
Natalia da Luz, Por dentro da África
A culinária como elo sagrado, herança ancestral e ferramenta de resistência. Essa é a essência de A Jẹun Bó, documentário protagonizado pelo babalorixá e antropólogo Rodney William e dirigido por Camila Silva WokeMi. Com estreia marcada para o dia 10 de agosto, em São Paulo, o filme mergulha nas tradições culinárias dos terreiros de candomblé (religião de matriz africana), revelando sabores, histórias e práticas tradicionalmente transmitidas pela oralidade.

“A comida é a base do candomblé, porque não há nada no candomblé que não se faça sem comida. Todas as celebrações têm comida. O candomblé é pautado por uma sucessão de acontecimentos, e esses momentos são marcados por rituais de alimentação, que são sagrados para todas as pessoas do terreiro. A história das religiões de matriz africana se constrói também a partir disso: da capacidade do nosso povo, dentro desse ambiente coletivo, de ter para compartilhar e dar subsistência a toda a comunidade”, explica Rodney, em entrevista ao Por dentro da África.

O babalorixá destaca que as comidas são sagradas para os orixás e para a história e conexão com a cultura afro-indígena, incorporada no dia a dia do brasileiro.
“Quando se oferece uma comida ao orixá, estamos — através da comida — restituindo o nosso axé, que é a nossa força vital. O orixá, por meio da energia daquela comida, nos dá caminho, nos dá força, nos ajuda a resistir e a enfrentar os desafios da vida, a ter êxito em todas as nossas empreitadas.”
A Jẹun Bó, expressão em iorubá que remete ao ato de “comer para o orixá”, é mais do que um registro culinário. O filme acompanha, ao longo de mais de dois anos, o cotidiano do terreiro Ilê Obá Ketu Axé Omi Nlá (em São Paulo) e destaca a cozinha como o pilar central das celebrações, oferendas e da própria vida em comunidade.
Combater a desinformação e o racismo religioso
‘A arte precisa combater a intolerância contra religiões de matrizes africanas’, diz Rafael Pondé
Em 2024, segundo o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), foram registradas no Brasil 2.472 denúncias de casos de intolerância religiosa pelo Disque Direitos Humanos (Disque 100). O número representa uma alta de 66,8% em relação às denúncias do mesmo tipo feitas em 2023 (1.481).
A divulgação dos dados ocorreu no Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa (21 de janeiro), em memória da Iyalorixá baiana Gildásia dos Santos, conhecida como Mãe Gilda de Ogum, que fundou, em 1988, o terreiro da Nação Ketu/Nagô Ilê Asé Abassá de Ogum, no bairro de Itapuã, em Salvador.
Durante o ano de 2024, as pessoas mais atacadas foram pertencentes às seguintes religiões: umbanda (151), Candomblé (117), evangélico (88), católico (53), espírita (36), outras religiosidades afro-brasileiras (21), islamismo (6) e judaísmo (2). Em 1.842 denúncias, não houve indicação da religião da vítima.
A intolerância contra as religiões de matrizes africanas no Brasil
Sobre o ato de registrar práticas tradicionalmente transmitidas pela oralidade, Pai Rodney destaca que a informação é uma ferramenta poderosa de combate ao racismo religioso, já que é na desinformação que se apoiam os estigmas que desumanizam a cultura de um povo.

“Temos muitas coisas dispersas nas redes sociais e poucas produções institucionais, bem pensadas, como um registro dessa oralidade. Então, esse documentário funciona como um registro dos nossos ritos, da nossa tradição — sem expor — mas guardando na memória coletiva e palpável a nossa história. Não só do nosso axé, o Ilê Obá Ketu Axé Omi Nlá, mas do candomblé como um todo.”

Ele lembra que, embora cada casa (terreiro) siga suas raízes e tradições, há sempre pontos de convergência que aproximam o povo de axé:
“Esse registro é um pouco disso também: através do que é comum e do que é diferente para o povo de candomblé, aproximar, registrar essa sensação de pertencimento e coletividade. Também temos uma certa carência de produções que dialoguem com a nossa cultura de terreiro. Normalmente, é sempre alguém de fora, dessa vez, não. É um registro profundo e de dentro”, ressalta.

A produção também celebra a representatividade. Camila Silva assina a direção, roteiro, produção executiva e direção de arte. A trilha sonora é de Gabriel Farias e Nando Omoronum; a montagem é de Swami Pimentel. A produção é da Dois Neguin Filmes.
A África no Brasil
Durante mais de 350 anos de tráfico transatlântico, o Brasil recebeu cerca de 5 milhões de africanos escravizados. Entre os séculos XVI e XIX, esse brutal comércio retirou de seus lares aproximadamente 12 milhões de pessoas, das quais mais de 2 milhões perderam a vida na travessia. O Brasil foi o maior receptor desse fluxo forçado, o que deu ao país o título de segunda maior população negra do mundo, atrás apenas da Nigéria.

Culinária do terreiro como legado africano
O média-metragem mostra, com riqueza de detalhes, a preparação de pratos como o amalá de Xangô, o ipeté de Oxum, os pães de Ogum e as frutas de Oxóssi. Cada receita, explicada e vivenciada, carrega camadas de significado e ancestralidade — um legado que o Brasil consome diariamente, muitas vezes sem saber sua origem.
“Nós fazemos parte de um país que come comida de santo todos os dias e nem sabe o que está comendo, porque a comida de terreiro é uma herança ancestral africana e indígena deixada por gerações e gerações que sofreram para construir o nosso país.”
Caruru, abará, vatapá, acarajé. Esses pratos tão presentes nas feiras e nas ruas do Brasil carregam, segundo Pai Rodney, o potencial de despertar uma memória ancestral que muitas vezes está adormecida.

“Quem sabe, através dessa memória que é ativada a partir da história da comida, do sabor e dos sentidos, possamos resgatar isso de maneira ativa, consciente e tangível. Comida é cultura. E a cultura nos aproxima. A comida, como mostramos no filme, nos conecta e o terreiro é raiz, pertencimento, resistência e fortalecimento. Acredito muito na nossa cultura como ferramenta de resistência e reexistência para o nosso povo.”
Serviço:
️Pré-estreia do documentário “A Jẹun Bó”
Filme de Local: Centro Cultural São Paulo (CCSP)/Rua Vergueiro, 1000, Liberdade, SP Data: 10 de agosto (sábado)
Horário: 16h
️Entrada gratuita
Roda de conversa após o filme com Camila Silva, Pai Rodney e Tatiana Paula
Após a exibição no CCSP, haverá uma roda de conversa com Pai Rodney, a diretora Camila Silva WokeMi e Tatiana Paula — filha de santo responsável pela preparação das refeições no terreiro e personagem central do documentário.
Veja as dicas de livros sobre o tema! Clique para comprar!
Conheça mais sugestões de livros sobre o continente africano abaixo!