Pedro Matos, Por dentro da África
A Primavera Árabe faz alusão a Primavera de Praga (1968). Ambas compartilham algumas características e são singulares em alguns pontos. A Primavera de Praga tratou de um período de liberalização política e econômica na Tchecoslováquia, quando ainda era um país satélite da antiga União Soviética. O movimento foi orquestrado por intelectuais reformistas do Partido Comunista Tcheco que objetivavam maiores direitos ao povo, democratização, liberdade de imprensa e de expressão e a descentralização, ainda que relativa da economia.
A principal ferramenta usada para capitanear essas reivindicações foi a resistência não violenta. Porém, o resultado foi trágico. As reformas foram travadas pela antiga União Soviética. Voltou-se a vigorar o Partido Único, que pôs fim às liberdades até então conquistadas. Diante disso, um jovem ateou fogo ao próprio corpo numa Praça de Praga, em 1969.
Ao analisar a Primavera Árabe depara-se com semelhantes variáveis sociopolíticas. Na realidade, a revolução democrática nos países árabes é um dos maiores eventos da democracia contemporânea. Trata-se de uma revolução histórica, que visa denunciar, não somente os dirigentes dos países, mas também o sistema político e econômico obsoleto que não mais corresponde às realidades da maioria da população. Sistemas esses aflorados na pós-independência com a manutenção dos regimes políticos corruptos e autoritários com a colaboração direta dos países Ocidentais (Europa e Estados Unidos), e estruturas econômicas que não permitiriam a acumulação local, consequentemente nem o desenvolvimento econômico desses países. Antes o contrário, as riquezas extraídas e produzidas na maioria dos países africanos continuavam (continuam) sendo enviados para as ex-potências coloniais e imperialistas.
Esse quadro causou uma revolta: por não haver um projeto social que incluísse as demandas das populações locais, e o próprio povo na sua elaboração, criou-se um vácuo sociopolítico, um distanciamento entre o governante e os governados. Esse vácuo de poder foi ocupado por movimentos e grupos rebeldes que encontraram um terreno fértil para propagação de suas ideologias. Portanto, eles não são órfãos dessa complexidade sociopolítica.
Obviamente que, em se tratando da Primavera Árabe, ela se alimentou também de eventos internacionais recentes, como a crise de subprime estadunidense em 2008 que atingiu tanto as economias periféricas como também as centrais do mundo, levando com que o aumento no preço de petróleo afetasse grandes produtores africanos e do Oriente médio, que por sua vez, refletiu-se no aumento dos preços dos produtos alimentícios, agravando a crise alimentícia muito grave no Chifre da África, em 2011. Destarte, esse é o espectro social e político a partir do qual acelerou a “Primavera Árabe”.
No que tange a ferramenta, as novas tecnologias conectadas a internet se mostraram armas poderosas de propagação de informações, mas também de mobilização. Enquanto as praças se assumiram como espaços off-line de concretização das reivindicações. As reivindicações e as ferramentas foram usadas, mormente por jovens, que se atuaram como jornalistas, retratando e divulgando as revoltas de seus povos.
Os resultados foram (continuam sendo) trágicos: A Primavera Árabe iniciou-se na Tunísia, em 2010, quando um jovem vendedor de verduras ateou fogo ao próprio corpo como forma de manifestação contra os impostos abusivos que lhe foi cobrado, e de maneira geral, contra as péssimas condições de vida de seu país. O ato ganhou amparo nacional e se espalhou pela região, tendo semelhante reivindicação: denunciar um sistema político e econômico inoperantes socialmente.
Porém, como sublinha Revilla e Hovanyi (2013)[1] não se pode enquadrar a Primavera Árabe como um único acontecimento histórico que transformou estrutural e culturalmente a região. As manifestações oriundas de Tunísia produziram três tipos de resultados nos países vizinhos mediantes as condições geopolíticas e econômicas dos países e o perfil dos atores envolvidos no conflito. Primeiro: quedas de governo (Tunísia, Egito e Líbia); segundo: mudança na composição de governos, ou reformas políticas (Jordânia, Omã, Marrocos) e terceiro: repressão armada sem fim identificado (Síria).
