Por João Ngola Trindade, Por dentro da África
O Ministério da Cultura submeteu a apreciação pública, particularmente dos líderes das confissões religiosas com ou sem personalidade jurídica em Angola, a Proposta de Lei Sobre a Liberdade de Religião, Crença e Culto.
O documento em análise propõe às confissões religiosas que assegurem “a formação dos Ministros do […] culto”, sendo que, para o efeito, deverão as mesmas “criar e gerir os estabelecimentos [de ensino] adequados para esse fim” (artº 31).
Diante disso, coloca-se a seguinte pergunta: que fundamento terá o artigo em referência para abordar esta questão na perspectiva histórica com o objetivo de alargar o debate sobre o assunto em causa?
Contextualização
É reconhecido o contributo prestado pela Igreja em Angola que durante o período colonial tinha como objetivos a libertação do homem do pecado e do analfabetismo por meio, respectivamente, da pregação do Evangelho e da criação de escolas nas quais muitos angolanos alcançaram os «benefícios da civilização ocidental» (HENDERSON, 2000).
Atualmente, a exclusão do ensino da acão social desenvolvida por algumas igrejas fundamenta-se na II Epístola de Paulo aos Corintios (v. 6) na qual se pode ler o seguinte:
“a letra [entenda-se a formação/instrução] mata, mas o Espírito vivifica”. Este verso bíblico serve ainda de pretexto para o argumento segundo o qual o apóstolo “Pedro apesar de ter sido um pescador iletrado foi escolhido por Cristo para pastorear a Sua Igreja. Portanto, o ministério pastoral não pode estar condicionado pela posse do diploma universitário”. Por outras palavras, Pedro como apóstolo analfabeto é apresentado atualmente como exemplo de líder eclesiástico por certos pastores que, por vários motivos, não deram sequência a formação secular.
Neste sentido, conforme já o dissemos anteriormente, a heresia sobre o “Cristo iletrado” (TRINDADE, 2015) nada mais é do que a apropriação da mensagem pregada por certos pastores que com o receio de serem conotados como kalupetekistas poderão dizer: “nunca pregamos este disparate”.
Pelo que tem sido possível apurar, esta ideia é concebida e exposta diante do rebanho por líderes espirituais que por um lado, sobrevalorizam o conhecimento religioso, por outro lado, subestimam a instrução e nesta condição dificilmente se dão ao “trabalho” de analisar racionalmente os fenômenos sociais que ocorrem na sociedade, os quais acreditam ter apenas origem no mundo sobrenatural (MATUMONA, 2011).
Isto por um lado. Por outro lado, esta mensagem deve ser vista como o meio pelo qual muitos pastores pouco instruídos (e porque não altivos?) procuram manter a sua auto-estima diante de alguns crentes com formação acima da média no seio da Igreja, e como tal, orgulhosos e vaidosos de a possuírem.
Seja como for, a pregação acima referida acaba por acomodar certos “obreiros” num certo obscurantismo justificado pelo pensamento a que já nos referimos: “Deus não escolhe bons oradores, e intelectuais para o pastorado, mas, sim, os humildes [incultos]”.
Sobre o artigo 31
O artigo em análise não sobrevaloriza a formação universitária, tampouco subestima o curso bíblico ou teológico, como poderão pensar alguns profetas. Simplesmente desperta os “Ministros do culto” [por que não do Senhor?] sobre a importância da formação secular como ferramenta importante para a compreensão dos fenômenos que ocorrem no seio da sociedade da qual a Igreja não está excluída.
Daí a necessidade de criação de escolas pelas Igrejas para que os pastores, e não só, sejam instruídos e possam contribuir para o desenvolvimento sociocultural de Angola. Sobre este aspecto, a Igreja no âmbito das Missões Transculturais, poderá incluir no referido curso noções sobre as línguas nacionais com o objetivo de dotar os missionários de conhecimento destas que serão úteis para o início e desenvolvimento do seu trabalho no seio das comunidades históricas como os nyaneka, e não só, que desconhecem a língua portuguesa (HENDERSON, 2000), pois, o artigo 24 (ponto 1) do referido diploma responde a questão relativa sobre a utilidade prática das “línguas locais” (CIPRIANO, 2009).
Este parece ter sido o espírito que norteou a tradução da Bíblia Sagrada em língua portuguesa para as línguas nacionais, atualmente designadas de “línguas angolanas de origem africana”.
Por outro lado, a elaboração de conteúdos sobre a realidade sociocultural angolana – tarefa a ser desempenhada por Antropólogos, Sociólogos e Historiadores – será extremamente importante para o aprofundamento do conhecimento sobre os diversos grupos etnolinguísticos (HENDERSON, 2000) existentes em Angola, para os quais se pretende levar a Boa Nova.
