Por Mariana Nissen, Por dentro da África
Datas históricas representam uma excelente oportunidade para rever o passado, e a
comemoração da década do terremoto no Haiti não poderia ser diferente. Dez anos depois de uma das maiores tragédias naturais deste século deveríamos usar a ocasião para nos questionar: como deixamos que o maior ato solidário do mundo fracassasse em garantir a reconstrução do Haiti?
No dia 12 de janeiro de 2010 um terremoto de 35 segundos ruiu um país. Enterrou sonhos de progresso e deixou como sequela cifras incalculáveis: centenas de milhares de mortos eferidos, mais de 1 milhão de deslocados e um número similar de migrantes, decididos a recomeçar em outro país, inclusive o Brasil.
Há dez anos o mundo conteve a respiração com as primeiras imagens emitidas após a tragédia. Ministérios, escolas, hospitais, edifícios se converteram em escombros e pó. Os mesmos destinos tiveram o Palácio Nacional, residência oficial do presidente, e a sede da Missão das Nações Unidas no país, cobrando a vida tanto do seu principal dirigente, o tunisiano Hédi Annabi, como a do seu braço direito, o brasileiro Luiz da Costa. Um cenário que sepultava qualquer sonho de desenvolvimento da nação conhecida como a pérola do Caribe.
Ao susto coletâneo, surgiram as mobilizações: pedidos de auxílio, doações pessoais,
cooperação com o Haiti. Voluntários de todos os cantos do planeta apareceram de um dia para o outro em Porto Príncipe, antes mesmo do aeroporto retomar suas operações. Esse gesto de solidariedade com o país alcançou seu apogeu cerca de dois meses depois da tragédia. No dia 30 de março de 2010, em um encontro em Nova York, mais de 130 países e instituições se comprometeram a doar mais de 10 bilhões de dólares para reconstruir o Haiti. O lema era ‘Build back better’ ou ‘Construamos um Haiti melhor’. Uma promessa que jamais chegou a ser cumprida.
Uma década depois encontramos um Haiti à deriva, com seu povo enfrentando uma das piores crises de sua história. E a pergunta que permanece é: para onde foi esse dinheiro?
12.01.2010
Quando cheguei pela primeira vez no Haiti, naquele distante 5 de janeiro de 2010, percebi que todas as minhas minhas ideias pré-concebidas do país eram falsas. O Haiti era um país que florescia, que parecia que finalmente entrava no eixo e que alcançaria o progresso por tanto tempo desejado. Meu trabalho, de fato, consistia em divulgar projetos de sucesso que abarcavam um universo tão variado como o de criação de empregos, preservação do meio ambiente e fortalecimento do setor de justiça, implementados nos últimos anos no país pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).
O trânsito era caótico, as ruas não eram asfaltadas, o emprego informal era latente, mas eu enxergava isso apenas como sintomas de um país pobre que parecia que finalmente estava a ponto de seguir em frente. O maior sinal de um futuro diferente se encontrava nas crianças em seu caminho às escolas de manhã, que para mim era o exponente máximo do orgulho haitiano. Entre o lixo onipresente ostentavam seus uniformes coloridos de maneira impecável, impoluto. Na minha visão era uma mostra de como a educação servia como um passaporte para um futuro onde os sinais da pobreza não têm autorização para entrar.
No entanto, o indício mais importante da estabilidade do Haiti se encontrava na figura de René Preval. A ponto de completar seus cinco anos de mandato, o presidente seria o primeiro da história do país a receber e, em breve, repassar o poder a outro candidato de forma pacífica e democrática. O primeiro desde 1804 quando o Haiti se converteu primeiro país latino-americano independente.
Leia mais: Independência haitiana e o povo no poder
Naquele dia 12 de janeiro, eu tinha uma reunião agendada com outros representantes de
comunicação das agências da ONU para coordenar a próxima ação importante do mês: o
carnaval. Queríamos aproveitar a data para explicar a importância dos Objetivos do Milênio e conscientizar a população sobre alguns temas importantes, como a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, o respeito com o meio ambiente, entre outros temas relevantes da agenda do Milênio. Parece leviano agora pensar que planejávamos algo tão global, mas o Haiti era naquele momento um lugar onde o desenvolvimento a longo prazo também era a pauta da vez.
