Por Gabriel Ambrósio, Por dentro da África
Este texto é um parecer histórico do Zaire. Não vou falar sobre os aspectos do presente, mas da memória que a província conserva dentro da cultura local e nacional. O que os professores ensinam às crianças e jovens.
No passado, Zaire ou Nzadi que significa “as águas que caem pelo oceano”. Este é o berço do poder reconhecido pelos estudiosos da história da África. E, para o nosso conhecimento, Zaire não foi descoberta por nenhum estrangeiro, bem como Ngola-Angola também não foi descoberta, apesar de muitos “professores” de História de Angola, reproduzirem o discurso eurocêntrico sem questionar.
O que aconteceu é que Nzadi- Zaire foram invadidos pelos aventureiros europeus. Confrontar o historiador Santos[1] sobre o assunto lembrando que Zaire foi a entrada do cristianismo europeu, pois o primeiro aventureiro chegou “na foz do rio Nzadi- Zaire”, o tal Diogo Cão juntamente com os missionários e militares. Desde então, vale destacar que ali começava o desprezo das nossas práticas nativas religiosamente falando, e da nossa espiritualidade ancestral, que ficou simplesmente ofuscada em prol do cristianismo.
O cristianismo é intolerante, principalmente, com as práticas religiosas africanas e nativas. Isto é de conhecimento de estudiosos como, por exemplo, de Mudimbe[2], 2013, que enfatiza que os europeus que chegavam ao solo africano não respeitavam a cultura local.
O que resta das práticas nativas será que ainda há algo? Além da “apropriação do patrimônio africano” o que resta de nós? Um dado que restou é que os bakongos apropriaram-se do cristianismo inclusive o estudioso que fala Mudimbe na sua obra “A invenção da África”.
Leia mais: “Já havia democracia no Reino do Kongo quando os portugueses chegaram”
Sabe-se que os europeus exploraram e levaram para Europa máscaras e artefatos culturais bantus. Aliás, essa prática era vista como normal. As figuras de múmias estão exposta nos museus franceses, alemães e ingleses. Nesta arena cultural das práticas nativas religiosas, temos que referenciar a profetisa Kimpa Vita, como negra e líder espiritual híbrida, pois ela tinha dentro de si a africanidade e se apropriou dos conhecimentos bíblicos, pregando os valores nativos bantus.
Ela contextualizava ao seu povo, os rituais africanos e dava importância ao seu povo. Imaginem o que aconteceu depois? Simplesmente, ela foi queimada viva numa fogueira. Kimpa Vita era profetisa e líder espiritual do chamado “antonianismo”, que pregava a restauração dos valores tradicionais dos Kongos. Alguns desses valores tradicionais seriam o respeito à ancestralidade e aos mais velhos e a terra “Santa” Mbanza-Kongo.
No entanto, Nzadi-Zaire contém uma das histórias mais antigas dentro da África Negra envolvendo os “Mani e Ntotilas-Reis ou chefes” na língua Kikongo, língua oficial no Reino do Kongo. Até hoje, a língua continua sendo a única herança viva no Zaire, pois é a língua “materna” de muitos cidadãos desta etnia.
Muitos não vão concordar porque nos ensinam que só é ‘chique’ a língua estrangeira (Ambrósio[3], 2015 – [4]. Nosso poder ancestral deve ser resgatado pelo conhecimento da memória ancestral dos Ntotilas. E fazendo a devida contextualização, pergunto: Será que os bakongos são unidos? Há ainda aquele sentimento ancestral solidário entre nós e entre os vários grupos étnicos de Angola? O que está acontecendo realmente, cada um pode responder por si. Mas, o essencial é que a cultural do Nzadi-Zaire era(é) indivisível. Ou seja, a cultura bantu é solidária e comunitária.
Falar do Zaire é reviver a memória da glória da história do reino do Kongo, que sempre teve intelectuais europeus a serviço de missionários para que escrevessem a história do reino sem entender a dimensão sócio-cultural e espiritual comunitária. No entanto, sem o olhar crítico, nenhum de nós jovens entenderá o processo de registro de nossa história.
Os historiadores ignoravam a sabedoria ancestral que se transmite pela oralidade. A partir daí, começava o preconceito contra os kongos e seus saberes. Pantoja, na apresentação do livro do Patrício Batsîkama, “O reino do kongo e a história de Angola”, escreveu: “o uso das tradições orais na reconstrução dos percursos históricos faz parte da renovada historiografia africana” PANTOJA, 2009.