Reconhece-se hoje o papel desempenhado pelos missionários europeus na criação de imagens negativas do homem africano, que, segundo se pensava, personificava o Demônio que carregava consigo a cauda de um animal que não interessa aqui citar. Este pensamento que objetivava justificar a cristianização dos idólatras, cristalizou-se atualmente na mente de alguns missionários angolanos, em particular, e de fiéis, em geral, de várias confissões religiosas que consciente ou inconscientemente reafirmam a superioridade do branco, a inferioridade e o apego do “preto” ao feitiço (CALEY, 2011; MATUMONA, 2011).
Neste sentido, as “sessões de descarrego” justificam a necessidade de libertar o “endemoninhado” das garras de Belzebú, e quando o fanatismo associado à iliteracia sobrepõe-se a racionalidade, o resultado não difere daquele que tivemos conhecimento no “Dia do Fim” ainda presente na memória de algumas famílias que perderam os seus filhos.
Apesar disto, deve-se enaltecer o pioneirismo dos cristãos europeus no estudo – ainda que eivado de eurocentrismo – da Religião Tradicional Africana, (BAUR, 2000; VAZ, 1970) e não só, por meio da tradição oral (CALEY, 2011) dos povos por si evangelizados no âmbito da «missão civilizadora». Neste domínio desconhecem-se, salvo opinião contrária e melhor fundamentada, trabalhos da autoria de pastores evangélicos e pentecostais produzidos por euro-ocidentais.
“Estudar a cultura não é prioridade do pastor” – dirão alguns pastores angolanos. O argumento em si é insustentável na medida em que a inexistência de nenhum dispositivo legal que condene, ou interdite a circulação e publicação de “obras científicas, literárias e artísticas em matéria de religião” (artº 10º alínea i) deveria estimular a produção de trabalhos neste domínio. Pois, ao Estado, apesar de laico, interessa-lhe que tais estudos sejam feitos para que se aprofunde o conhecimento sobre o fenômeno religioso em Angola, e sobre esta problemática os pastores (que tenham formação suficiente) podem, e muito bem, contribuir neste caso com pesquisas de campo. Isto é, efectuadas nos seus espaços de actuação.
O Reverendo Gabriel Vinte e Cinco (metodista) parece ser uma excepção e um exemplo a seguir pelos seus colegas. É autor de um estudo etnográfico sobre Os Kibalas no qual se debruça sobre os hábitos, costumes e a cosmovisão da região da qual é originário, e apesar das suas responsabilidades pastorais tem dissertado em alguns eventos sobre alguns aspectos culturais da província de Kwanza-Sul.
Em síntese, o documento em causa traz uma proposta que, caso venha ser seguida pelos líderes eclesíasticos, poderá trazer avanços no processo de alfabetização de muitos angolanos, e na emergência de uma classe pastoral melhor esclarecida e comprometida com o desenvolvimento espiritual, humano e social do homem.
Bibliografia
ANGOLA, Proposta de Lei Sobre a Liberdade de Religião, Crença e Culto. Revoga a
Lei nº 2/04 de 21 de Maio, Luanda, 2014.
BAUR, John, 2000 Anos de Cristianismo em África. Uma História da Igreja Africana, 2ª edição, Paulinas, Luanda, 2002.
CALEY, Cornélio, O lugar das religiões africanas no continente: um desafio a enfrentar no presente, in: Revista Religiões e Estudos – Religião e Sociedade, nº3,
INAR, Luanda, 2011, pp.17-21. CIPRIANO, Sony Kambol, CIPRIANO, Sony Kambol, O uso e o impacto das línguas locais, in: 1º Encontro de Reflexão sobre Cultura e Ambiente no Leste de Angola, ASLESTE, Luanda, 2004.
HENDERSON, Lawrence W., A Igreja em Angola, 2ª edição, Editorial Além-Mar, Luanda, 2001.
MUANAMOSI, Matumona, Como eliminar o feitiço em Angola? – O dinamismo cultural em causa, in: Revista Religiões e Estudos – Religião e Sociedade, nº3, INAR, Luanda, 2011, pp.51-66.
TRINDADE, João N’gola, O que será o kalupetekismo?, in: Jornal Angolano de Artes e Letras – Cultura, Luanda, 22.06.2015.
VAZ, José Martins, No mundo dos Cabindas. Estudo etnográfico, vol. I, Editorial L.I.A.M, Lisboa, 1970.An