado em jornalismo e antropologia pela Goldsmiths (Inglaterra), o ativista, que é mestre em Estudos Africanos, se tornou um porta-voz das violações contra a liberdade de imprensa em seu país, que, segundo o último relatório do Repórteres Sem Fronteiras, está na 123ª posição do ranking de liberdade de imprensa. Dentre os países lusófonos, do lado oposto, está Cabo Verde, na 34ª posição. Esses e muitos outros abusos são retratados no Maka Angola.
Perseguição
Em 99, Rafael passou 42 dias na prisão (o jugamento aconteceu em 2000). Enquanto estava encarcerado, fez greve de fome em protesto por ter sido impedido de falar com seus familiares.
Em sua função de jornalista investigativo, Rafael foi para o tribunal em outros dois casos (em um deles, ele foi processado duas vezes: em Angola e Portugal). A primeira vez no tribunal foi em 2000 por conta do artigo “O baton da ditadura”, onde ele acusava o ex-presidente angolano (José Eduardo dos Santos) de promover a corrupção no país. Nesta ocasião, ele foi condenado a seis meses, mas o recurso ao Supremo suspendeu a pena. No mesmo ano, pelo seu trabalho, ele recebeu o Percy Qoboza Award, da Associação Nacional dos Jornalistas Negros dos Estados Unidos da América.
Em 2011, o ativista foi novamente processado em razão das denúncias contidas em seu livro ‘Diamantes de Sangue: Tortura e corrupção em Angola’. O processo foi movido pela Sociedade Mineira do Cuango Ltda, empresa que explora diamantes e pela Teleservice, empresa de segurança privada. O processo acabou sendo arquivado em 2013 por falta de provas, a pedido do Ministério Público português. Neste ano, Rafael recebeu o Integrity Award da Transparência Internacional, pelo seu empenho em expor a corrupção institucional em Angola.
Em 2015, por conta das denúncias em seu livro, Rafael foi processado novamente por sete generais e foi a julgamento em 24 de março de 2015 no Tribunal Provincial de Luanda. No dia 28 de maio de 2015, segundo a Open Society, 49 organizações de direitos humanos, indivíduos e acadêmicos emitiram uma carta conjunta expressando fortes preocupações sobre o julgamento do jornalista.
“Estamos cansados de ver procuradores, juízes, advogados comprados. É a forma que eles preservam seu poder, sua perversidade. A justiça condena os pobres neste país, e isso precisa mudar”.