Essas dimensões são recentes, até porque também se destaca a importância da militância dos pesquisadores africanos e diaspóricos na recontagem e na reescrita da nossa história. Só assim, a história ou a província ganha e vai continuar ganhando seu próprio estatuto e engrandecimento. O maior engrandecimento virá quando pensarmos que a cultura do Kongo, como parte integrante do centro da África, é indivisível na sua constituição.
A história do Zaire não começa pela invasão portuguesa, mas apenas. Antes disso, já tinha muita história feita pelos homens e mulheres. Quando chegou a primeira caravana do então navegador e aventureiro português Diogo Cão, ela encontrou um representante do Rei Nzinga Nkuwu, o famoso Mani- Soyo, que administrava o distrito Soyo. O reino do Kongo era organizado político cultural e economicamente. Nisso, temos como referência, por exemplo, o historiador angolano Santos no que tange a organização dentro do reino, ele diz:
Os portugueses, tão ignorantes do povo africano como da forma da terra, não estavam preparados para encontrar fortemente avançados. O reino do Kongo era a sua primeira grande surpresa dada a estrutura política e administrativa sabiamente organizada, à semelhança de Portugal ou qualquer capital europeia ( SANTOS, 2012, p. 67).
Agora, depois destas palavras do historiador, podemos nos questionar por que os europeus não aceitam que nós, africanos, já tínhamos evoluído antes deles? Será que é verdade? Ou pelo contrário, já éramos mais bem organizados do que depois da sua colonização. Contudo, o eurocentrismo continua a desprezar as culturas não europeias. Hoje, a antiga capital do reino do Kongo, está organizada? Zaire está sem reconhecimento, (o projeto Kulumbimbi, candidato a Patrimônio da Humanidade, continua patinando sem aprovação ainda).
Um dos estudiosos do reino do kongo escreveu que há três linhagens “Nsaku, Mpânzu e Ñzînga”. Porém, Raphaël Batsîkama Patrício Batsîkama[5], os autores de um artigo “Estruturas e Instituições do Kongo” apontam que as três linhagens são os poderes locais;
Aparentemente, parece existir divisão de poderes no antigo reino do Kôngo:
“NSAKU: Sacerdócio, Presbiteriano; Religião (e Magia), Consagração das Autoridades, Diplomacia, Constituição, Poder Judiciário, Poder Legislativo.
“MPANZU: Guerra, Manufatura, Segurança da Corte, Segurança do País, Direito de Eleger
“NZINGA: Administração, Justiça, Poder Executivo (limitado), poder político (limitado), Classe das Elites das Migrações”.
São essas três linhagens que estruturam a gerência pública. Tudo indica que os Nsâku e os Mpânzu seriam os verdadeiros detentores do poder executivo que exercem através da sua Mãe Nzînga (BATSÎKAMA & BATSÎKAMA, 2011 p. 9).
Esses poderes, na atualidade, não existem mais, até porque a monarquia já não tem poder. Poderia nos dizer que Zaire “modernizou-se”, os representantes locais reconhecidos tradicionalmente como Sobas[6], não têm poder decisório no Zaire. Na verdade, no que se refere a esses poderes é uma visão anterior dos europeus e dos autores do artigo, confrontaram com várias fontes europeias.
Atualmente, encontramos a subdivisão que Filipe, 2015, contextualiza para nós. Eis a contribuição de um amigo Gilberto Filipe, colega no ensino médio. Ele dizia: “Ambrósio, a província do Zaire tem seis tribos, por cada município; Soyo-nsolongo, Tomboko-nkungulwa, Nzeto-mbala, Kuimba-mbata, Mbanza-kongo-nsansala, Nóqui-mboma. Todos pertencendo à etnia kongo”, portanto, esses são os atuais municípios que constituem a província do Zaire.
O historiador angolano Santos (2012) aponta o senso demográfico naquela altura escrevendo: “o reino africano e próspero, uma federação com uma população de três milhões de habitantes, é Zaire como sua capital Mbanza “cidade ou corte”, cidade alta construída por cima das serras ou montanhas.
Se imaginarmos a dimensão que tinha o reino do Kongo no passado, Zaire não seria aquele pedaço, mas seria muito mais que a atual Angola[7]. Entretanto, depois da colonização, essa história foi ocultada, pois eles (que viveram primeiro) nos dizem que: “Luanda foi fundado pelo Paulo Dias Novais, em 1575”, enquanto, nós sabemos que, desde os séculos XIV, a “ sua majestade Nzinga Nkuwu” como escrevia Tuzolana[8] Cia 2014, já tinha os seus homens e mulheres vigiando o espaço “ilha de Luanda”.
