Natalia da Luz – Publicado no Portal AHE!, em 05/11/2012
Trabalho indicado ao Prêmio Superar 2012 de Melhor Reportagem Web. Por conta da mesma reportagem, a autora foi homenageada pelo presidente líbio Mohamed al-Margarif durante celebração do Dia Internacional de Pessoas com Deficiência, em Tripoli, no dia 3 de dezembro de 2012.
Londres e Rio – Após uma revolução, o período que se estabelece é de amadurecimento, de reorganização de uma nova concepção de sociedade. O sistema que mesclava opressão e violência deixa de funcionar em nome da chamada democracia ou do que, relativamente, se assemelha a ela. Longe das mãos de um ditador que, durante 42 anos, comandou um povo, que unido o depôs, atletas líbios encontram no paradesporto um poderoso instrumento de integração à sociedade
– Eu fui para Londres representar a Líbia. Nós mostramos a nossa bandeira com o real país onde vivemos e não com o rosto de Gaddafi – disse em entrevista exclusiva ao ahe! Abdelrazik Baaba, atleta de levantamento de peso que ficou com sequelas após contrair poliomelite (doença viral que pode provocar paralisia e deformações no corpo). Ele nasceu em Benghazi, por onde a Primavera Árabe (onda revolucionária de manifestações políticas contra os regimes autoritários) se expandiu na Líbia, impossibilitando o treino e a preparação de atletas, inclusive a de Baaba, por muitos meses
A participação em Londres, apesar de discreta, deu sinais de uma nova era para o país do Norte da África, à beira do Mar Mediterrâneo. A Líbia foi o terceiro na lista dos países que aderiram à Primavera Árabe, que começou na vizinha Tunísia com o protesto de um jovem que ateou fogo ao próprio corpo, em dezembro de 2010. O movimento se espalhou pelo norte do continente africano e Oriente Médio, como o Iêmen e Omã.
Apesar de ter o maior IDH do continente africano (0,755 em 2010), a Líbia, independente desde 1951, esteve, nas últimas décadas, nas mãos do ex-ditador Muammar al-Gaddafi, deposto e assassinado em 20 de outubro de 2011. Por conta do período de conflito, que se estendeu por 2011, a estimativa de IDH baixou 10 pontos percentuais no ano seguinte deixando o país próximo à 64ª colocação, mesmo assim, 20 posições à frente do Brasil, com 84ª.
Passado de indiferença com o paradesporto
Em um contigente que ultrapassa os sete milhões de habitantes, a Líbia tem menos de 2 mil praticantes no paradesporto. Segundo Baaba, o assunto não era de interesse durante a era Gaddafi, apesar de o Comitê Paralímpico Líbio existir desde 1981. Oficialmente, 10 modalidades são praticadas na Líbia, como o atletismo, basquete, goalball, levantamento de peso, natação e xadrez. Uma lista encorpada, mas que sofria e ainda sofre com a ausência de investimento – ainda pouco – que vem do Ministério dos Esportes.
– Os desafios no paradesporto são consequência da falta de suporte. A maior motivação vem da vontade em fazer bons resultados, pelo orgulho de tentar, pelo prazer, mas não temos a infraestrutura correta – disse o paratleta de 37 anos, que, em Londres, disputou na categoria de 82 quilos, completando que espera, a partir de agora, que os líbios possam competir não apenas pelo objetivo de participar, mas por medalhas. O país conquistou sua primeira medalha paralímpica em Sidney 2000, com Abdelrahim Hamed, bronze na categoria acima dos 100 quilos, após levantar 235 kg.
Nos Jogos de 2012, a Líbia levou 5 atletas para a Olimpíada e 2 para a Paralimpíada, Assim como seus conterrâneos, Baaba não teve a infraestrutura mínima e o tempo hábil para treinar. Mesmo assim, garantiu o seu passaporte no Campeonato dos Emirados Árabes, em fevereiro deste ano. Na sua estreia em Jogos Paralímpicos, ele levantou 155 quilos, ficando em 12 ° lugar. A medalha de ouro na mesma categoria ficou com o iraniano Majid Farzin, que ergueu 237kg.
Em entrevista exclusiva ao ahe!, o presidente do Comitê Paralímpico da Líbia Khaled Rgibi considerou os Jogos um sucesso, mesmo longe do pódio.
– A nossa participação foi muito importante. Eu gosto de expressar a minha felicidade por ter visto a Líbia atuando mais do que bem em todos os níveis – disse, lembrando que a participação aconteceu logo após um período político delicado de reorganização do país, agora governado pelo presidente do Congresso Líbio Mohammed Magarief, famoso opositor do regime do ex-ditador.
Democracia que inspira novos dias
Desde 1969, Gaddafi mantinha um governo com fama de opressivo, de excentricidades, abusos sexuais e morais. Segundo a organização internacional Human Rights Watch, o regime prendeu centenas de pessoas por, supostamente, terem violado a lei e sentenciou algumas à morte. Também há relatos de tortura e desaparecimentos ainda incalculáveis. Após mais de seis meses de protestos intensos e violentos, o ditador foi capturado e assassinado aos 68 anos.
– Os dias de opressão acabaram. Tudo que representava Gaddafi e seus filhos não existe mais e, graças a Deus, muitas coisas mudaram. Eu desejo que possamos estabelecer um bom país para todos, e isso inclui os atletas – desabafa no cenário novo, no qual o povo foi às urnas para eleger membros do Conselho Nacional Geral. Um feito que não se repetia há 60 anos.
Parte da família de Gaddafi foi acolhida e vive hoje na Argélia, também no norte do continente africano, enquanto o Tribunal Penal Internacional (TPI) junta provas para julgar Saif al-Islam, filho do ex-ditador, suspeito de crimes contra a humanidade. Saif al-Islam é acusado de ordenar disparos contra manifestantes e de recrutar mercenários paquistaneses para lutar contra os rebeldes. O Tribunal e o governo líbio disputam o direito de julgar o réu. Se condenado pelo governo, ele poderá ser enforcado.
Na tentativa de deixar o passado de lado e unir forças para chegar ao pódio, a expectativa é de que o período pós-Gaddafi possa estimular empresas e o setor privado a investirem no paradesporto.
– Nossa classe foi muito ignorada durante os anos de ditadura, tanto no setor público quanto privado. Espero que, no futuro, tenhamos uma situação bem diferente para todos. Agradecemos a Deus porque muitas coisas mudaram. Eu desejo que possamos elevar as nossas expectativas para viver como os países felizes. Ainda entusiasmado com a participação em Londres, Babaa disse que as medalhas virão no futuro, provavelmente na Rio 2016.
– Estamos pensando no futuro e em uma participação mais intensa na Rio 2016. O nosso foco agora é garantir classificação no Cairo, em dezembro, e depois eu prometo conseguir as mais altas marcas – disse o presidente da entidade.