Natalia da Luz – Por dentro da África
Rio – Eles são os porta-vozes da história e cultura de regiões onde as palavras contadas criam os valores e a identidade de um povo. Respeitados pelas sociedades africanas, os griots mantêm vivos os costumes de uma época onde as memórias auditiva e visual eram os únicos recursos de que dispunham para a transmissão do conhecimento. Apesar dos avanços da escrita e da tecnologia, o papel deles não ficou obsoleto, permanece vivo.
– O griot é um mediador dentro da sociedade; ele resolve conflitos e leva a calma. Ele é músico, cantor, contador de histórias, dançarino, um organizador das cerimônias sociais que utiliza a palavra como seu principal instrumento – contou em entrevista exclusiva ao Por dentro da África o griot Hassane Kouyaté.
Natural de Burkina Faso, país da África Ocidental, o muçulmano, diretor de teatro, lembra que a função social de um griot também está atrelada ao berço, já que o griot nasce griot. Filho de Sotigui Kouyaté (falecido em 2010), ele é um bom exemplo do protagonismo desses agentes que transmitem a memória por um caminho secreto (que só os griots têm acesso) e rico em conhecimento.
– Ser um contador de histórias não é mais do que uma pequena arte da vida de um griot. Frequentemente, vemos pessoas que exercem funções de griot e que são cantores, atores, mas não é porque elas exercem as posições que serão consideradas griot. O pertencimento vai além.
A origem da palavra griot
A palavra griot é uma denominação francesa dada pelo colonizador – em português, seria o equivalente a “criado”. Esses guardiães da tradição oral, dos mitos e lendas africanas estão presentes entre muitos povos como os Mandinka, Fula, Hausa, Songhai, Wolof, Mossi e Dgomba, espalhados, principalmente, pela África Ocidental.
Em países como o Mali, Nigéria, Gana, Guiné, Níger, Senegal, Gâmbia e Burkina Faso, é possível listar muitos desses representantes. Um dos expoentes do Mali, Amadou Hampâté Ba (falecido em 1991), falava que “Em África, quando morre um ancião arde uma biblioteca, desaparece uma biblioteca inteira sem que as chamas acabem com o papel…”
A declaração fortalece a importância dos griots, também conhecidos como jeliw, que preservam o passado pensando no futuro. No século XIII, o Imperador do Mali Sundjata Keita tinha como griot Balla Fasséké, considerado o criador da linhagem Kouyaté, da qual Hassane também faz parte. Ele é membro dos mandinkas, um dos maiores grupos étnicos da África Ocidental que descende do Império do Mali.
Encontro de culturas
– Como dizia meu pai, a gente se descobre quando olha bem para o outro e se vê dentro dos olhos dele. Eu estou aqui para partilhar o que eu conheço e para levar algo novo. Os brasileiros buscam o lado da África, mas me parece importante que a África vá aos seus primos que estão longe… Assim, a gente reinventa o nosso tesouro comum, que é o oxigênio para nós africanos – conta o também diretor do Centro Regional das Artes da Narrativa e da Literatura Oral, em Bobo Dioulasso, Burkina Faso.
Durante a nossa conversa no Rio de Janeiro, ele ratifica que o encontro serve para encorajar a reflexão a fim de melhorar o que somos como seres humanos. Para o griot, todos têm seu papel, e o que muda é o meio pelo qual temos acesso para desenvolvê-lo.
– Há muitas maneiras de realizar a sua missão. Na verdade, eu sou um privilegiado só pelo fato de vir ao Brasil e pelo fato de você, por exemplo, me ouvir e me dar a palavra. Nesse mesmo momento, há muitas pessoas que têm coisas interessantes a dizer e por algum motivo você está me ouvindo e transmitindo para muitas pessoas esse nosso encontro – declarou.
Os griots se responsabilizam por transmitir mensagens em torno da vida contemporânea e não apenas da herança que seus ancestrais deixaram. Acima de tudo, eles são conselheiros dentro desse cenário africano tantas vezes distorcido mundo afora.
A ideia da África
– A ideia da África não é errada apenas para o brasileiro, mas para muitos povos em todo o mundo, e isso tem relação com os valores dos quais partimos e avaliamos. Não são valores econômicos e financeiros, mas culturais e sociais, principalmente. As riquezas minerais transformam as finanças de um continente rico, mas que, politicamente, está minado – lamenta o africano que passa parte do ano a trabalho na França.
Hassane se pergunta como muitos dos dirigentes africanos podem defender o país e depois, ao assumirem o poder, declinarem para situações tão desonestas. Para ele, a África não é pobre, mas a moral e o engajamento de alguns dirigentes é que o são. Essa reflexão também integra o cotidiano de um griot, que é parte do passado, e um agente para transformar o presente e o futuro.
– Eu tive a oportunidade de viajar pelo mundo e, do meu ponto de vista, a África não é a região mais pobre. Eu vi muitos lugares com desenvolvimento, mas onde os homens são pobres socialmente. Quando a gente conta o número de suicidas, perguntamos: onde está a pobreza? Quando vemos pessoas solitárias que não tem com quem falar, perguntamos: onde está a pobreza? Qual o critério para definir pobreza e riqueza?
A tecnologia possui uma capacidade incrível de aproximar. Com um simples clique, podemos passear por Ouagadougou, capital de Burkina Faso, podemos desbravar virtualmente as ruas por onde Hassane caminha, ver as cores, mas não conseguimos interagir, sentir o cheiro, a vibração, aquilo que, de fato, diferencia e dá contorno ao outro.
– Há muita uniformização e o mundo só vai se resolver quando a gente aceitar a diferença. A diferença enriquece. Se você tem medo do outro é porque tem um problema com você mesmo. O outro não é necessariamente um adversário. Eu acho que a grande contribuição da África para o mundo está exatamente nessa diferença, na multiplicidade cultural, na pluralidade – explica.
Preservando a cultura, os griots incrementam essa diferença, fortalecem o debate da humanidade e encorajam os outros a não terem medo de um continente que ainda tem muito a ser descoberto.
Por dentro da África