Daí partiria o ódio dos portugueses usando a máfia, provocando e semeando a discórdia entre o reino do Kongo e o “distrito do kongo” (reino do Ndongo) que terminou numa guerra étnica e política denominada “batalha de Ambuíla”. Assim, os portugueses ajudaram a destruir o reino do Kongo com seu armamento bélico, matando um dos reis Vita Nkanga, em 1665,”. Mas foi no século XVII, só depois da derrota dos Kongos, que os portugueses conseguiram dominar o espaço – os povos do Norte de Angola[9].
Nessa época, eles não tinham dominado todo o território, pois havia resistência dos outros reis no interior de Angola. As desordens incutidas pelo próprio povo Bantu na ânsia do poder e a soma dos portugueses, holandeses no século XVI, resultou na dispersão e na desunião do antigo e forte Reino do Kongo. Essa é apenas uma reflexão sobre a sugestão do amigo Gilberto, que me colocou a pensar atualidade da minha/nossa província, usando o plural como na cultura africana em geral, toda e qualquer comunidade é um bem público da comunidade.
Zaire é uma província que se localiza na parte noroeste de Angola, faz fronteira com Oceano Atlântico, Bengo e Uíge. Infelizmente, a província do Zaire carece de muita coisa, seu povo sobrevive da pesca e agricultura, apesar de, no seu subsolo como dizem, ter muito petróleo e outros recursos naturais… Nossa terra é a terra dos nossos ancestrais os Ntotilas – todos os Reis/ Rainhas.
Por mais informações sobre Zaire recomendo que leiam Makuta Nkondo 2011[10].
Gabriel Ambrósio é escritor, poeta e amante da sua cultura africana.
Referências
BATSIKAMA, Mampuya Cipriano Patrício. As origens do Reino do Kongo. Mayamba editora, Luanda, 2010.
MUDIMBE, Y. V . A invenção de África. Gnose, filosofia e a Ordem do Conhecimento. Tradução Ana Madeiros. Coedição Edições, Lda e Mulemba, Angola e Portugal, 2013.
SANTOS, Sousa Egídio de António. Esboço da História de Angola como poderia silenciar-me? Editora Kilombelombe, Luanda, 2012.
[1] (Ver Santos, 2012, p. 66. E seguintes. Esboço da história de Angola).
[2] MUDIMBE, Y. V . A invenção de África. Gnose, filosofia e a Ordem do Conhecimento. Tradução Ana Madeiros. Coedição Edições, Lda e Mulemba, Angola e Portugal, 2013.
[3] A obra Áfricas Ocultas, Kelps, 2015. De Gabriel Ambrósio, tem um capítulo no livro que debruça sobre as línguas africanas.
[4] As Origens do Reino do Kongo- Batsikama , 2010, p. 104-105.
[5] Fonte disponível aqui. file:///C:/Users/Mavenda%20Nuni%20%C3%A1frica/Desktop/Constitui%C3%A7%C3%A3o-do-Reino-do-Kongo-e-dos-estados-africanos.pdf acesso em Junho de 2015. Podem ler artigo completo por mais informações e detalhes.
[6] Sobas na tradição bantu são entidades responsáveis por Mavatas-aldeias, ou bairros em quase toda a província do Zaire. Nas aldeias que não têm tribunais, normalmente, são os sobas que são chamados para mediar ou aconselhar quando há conflitos entre os aldeões ou comunitários. A província do Zaire ainda tem muitos sobas.
[7] Sobre esse assunto, recomendo que procure o mapa do reino do kongo no Google.
[8] Artigo sobre a origem do nome Luanda, disponível no grupo KONGO no facebook.
[9] Esses povos hoje são os da província do Uíge, Cabinda, Bengo e Luanda. Ou seja, todas as partes que hoje são províncias no passado apenas eram unicamente pertencentes ao Reino do Kongo. O reino do Kongo se imaginassem, o seu espaço territorial pegaríamos os países República Democrática do Kongo, Gabão, Kongo Brazzaville e Angola. DICA Importante, antes dos Europeus na África central não existia nenhum país nesta região, apenas existia o Reino do Kongo como proprietário destas terras.
O artigo “Província do Zaire: a desgraça aprofunda-se- Makuta Nkondo aborda as questões sociais e econômicas entre outros aspectos , de forma crítica e bem interessante. Eis o Link http://club-k.net/index.php?option=com_content&view=article&id=7556:provincia-do-zaire-a-desgraca-aprofunda-se-makuta-nkondo&catid=17&Itemid=1067&lang=pt acesso em Setembro de 2015.