Fedi 3
Natalia da Luz, Por dentro da África – 08/03/2013

Tripoli – Ela saiu de Manchester (Inglaterra) decidida a participar da revolução na Líbia e a abrir uma porta ao futuro do seu país, após 42 anos de escuridão. Em direção à cidade natal, Bengazi (ponto de partida para a revolução líbia), ela levou a maior de suas riquezas: os três dos quatro filhos que cresceram em meio ao ativismo e à consciência de que todos têm um papel relevante no mundo. Alimentada pela coragem, ela transitava entre os centros médicos, hospitais e fronteiras líbias marcadas pela guerra que fez mais de 40 mil vitimas fatais, entre fevereiro e outubro de 2011.

– Eu estava na internet quando um amigo advogado me enviou fotos de protestos e feridos em Bengazi. Eu fiquei chocada porque vi muita destruição e imaginei que os meus amigos estivessem mortos. Fui com mais 3 médicas da Inglaterra, para dar a nossa contribuição. Depois, nos unimos às organizações, conta em entrevista exclusiva ao Por dentro da África, Fawzia Deli, que desembarcou em seu país no início de abril de 2011, dois meses após o levante de 17 de fevereiro.

Pediatra especializada em saúde mental, ela vive fora de seu país há quase 20 anos, mas ainda convive com a cultura líbia. Manchester, onde mora, possui a maior comunidade líbia fora do norte da África. São cerca de 20 mil habitantes que, durante a revolução na Líbia, ampliavam o desejo de liberdade do povo com protestos diários na cidade inglesa.

– Em todos os dias da guerra, havia protestos em Piccadilly Garden. Isso foi fantástico porque protestávamos fazendo pressão internacional. Havia advogados, enfermeiros, médicos; todos iam para a rua contra o regime. Alguns que eram do grupo pro-gaddafi desapareceram – conta a médica lembrando que, em Londres, ela se surpreendera com a repercussão do levante quando viu, em frente à embaixada líbia, a bandeira da revolução ser erguida e a do Gaddafi (a que ele instituiu) removida.

Nas fronteiras 

A guerra não destrói apenas a infraestrutura de um pais, ela corrói a identidade de um povo e a noção de lar. Não há pátria, não há casa. O que existe é um caminho comum por onde mercenários e civis trafegam. Ledi transitava por um trajeto que incluía centros médicos, hospitais e fronteiras abarrotadas de esperança e desespero.

– Cuidávamos dos feridos, das mulheres que sofriam abusos e das crianças que chegavam a todo instante com muitas marcas da guerra. Muitas estavam traumatizadas porque haviam visto seus pais e familiares serem assassinados. Elas não dormiam por causa dos pesadelos. A nossa dedicação era muito grande e tinha o suporte de médicas que chegavam o tempo todo de fora do pais. Em maio de 2011, eu fui à Itália com mais três médicas e conhecemos pessoas do the World Program Food (das Nações Unidas) que ajudaram a Líbia.

Pacientes de Fazwia Ledi durante a revolução na Líbia - Arquivo Pessoal O papel de Ledi era reerguer o conterrâneo, dando a ele uma chance de ver o novo país. Ela perdeu a conta de quantas pessoas tratou, de quantas crianças ajudou a salvar junto aos médicos que faziam cirurgias em meio à precariedade da guerra. Ela não apenas alimentava e sarava quem exibia as feridas da guerra, mas consolava e zelava como uma heroína que pensa, acima de tudo, no bem para o mundo.

– Depois do conflito, encontrei muitas mulheres e crianças que eu havia cuidado e ajudado a salvar. Eles me abraçaram e foi emocionante.

Perguntada sobre o melhor dia durante a revolução, ela responde sem hesitar que foi o dia da captura de Gaddafi (20 de outubro de 2011) porque, naquele momento, os líbios tiveram a certeza de que a revolução estava feita.

– Quando meu irmão me contou que haviam pego o Gaddafi, eu pensei que, de fato, aquele governo estava acabado. Ele era um criminoso. Se fosse preso, pediria asilo, e as pessoas continuariam com medo de ele retornar algum dia e de fazer algo pior.

