Conflito religioso e violência contra crianças acentuam crise na República Centro-Africana

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Crianças na República Centro-Africana / Foto: ONU
Crianças na República Centro-Africana / Foto: ONU

Natalia da Luz, Por dentro da África

Rio – Um conflito de grandes proporções e violações de direitos humanos clama pela atenção do mundo. Desde que a violência eclodiu em Bangui (capital da República Centro-Africana), no início de dezembro de 2013, cerca de 2/3 de seus moradores deixaram suas casas rumo a 65 campos para refugiados. Neste cenário de medo, as crianças sofrem a maior ameaça de grupos armados.

– A entrega de serviço público é mínima em áreas urbanas e, praticamente, inexistente longe de grandes centros. Temos muitas necessidades, e a resposta humanitária é limitada pela violência, insegurança e falta de financiamento –disse, em entrevista exclusiva ao Por dentro da África, o responsável pela Unicef na República Centro-Africana.

republica centro-africanaA crise atual no país começou em março de 2013. Dez anos antes, em 2003, um golpe de Estado depôs Patassé, e o líder rebelde François Bozizé assumiu o poder. Dois anos depois, ele organizou eleições presidenciais,vencendo no segundo turno. Em março de 2013, Bozizé foi deposto por um novo golpe comandado por Michel Djotodia, após a coalizão rebelde Seleka assumir o controle da capital.

Desde então, com o agravamento da crise nos últimos 12 meses, quase um milhão (dentre os 4,6 milhões de habitantes) ainda estão deslocados ou  fugiram para países vizinhos em busca de refúgio contra o conflito, que assumiu conotações cada vez mais sectárias, uma vez que milícias (cristãs e muçulmanas) pegaram em armas.

Djotodia foi o primeiro líder muçulmano da República Centro-Africana – nação majoritariamente cristã. Ele renunciou à presidência em janeiro deste ano, numa tentativa de conter o conflito, mas milícias rivais continuam lutando. Para um governo de transição, assumiu como presidente, em janeiro deste ano, Catherine Samba-Panza.

RCA - ONU
Mãe e filho recebem ajuda da ONU na República Centro-Africana. Foto: PMA

Na semana passada, Navi Pillay, alta comissária da ONU para os Direitos Humanos, disse, em comunicado à imprensa, que “o ódio intercomunitário permanece em um nível aterrorizador. A RCA se tornou um país onde as pessoas não são apenas mortas, mas torturadas, mutiladas, queimadas e desmembradas – às vezes por multidões espontâneas, bem como por grupos organizados de combatentes armados”.

De acordo com Souleymane Dibate, a UNICEF tem apelado repetidamente pelo fim da violência, na intenção de que os agentes humanitários possam atender crianças e famílias desprotegidas e feridas. O recrutamento de crianças pelos grupos armados é uma dura realidade que a equipe de Dibate precisa conviver.

– Embora as condições de segurança sejam grandes desafios para proteger e para verificar os números exatos de crianças atingidas pelo conflito, acreditamos que, pelo menos, 3.500 crianças (o número pode chegar a 6000) estejam associadas aos grupos armados. O recrutamento tem aumentado consideravelmente devido à escalada dos combates e do surgimento de grupos de auto-defesa, tais como o “anti-Balaka”, destaca Dibate.

O Seleka é uma coalizão que foi formada em agosto de 2012 por diferentes facções políticas e milícias hostis ao governo do presidente François Bozizé. A Seleka tem uma orientação religiosa muçulmana, mas não tem uma linha política definida.  Do outro lado, está o Anti-Balaka, termo utilizado para se referir às milícias cristãs formadas na República Centro-Africana, após a ascensão ao poder de Michel Djotodia. Anti-Balaka significa “anti-machete” ou “anti-espada”, nas línguas locais sango e mandja.

 Foto: OCHA/C. Illemassene
República Centro-Africana – Foto: OCHA/C. Illemassene

Dibate conta que a preocupação não se limita às crianças recrutadas pelas milícias. Em alerta, também estão os casos de crianças órfãs, perdidas e mutiladas.

– À medida que a crise na República Centro-Africana coloca cada vez mais comunidades contra as outras, as violações contra as crianças aumentam. Desde dezembro de 2013, a UNICEF e os seus parceiros têm verificado as mortes de pelo menos 133 crianças (incluindo duas crianças que foram degoladas) e 62 feridas.

Ausência do Estado

– As principais lideranças do Estado me informaram que não há, de fato, nenhum Estado: nenhum exército nacional coerente, nenhuma polícia, nenhum sistema de justiça; quase nenhum lugar para deter os criminosos, e sem os meios de acusar, processar ou condenar os prisioneiros. A chamada ‘cadeia penal’ não é apenas incompleta, ela não está funcionando”, explicou Navi Pillay, em comunicado à imprensa.

