Por Susan de Oliveira, Por dentro da África
No dia 28 de março de 2016 será lida, pelo Juiz Januário Domingos José, a sentença que põe fim ao julgamento dos 15+2 ativistas angolanos/as em prisão domiciliar desde o dia 18 de dezembro passado.
As acusações finais foram modificadas devido à falta das provas que dariam consequência à peça acusatória inicial. Mais uma vez, a Justiça se amolda aos interesses da condenação visto que as acusações da Procuradoria Geral da República se mostraram frágeis diante dos fatos apresentados.
Então, muda-se a acusação para aquilo que os fatos possam corroborar. Com isto, a acusação de “atentado ao Presidente da República” deixou de existir bem como a de “falsificação de identidade” relativa ao Nito Alves, que se encontra preso em regime fechado, condenado a seis meses por desacato ao ter dito que o julgamento era “uma palhaçada”. Manteve-se, entretanto, a acusação coletiva de “atos preparatórios de rebelião” e foi incluída a de “associação de malfeitores”.
Assim, o que chama a atenção é que a tal associação seria decorrente da interpretação do júri acerca do comportamento dos ativistas dentro do Tribunal. Como disse, é uma acusação nova surgida durante o longo processo tal como são a de Nito Alves e a de Nuno Álvaro Dala, que também está preso em regime fechado pelo mesmo motivo.
O suplício da greve de fome
Nuno Dala não compareceu ao Tribunal como forma de protesto porque a ele não foram entregues os documentos, exames clínicos e pertences pessoais o que o impediu de seguir em tratamento médico e acessar a sua conta bancária, entre outros. Diante da sua recusa, ele teve, ato contínuo, a prisão decretada e a partir de então radicalizou o protesto. Encontra-se há duas semanas em greve de fome. Segundo a irmã do ativista, Gertrudes Dala, ele está bastante debilitado e corre risco de morte.
O suplício de Nuno é algo que choca sensivelmente porque, em primeiro lugar, ele começou o protesto quando estava em prisão domiciliar e voluntariamente colocou-se em situação de ser punido pelo Tribunal por desobediência. Antes de ser um risco mal calculado, é uma reação de um homem desesperado pela desumanização que a situação carcerária impôs, não importa se domiciliar ou não. Não ter acesso aos documentos, aos exames, incorre num processo desumanizador, de não reconhecimento e de perda da dignidade. Para alguns, isto produz um impacto devastador equivalente à tortura.
Tanto assim que Nuno entrou em greve de fome imediatamente após voltar ao cárcere. É um homem que sofre intensamente o processo de desumanização e a ele está resignado. Em outros momentos em que escrevi sobre a situação dos ativistas, preocupava-me muito as formas de tortura psicológica e a dor da desumanização progressiva em razão da demora do julgamento.
A greve de fome de Nuno Álvaro Dala, como ocorreu com a de Luaty Beirão, extrapola as decisões censoras do Tribunal e as politiza além do que se espera, pois exatamente quando resolve omitir-se para humilhar e silenciar os ativistas, é este gesto que acaba gerando comoção e mobilização pública como já ocorre em razão da desatenção à saúde do ativista. Vigílias e campanhas estão se repetindo para resgatar a humanidade perdida na peça kafkiana que é este julgamento.
O riso dos malfeitores
Quem não se lembra de que no primeiro dia de julgamento estavam eles de pés descalços a denunciar a penúria que passavam na vida carcerária? Quem não se lembra que, além disso, entraram no Tribunal com inscrições de protesto nas roupas de presidiários? E, por último, quem conseguiu conter o riso com a auto-ironia das caras de palhaços?
São esses de pés descalços e caras de palhaços os que desafiam as leis angolanas? Os que põem em risco a segurança do Estado?
O riso, diria o filósofo Henri Bergson, é a pura inteligência. E é propriamente um comportamento de grupo, um fenômeno exterior, um riso nunca é solitário. O que provoca o riso dirige-se ao outro, é ação inteligente que conta com a inteligência do outro assim como a ironia que é um fato subjetivo e refinado da interpretação. Uma ironia não se explica, ou a entendemos ou deixa de sê-lo.
O Tribunal não entendeu essa forma sutil de crítica e tomou-a como ofensa provando assim a pouca inteligência com que lida com os fenômenos da expressão e da linguagem. Deste Tribunal não há indícios de que se pudesse esperar outra coisa. Fazer de uma lista insólita e de irreverente diversão nas redes sociais uma peça acusatória de conspiração contra o governo não é só de uma total falta de humor, com todo o respeito aos citados, mas de falta de inteligência.
Vejamos com Bergson: Para o filósofo, uma função fundamental do riso é produzir uma excentricidade frente aquilo que significa uma conduta humana passível de ser corrigida, um exagero premeditado que tem como objetivo, digamos, alertar para algum comportamento que está enrijecido ou obsoleto na sociedade.
“O rígido, o já feito, o mecânico, contrariamente ao maleável, ao continuadamente cambiante, ao vivo, o desvio contrariamente à atenção, enfim, o automatismo contrastando com a atividade livre, eis em suma o que o riso ressalta e pretende corrigir.” (BERGSON, Henri. “Ensaio sobre a significação do cômico”. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1983, p. 62)
Por outro lado, nós que rimos das performances dos ativistas, também fazemos parte do grupo dos malfeitores porque ao rirmos estabelecemos um laço crítico, uma cumplicidade e um pertencimento. Não há riso que não seja um fenômeno social, uma forma de expressão coletiva, ensina o filósofo. Condená-los, então, por associação cômica, por auto-ironia?
O Tribunal, que censura o riso ao penalizar os ativistas e vice-versa, oferece a eles e a nós o escárnio moralizador de um julgamento sem nexo e sem fim. Iniciado com um propósito de assegurar uma ordem anacrônica ao desenvolvimento da livre expressão e da vida democrática. Lembramos que tudo começou porque estavam a ler um livro do qual poderia ou não advir alguma consequência. Mas nenhuma consequência houve porque a prisão ocorreu exatamente para que não houvesse consequência naquele momento. E se continuasse não havendo até hoje, dez meses depois? Estaríamos como, aliás, estamos diante de uma injustiça brutal porque a todos deve ser dado o benefício da presunção de inocência até que se prove irrefutavelmente a culpa por algo efetivamente acontecido. Se aquele seria um ato preparatório de rebelião não o sabemos pelos indícios ou provas, mas pelo julgamento moral. É isto que conseguiu provar o Tribunal angolano.
Desta forma, o que o Tribunal buscou foi perseguir a hipótese do que poderia ter ocorrido. Os fatos que apresentaram são questionáveis, ambíguos e suas interpretações ridículas.
Ficará para sempre a constatação de que esse julgamento foi uma farsa grotesca do começo ao fim. Em meio a máscaras e maus atores, os bravos ativistas trouxeram o riso e a crítica inteligente dos que marcam inevitavelmente as transformações sociais.