Recém-chegada e com vontade de aprender, pedi a minha coordenadora para acompanhá-la à sede da Missão da ONU no país (Minustah) para ajudá-la a planejar as futuras ações. Eram 3h30 da tarde. Ela educadamente dispensou a minha ajuda dizendo que preferia trabalhar sozinha e convocou uma reunião para o dia seguinte, que nunca aconteceu. Às 4h53 da tarde a terra tremeu e a sede da Missão, localizada em um antigo hotel chamado Christopher, veio abaixo.
Em cerca de meio minuto, o terremoto aplanou cinco andares, aprisionando em seu interior mais de 100 pessoas, inclusive minha coordenadora. Trinta segundos… suficientes para dar a volta ao avesso à realidade e imprimir urgência. De repente, o tempo se diluiu e a normalidade desapareceram. No estacionamento do PNUD, ajudamos como pudemos os feridos, distribuindo a pouca água e a quase inexistente comida que havia, cuidando os casos mais graves com alguns kits de primeiros socorros. Mas não foi o bastante, e logo contávamos mortes: uma, duas, três…
O tempo jogava contra, mas ironicamente a única coisa que poderíamos fazer era esperar.
Esperar que a terra não tremesse mais, esperar ajuda que não sabíamos nem de onde nem como chegaria. E esperar que aquele apocalipse não se agravasse ainda mais, não se esfumaçasse com cada uma das réplicas que sentimos aquela noite. Treze no total, segundo a minha conta mental.
Dez anos depois do terremoto, o Haiti é uma nação que se encontra novamente à margem do abismo. Desde esta segunda-feira (13), o presidente Jovenel Moise governa por decreto depois de meses de impasses que levaram à suspensão de eleições que, por consequência, não permitiu a renovação da Câmara de Deputados e dois terços do Senado.
O país sofre uma inflação galopante e não há combustível, consequência direta da crise na Venezuela. Durante anos, o governo bolivariano vendeu combustível subsidiado ao Haiti e financiado com prazos de até 25 anos.
Em resposta a esta situação, os haitianos tomaram as ruas, organizaram barricadas e protestos contra o governo. Demandavam a renúncia do presidente, que desde que entrou no poder, em fevereiro de 2017, sofre acusações de corrupção. O país entrou em um estado de paralisia que acarretou no fechamento de negócios e escolas por mais de dois meses.
O Haiti hoje é um dos países com maiores índices de insegurança alimentar do
mundo, com uma em cada três pessoas dependente de assistência para alimentar-
se, segundo dados do Programa Mundial de Alimento (PMA). Cerca de 3,7 se encontram em uma situação de emergência e a agência prevê que esta situação poderá piorar em 2020.
Os problemas não terminam por aí. O país se encontra na rota dos furacões e é
considerado o quarto no mundo mais afetado por eventos climáticos extremos.
Desde o terremoto de 2010, a nação já enfrentou dois furacões que causaram
grande devastação e outro terremoto de menor intensidade em 2018.
A Missão da ONU para a Estabilização no Haiti chegou ao seu fim em outubro de
2017, depois de 13 anos de operação deixando índices positivos, segundo dados
próprios: os sequestros diminuíram 95% e o número de homicídios era um dos
menores desde 2013.
A passagem dos militares pelo país, por outro lado, não passou imune de críticas.
Durante este longo período há vários relatos de violações de direitos humanos,
abusos e, mais recentemente, do abandono de centenas de filhos dos capacetes azuis
(cerca de 20% brasileiros), com haitianas, muitas delas, menores de idade. Um de cada cinco capacete azul era brasileiro. Link para a reportagem do El País
Cabe lembrar que o Haiti não possui Exército, dissolvido em 1995 pelo ex-presidente
Jean-Bertrand Aristide quando retomou o poder e o corpo policial de cerca de 14.000
homens e mulheres foi, em parte, criado depois de 2010. Como consequência, não
há como negar que o vazio deixado pelas tropas da ONU contribuiu para a volta da
insegurança neste cenário de agravamento econômico e político.
Entre os anos 70 e 90 o Haiti chegou a ser um destino turístico, com parada de
cruzeiros e um Club Mediterranée que era destino de férias de celebridades de
Hollywood: Bill e Hillary Clinton disfrutaram de sua lua-de-mel na ilha caribenha.
O turismo era uma das grandes apostas para o país depois do terremoto. Hoje, as
janelas vedadas e muros cada vez mais altos mostram que o Haiti é um país
blindado a esta possibilidade.