ACNUR RCA
República Centro-Africana – Foto: ACNUR

Dibate conta que a ausência de lei e ordem  são grandes obstáculos para a resposta humanitária. Em Bangui, o acesso é limitado por um ambiente operacional volátil e imprevisível. Na cidade de Bossangoa, por conta de intensos confrontos na segunda semana de dezembro, as atividades foram suspensas por muitos dias.

Segundo a ONU, do total de 4,6 milhões de habitantes, mais da metade – 2,5 milhões – precisam de assistência humanitária imediata. Mais de 600 mil pessoas estão deslocadas internamente devido aos recentes conflitos, sendo 177 mil só na capital.

Dibate ressaltou que a capacidade insuficiente restringe a resposta humanitária. Mais parceiros são necessários no setor de água, saneamento e higiene, para responder aos números de pessoas deslocadas. No entanto, apesar dos desafios, a UNICEF tem conseguido obter bons resultados para as crianças do país.

-A UNICEF completou recentemente (com uma equipe de 100 funcionários) uma campanha de vacinação integrada visando 210.000 crianças deslocadas emBangui, com sarampo, poliomielite, vitamina A, medicação desparasitação e triagem nutricional – listou.

O país mais perigoso para as crianças

Pessoas internamente deslocadas na República Centro-Africana pelos conflitos. Foto: ACNUR / H. Caux
Pessoas internamente deslocadas na República Centro-Africana pelos conflitos. Foto: ACNUR / H. Caux

A República Centro-Africana tem sido um dos lugares mais difíceis do mundo para as crianças. Mesmo antes da crise, a CAR era classificada entre os dez países em indicadores de desenvolvimento com pouca ou nenhuma melhora nos últimos 20 anos.

Segundo dados da UNICEF, a taxa de mortalidade de menores de cinco anos é de 164, a sexta maior do mundo. A taxa de mortalidade infantil é de 108, a quarta maior do mundo. A mortalidade materna é 890, a terceira maior do mundo.

– A mais recente crise agravou uma situação já extremamente frágil para as mulheres e crianças. A UNICEF estima que toda a população é direta ou indiretamente afetada pela crise, com a falta de acesso a serviços básicos e exposição a ilegalidade em todo o país .

Serra Leoa e República Centro-Africana

Serra Leona - Foto: Guy Tillum - ONU
Serra Leoa – Foto: Guy Tillum – ONU

Durante 10 anos (1991 – 2001), Serra Leoa, localizada na costa Ocidental da África, conviveu com os horrores da guerra, que afetou, principalmente, as crianças. Meninos e meninas foram recrutados para servir os grupos armados, como o Revolutionary United Front (RUF), em um conflito que destruiu o país. Estima-se que cerca de 10 mil crianças tenham sido obrigadas a lutar com metralhadoras em punho.

– Cada situação é única, mas o que as crianças recrutadas por grupos armados têm em comum é o trauma associado à tremenda violência. Estas crianças são, muitas vezes, obrigadas a testemunhar e a cometerem violência, mesmo sendo abusadas, exploradas e feridas. Isso traz consequências físicas e emocionais graves.

Genocídio e perseguição étnica

A nação está dividida em mais de 80 grupos étnicos, cada um com sua própria língua. Os maiores grupos étnicos são os Baya (33%), Banda (27%), Mandjia (13%), Sara (10%), MBOUM (7%), M’Baka (4%) e Yakoma (4%), com os outros 2% incluindo descendentes de europeus, principalmente franceses. As principais línguas são o Sangho (língua materna para 17% da população), e o Manza (11%) e  o francês (idioma do colonizador)

 Civis deslocados na República Centro-Africana (RCA) encontram abrigo em uma igreja na capital Bangui. Foto: ACNUR/L. Wiseberg Civis deslocados na República Centro-Africana (RCA) encontram abrigo em uma igreja na capital Bangui. Foto: ACNUR/L. Wiseberg
Civis deslocados na República Centro-Africana (RCA) encontram abrigo em uma igreja na capital Bangui. Foto: ACNUR/L. Wiseberg

Os cristãos formam 66% da população, enquanto 18 % mantém elementos das religiões tradicionais africanas. O Islamismo é praticado por cerca de 15 % da população do país.

Grupos de direitos humanos documentaram centenas de mortes desde o início de janeiro, quando o governo rebelde muçulmano desmoronou, e os combatentes cristãos procuraram vingar abusos do regime.

Desde o mês passado, de acordo com a ONU, a violência sectária entre cristãos e muçulmanos na República Centro-Africana já deixou pelo menos mil mortos. A crise tem devastado tanto a comunidade cristã quanto a muçulmana, e o apelo urgente que emana de todas as comunidades é pela proteção.

– É necessária uma ação coletiva urgente para parar a matança. A urgência de proteção tem sido reconhecida pela Resolução do Conselho de Segurança da ONU, exigindo a proteção dos civis. Há evidências documentadas de ataques de retaliação e execuções arbitrárias, recrutamento de crianças-soldados, violência sexual generalizada e ataques às instalações médicas. É preciso abrir canais de diálogo intercomunitário com líderes comunitários e religiosos a fim de uma resposta humanitária.

Por dentro da África