Família na revolução 

Enquanto muitos corriam de Bengazi e do conflito na Líbia, ela fazia o caminho inverso como os ativistas de campo, que usam a coragem como mantra de suas vidas, como aqueles que sabem que é possível transformar não o mundo como um todo, mas o mundo de muitos.

Esse exemplo e responsabilidade são transmitidos pelo convívio. Não é a toa que os três de seus quatro filhos  (dois garotos de 24 e 21 anos e uma garota de 15) também não hesitaram em cumprir a missão na terra que, apesar de distante de Manchester, também é deles.

Campo de refugiados em Bengazi - Arquivo Pessoal – Meus filhos ajudaram muito nos centros e nas fronteiras. Eles me acompanharam durante um período alimentando as pessoas, cuidando de ferimentos, auxiliando enfermeiros… Eu fiquei muito orgulhosa deles e, certamente, foi uma das melhores coisas da vida deles.

Um novo mundo para a mulher líbia 

Sempre acompanhado do seu exército de mulheres (líbias e de outras regiões da África), o ex-ditador gostava de expor, em eventos internacionais, a máscara de defensor das mulheres, o que não convencia os conterrâneos. Durante a ditadura, o papel da mulher líbia era muito limitado e cercado por abusos contra seus direitos.

– As mulheres em geral, lutavam contra Gaddafi. Havia poucas mulheres que Gaddafi escolhia para um pequeno círculo de privilégios, mas muitas ficavam em cárcere, eram abusadas sexualmente, fisicamente, psicologicamente e, se tentassem algo, eram mortas – diz Ledi, completando que os direitos das mulheres, de fato, não existiam e que, às vezes, elas até conseguiam um cargo, mas não obtinham respeito.

O livro “Harém de Gaddafi”, da jornalista francesa Annick Cojean descreve de forma assustadora os abusos e atrocidades que ele cometia contra jovens e mulheres de seu país. Em uma nova era, elas não estão mais acuadas, amedrontadas. As mulheres líbias podem comemorar o Dia Internacional da Mulher com expectativas e desejando para o seu futuro o respeito que lhes é de direito


No segundo aniversário da revolução, no último 17 de fevereiro, Ledi lembra que a participação das mulheres foi enorme e muito importante.

– Tem muitas coisas ruins, mas há coisas boas também. Em dois anos, temos que ser realistas e temos que correr para administrar o país, com mais mulheres, inclusive.– ressaltou, completando que hoje as mulheres de sua terra estão mais abertas e expondo seus desejos, bandeiras, causas.

Preocupação

Rua de Tripoli - Natalia da luzToda guerra aumenta a oferta de armas, que precisam ser recolhidas no pós-conflito para que seja possível uma estabilização. Durante o conflito (fevereiro – outubro de 2011), muitas milícias africanas comandadas por extremistas e pagas por Gaddafi entravam no território líbio com alto poder de destruição. Apesar de uma larga campanha de recolhimento e controle das armas, instituído pelo novo governo, Fazwia mostra-se preocupada.

– A minha única preocupação no momento é com as milícias que ainda chegam de países como o Mali e Afeganistão. Eu não tenho medo dos líbios, mas dos estrangeiros extremistas. O governo está tomando o controle sobre isso porque há muitas armas, e quem estiver errado será punido.

Papel na nova Líbia 

Na Inglaterra, Ledi desenvolve diversos programas para crianças com dificuldades físicas e mentais, principalmente autismo. O departamento dela, o CYPS (Children and Young people Service)Trafford, cuida de aproximadamente 53 mil crianças e jovens. Em viagens frequentes à Líbia, ela aplica os seus programas em clínicas e hospitais de Trípoli e Bengazi tratando de crianças que foram vítimas da guerra.

– O Dia Internacional de Pessoas com Deficiência (celebrado no dia 3 de dezembro) foi muito importante para mim e para o país porque pudemos tratar o tema pensando no futuro da Líbia, com mais compromisso para as minorias e diferentes grupos da sociedade  – conta mencionando a data que tem importância única para os líbios, pelo fato de ter sido um conterrâneo (Monsour El-Kikhia )o criador da proposta enviada e aceita pela ONU.

Com programas, projetos e uma coragem de inspirar, ela leva, de forma incansável, uma mensagem de esperança para o país que ela ajudou a libertar.

– Continuarei a lutar pelo meu pais como líbia, como médica e como mulher.

Por dentro da África