Natalia da Luz, Por dentro da África
(Relembrando um ano do amistoso de paz. – Artigo publicado no ahe! em 27/02/2013)
Tripoli – Há 28 anos, eles desembarcaram em Trípoli, capital da Líbia, para um jogo de futebol contra a seleção do país. No estádio, o público aguardava ansioso pelo apito inicial, que só aconteceria após a chegada – atrasada – de Muammar Al-Gaddafi, ex-ditador deposto há dois anos. Hoje, de volta ao país que se reconstrói com o mantra da democracia, o jogo começa com o povo, sem a autorização de um tirano.
– Nós já estávamos prontos, e o estádio estava lindo, lotado, mas a partida só começou quando o Gaddafi chegou – contou em entrevista ao ahe! Paulo Henrique, que pisou pela segunda vez no gramado do Estádio Internacional de Trípoli no último domingo, relembrando com os parceiros Zé Carlos e Adílio a ida do time do Flamengo em 1985 ao país do norte da África.
Autoproclamando-se rei dos reis da África, a vaidade do ex-ditador limitava até mesmo o talento de quem compartilhava uma paixão nacional. A música, a literatura, as artes, o esporte sofriam repressão e tinham suas arestas de sucesso aparadas com frequência. Isso porque o surgimento de um ídolo em qualquer segmento era motivo de muita preocupação, já que Gaddafi não aceitava dividir as atenções com um conterrâneo.
– Eu fiquei muito feliz em poder retornar e participar de um evento tão importante para essa nova fase da Líbia. A nossa presença aqui é uma mensagem de paz. Hoje, ao sair na rua, eu posso ver as pessoas alegres com a bandeira do país por todo o canto – destaca o lateral Paulo Henrique sobre o símbolo, que durante quatro décadas ficou escondido.
Bandeira e o resgate da identidade
As bandeiras pelas ruas e pelo estádio são novas para as gerações mais recentes, mas não para quem lutou pela independência da Itália, em 1951. Do ano da libertação até a tomada do poder de Gaddafi, em 1969, a bandeira adotada era a que tremula hoje nas ruas do país.
Quando Gaddafi assumiu o poder, em 1969, colocando para escanteio o rei Idris I, ele instituiu novas bandeiras até definir, em 1977, a que ficaria em vigor até a sua queda, em 2011. Neste período, faltava identidade, representação. Ela era absolutamente verde, sem qualquer símbolo, brasão, significado. Hoje, suas cores representam as três regiões históricas da Líbia: Fezã (vermelha). Cirenaica (preta) e Tripolitânia (verde)
A partida que fez parte da celebração de dois anos do fim da ditadura (a comemoração official foi no dia 17 de fevereiro), teve placar de 2×1 (com dois gols de Renato Carioca) para a equipe brasileira e foi transmitida ao vivo, a partir de uma união de forças do Ministéro dos Esportes Líbio, da embaixada brasileira na cidade, do presidente do Grupo Parlamentar Brasil-Libia, Adrian Mussi, e das empresas brasileiras em atividade no país como a Queiroz Galvão, Andrade Gutierrez e Odebrecht, que viabilizaram o evento.
Visita ao palácio de Gaddafi
No passado, a visita de uma semana com dois jogos: um em Trípoli e outro a 650 quilômetros, em Bengazi, cidade que liderou a revolução contra o ex-ditador, foi de muito trabalho. Como o zagueiro Zé Carlos lembra, era do estádio para o hotel e do hotel para o treino. Em um dos intervalos, a equipe profissional do Flamengo na época foi convidada para um jantar em Bab Al Azizya, na época, residência do ex-ditador, que não apareceu, mas enviou representantes.
– Havia muita extravagância. Era tudo de ouro, com muito luxo. Fomos recepcionados pelas autoridades e recebemos um presente do Gaddafi: um relógio em ouro com o rosto dele – detalhou Zé, que não chegou a usar o souvenir. Deu o presente ao pai, que por mais de duas décadas o usou, mas agora não lembra onde foi parar.
Flores no lugar de jóia
Do ônibus que transportava o time, o zagueiro Zé olhava intrigado para o palácio que ele visitara há quase 30 anos e que fora completamente destruído durante a revolução. Durante esta curta temporada, não teve dose de extravagância. O que Zé e os companheiros receberam das autoridades foram apertos de mãos, flores, bandeiras do país e muito carinho, uma atenção que o comoveu, relatou ao ahe!, veículo convidado pelo Ministério dos Esportes Líbio e pelos organizadores para cobrir o evento.
Organizadores falam sobre a importância da missão de paz do Fla
– Lembro que houve muito assédio, mas não tivemos todo esse carinho como desta vez. Agora, as pessoas foram muito gentis, afetuosas, mais abertas e isso foi muito marcante para todos nós. Formamos uma família com a companhia do embaixador Afonso Carbonar, do deputado Adrian Mussi e dos realizadores do evento – disse o zagueiro máster lembrando que, no Palácio, o brinde foi feito com chá.
O meio-campo Adílio, campeão do mundo pelo Flamengo em 1981, em Tokyo, também esteve presente na partida realizada em março de 1985. Assim como Paulo Henrique e Zé Carlos, ele levou um susto com a excentricidade do presente, que desta vez, teve um substituto mais humano.
– As pessoas tinham medo de sair, de ir às ruas. Ficavam se perguntando como deveriam agir. Até nós jogadores éramos vigiados. Neste novo encontro, a interação foi diferente. Os homens e as mulheres nas ruas e no hotel sorriram, cumprimentaram e abraçaram a gente. Esse contato mostra uma nova porta que se abre. Foi um verdadeiro presente – completou o jogador.
Por dentro da África