De fato, a tentativa de esticar a estação da primavera aos demais países, ou rotulá-la para todas as revoltas sociais e políticas na região recai na ideia distorcida da visão ocidental que existe um destino comum para todos esses países que tiveram manifestações populares (REVILLA; HOVANYI, 2013).
Neste sentido, a primavera se assume como uma metáfora a um despertar social, a travessia para o “jardim democrático”. Entretanto, como a própria metáfora ela é uma ilusão: para que se chegue à estação da primavera é preciso enfrentar as intempéries do inverno; e depois cultivar boas sementes para que floresçam na primavera. Desafios e tarefas que as intervenções militares externas não quiseram enfrentar e realizar. Os países ocidentais jogaram um “pacote” de sementes de democracia em uma terra árida e queriam que o milagre acontecesse: que se transformasse em um jardim. Ou talvez, nunca quiseram que essa região árida conhecesse a primavera, mas que permanecesse (e permaneça) em um caos, um inferno. Pois, só através desses estados contínuos se justifica perante a “comunidade internacional” a missão democrática: salvar os pobres do inferno ditatorial.
Importante lembrar que a intervenção só veio quando os eventos mudaram da Península Arábica para o Golfo Pérsico; ou quando houve transbordamento de manifestação da Tunísia para o Egito, país central na política externa estadunidense na região. Ademais, esses países que presenciaram as revoltas populares fazem parte dos maiores produtores de petróleo do mundo e são geoestrategicamente importantes, e há um interesse enorme por parte dos países ocidentais em controlar os hidrocarbonetos dessas regiões. Sendo assim, quaisquer mudanças políticas ou econômicas só acontecerão sobre o aval das principais potências mundiais, notadamente os Estados Unidos e os países da Europa.
De modo que, entender a postura do Kadafi em renegociar os contratos de exportações petrolíferas para França e o bloqueio às empresas francesas que tentavam explorar a água no deserto Sul da Líbia, exportando-a para a costa mediterrânea, assim como, a recusa do Kadafi para a instalação de base militar-Comando dos Estados Unidos para África-(AFRICOM) permite também, entender a sua eliminação física. Se não vejamos, o país voltou à instabilidade política e de modo geral ao caos social, assim como os outros países.
O ponto importante talvez nem seja isso, e sim, que a intervenção externa e nos moldes que ela se processou, sem se preocupar em estabelecer de fato um ambiente democrático e apoio para esses governos retomarem seus projetos sociais, no sentido de englobar toda a população, criou-se mais uma vez um vácuo político. Não houve um interesse em colocar um governo do povo, e sim, em montar uma estrutura que continuasse a salvaguardar os interesses ocidentais. Na intervenção externa, os conflitos permitiram a criação de novos grupos extremistas e reforço do poder das milícias armadas que tiveram acesso ao arsenal de armas dos ditadores depostos. Com o controle dessas armas, os grupos rebeldes passaram a controlar algumas partes dos países do Norte da África impondo a ideia de Estado Islâmico. Dessa forma, entender a postura incoerente e as ações cruéis de grupos como Boko Haram e Al-Shabaab é necessário, antes, mobilizar as variáveis sociopolíticas nestas regiões. São grupos que se proliferaram em regiões pobres, ignoradas pelo governo central, nas quais os benefícios gerados pelas riquezas do país não consegue chegar aos mais necessitados. São de fato, grupos rebeldes esquizofrênicos, mas produtos de um corpo social debilitante e que os remédios prescritos por países intervencionistas só fazem permanecer esse estado.
[1] REVILLA, Marisa; HOVANYI, Réka. La “primavera árabe” y las revoluciones en Oriente Medio y Norte de África: episodios, acontecimientos y dinámicas. XI CONGRESO ESPAÑOL DE SOCIOLOGÍA. Madrid, 10-12 de julio de 2013.
Nascido em Cabo Verde, Pedro Matos é doutorando em Relações Internacionais pela PUC Minas