Onde está o dinheiro?
A questão haitiana é complexa e a resposta para onde foi o dinheiro da cooperação não é tão simples de responder. Grande parte nunca chegou, outra se perdeu no processo burocrático, na corrupção, no uso indevido de fundos, na importação de praticamente todo o material necessário para reconstruir o país e em consultores de todas as estirpes convocados para encontrar soluções viáveis e duradouras para o futuro da nação caribenha. Alguns estudos resultaram frutos, outros não.
Podemos também atribuir parte do problema à falta eficiência na coordenação dos esforços, na duplicação do trabalho, no dinheiro desperdiçado em ações momentâneas humanitárias, de curto prazo, sem ter em conta a visão global de desenvolvimento.
Lembro-me bem de um episódio que resume bem este cenário. Em uma só rua no distrito de Delmas encontrei três projetos similares de limpeza de escombros quando já não havia mais entulho no local para limpar. Os haitianos que ganhavam cinco dólares pelo dia trabalhado varriam em vão, vestidos com camisetas de diferentes projetos, cumprindo com as tarefas acordadas, apesar de não haver nada para executar.
Justiça deve ser feita aos compromissos assumidos, aos avanços realizados, a atenção dada à população e a todas as tentativas de redesenhar um plano nacional em todas as áreas para construir um Haiti sustentável. Há cinco anos voltei ao Haiti para realizar uma série de vídeos sobre o progresso do país e destacar como o Brasil contribuiu para este desenvolvimento. Novamente minha impressão era positiva. O Haiti era outro país. Os campos de deslocados onipresentes durante aquele meu primeiro ano pós-terremoto tinham praticamente desaparecido e, aqueles que permaneciam, tinham seus dias contados com planos concretos de realocação e ajuda do governo para o restabelecimento em casas marcadas como seguras.
Visitamos clínicas, escolas, centros de recreação. Vimos a reconstrução de novas residências em áreas seguras, com participação das comunidades locais. Acompanhamos agentes de saúde em suas visitas de porta em porta pela vizinhança como forma de atenção prévia para evitar o desenvolvimento de doenças preveníveis.
Conhecemos um novo hospital construído em uma aliança tripartida entre Brasil, Cuba e Haiti, equipado e preparado para atender a população. Até a ameaça do cólera parecia, por fim, dar uma trégua. Dos mais de cem leitos disponíveis em um centro de tratamento, encontramos apenas três pacientes.
Prover dignidade
Mas em uma visita às ruínas da Catedral de Porto Príncipe, a mesma em que Zilda Arns faleceu na tragédia, uma das únicas mulheres em situação miserável que encontramos nos trouxe de volta à realidade e nos sinalizou o maior problema do Haiti: emprego.
“Não queremos ajudas pontuais. Queremos um emprego, a oportunidade de nos levantar com nossos pés. Queremos dignidade”, ressaltou.
Este texto é um relato sobre as impressões que tenho de anos de conversa com diferentes haitianos, jornalistas, representantes das Nações Unidas, membros de ONG, militares e pessoas que estiveram e trabalham por e para o Haiti e leitura de livros
históricos e artigos de diversas fontes de informação.
A lista de culpados pelo fracasso da reconstrução é enorme e varia segundo o interlocutor. Os haitianos culpam os Clintons, que, por muitos anos, influenciaram a política local e tentaram, sem muito sucesso, atrair grandes investimentos e mudar o panorama industrial no país. Link para o artigo de The Guardian
A imprensa prefere culpar a enxurrada de ONGs que invadiram o país, a sucessão de governos pouco comprometidos e a descoordenação da ONU.
Outros culpam a elite haitiana de velar apenas por seus interesses e ser incapaz de ceder,
principalmente no quesito de posse de terras e concessão para facilitar uma reconstrução
digna e o desenvolvimento de novos projetos de infraestrutura. Em parte, todos nós somos culpados por não exigir transparência e responsabilização pelo destino das contribuições que realizamos para a reconstrução do país.
Se tenho direito a uma opinião, a mazela do Haiti se encontra no desemprego. Na
incapacidade de criar indústrias, serviços e centros que invistam, aproveitem e retenham o talento interno. Que permitam que a população consiga viver com mais de 1 dólar diário, que decidam como querem reconstruir suas vidas.