Por João Ngola Trindade, Por dentro da África
A editora Raissa Castro publicou em 2013, em Campinas (Brasil), o livro da autoria de Annick Cojean intitulado O Harém de Gaddafi . Nesta obra, o discurso do coronel Gaddafi dirigido à Soraya (personagem principal do livro) carrega a imagem da prostituta que, durante a narrativa, usa a oralidade e outros recursos corporais com o propósito de saciar o desejo do chefe militar que, segundo a narradora, incentivava-a a assistir filmes eróticos.
Na escola, afirma a autora, o professor aprovava as alunas que saciavam consigo os mais íntimos prazeres da carne – prática incentivada em alguns casos pelos namorados destas que tencionavam ter apenas o diploma. Foi nesta instituição que o antigo presidente líbio encontrou-se pela primeira vez com Soraya que descreve o “toque mágico” como ordem dada por Gaddafi às amazonas (como eram chamadas as seguranças – do sexo feminino – que acompanhavam Gaddafi) para que posteriormente à levassem ao castelo do então presidente.
A relação entre poder e sexo é o tema central abordado pela autora que advoga a causa das mulheres estupradas durante o kadafismo, período de decadência moral, violência psico-sexual, de domínio do chefe militar sobre os civis, e também de militarização do poder, do culto da personalidade e do império da vontade do “Guia”.
Os serviços prestados eram recompensados financeira e materialmente e o silêncio imposto mantinha a sociedade líbia desinformada sobre os atos praticados pelo “senhor do universo”. Denunciá-los seria “um suicídio social”, afirma Annick Cojean, pois, numa “sociedade tão conservadora, quem assumiria o risco de admitir publicamente ter tido relações sexuais com Gaddafi , ainda que coagida”? – questiona-se a autora.
Metodologia e fontes
A jornalista considera a história oral (entrevistas) um método de recolha de informações prestadas por Soraya e outras líbias à quem foram atribuídos nomes fictícios (Libya, Kadija, Leila, Huda) com o propósito de salvaguardar a integridade física e moral das mesmas.
Segundo Verena Alberti (2004, p. 23) “a experiência histórica [das entrevistadas] torna o passado mais concreto” e a autora aponta a inexistência de “outras fontes” (escritas, audiovisuais, etc..) como razão para que História Oral seja utilizada como metodologia na pesquisa histórica e não só.
Esta metodologia permite ainda a reconstrução de fatos testemunhados ou protagonizados pelas entrevistadas (ibidem, p. 24).
Os testemunhos das mulheres mantidas com pseudônimos, já citados, reforçam a denúncia dos crimes sexuais apresentada por Soraya e neles a imagem do estuprador e do agressor mantêm-se viva na memória da mulher que pede o anonimato. Do contrário, “me mataria imediatamente […] se visse a saber que meu marido ou meus filhos pudessem um dia descobrir meu passado”, afirma uma das temerosas.
O Dr. Kreish alega ter encontrado em Bab al-Zizia, residência oficial de Gaddafi destruída pelos rebeldes, cerca de oito a nove DVDs que continham “imagens de agressões sexuais perpetradas pelo Guia. Mas confessou tê-los destruído” para que os supostos criminosos não chantageassem ou matassem as vítimas.
Interessante é o depoimento de um dos primos de Gaddafi , oficial do exército, que impunha as suas filhas a proibição de se encontrarem com o tio.
Apologista da intervenção militar ocidental?
A autora refuta a tese segundo a qual a revolução líbia tenha sido agitada pelo Ocidente e admite a hipótese de que terá sido provocada por fatores endógenos, dentre os quais a execução sumária dos opositores ao kadafismo e o desejo de participação na vida pública manifesto pelas mulheres. Estas, segundo a autora, tinham “contas a ajustar” com Gaddafi pelos estupros praticados durante o seu regime, narrados na primeira pessoa.
Esta ideia reforça a tese segundo a qual a Primavera Árabe terá sido provocada pela conjugação de fatores internos e externos no norte de África, concretamente, na Tunísia, Egito e Líbia (TRINDADE, 2014).
Julgamento dos transgressores
Annick Cojean exige a instauração de um processo judicial contra os supostos autores de crimes consubstanciados em violência sexual durante o kadafismo. Entretanto, a mentalidade líbia ainda é marcada pelo peso da cultura e da religião. Ou seja, o estupro é a maior abominação para o líbio que, para lavar a honra da família, prefere matar a filha ou a irmã que tenha sido abusada sexualmente.
Por esta razão, muitas mulheres mantêm-se no silêncio, ao passo que outras se submetem a himenoplastia com a qual iludem os futuros esposos com “virgindade artificial”.
Segundo Marcos Desidério Ricci, “a indicação para [esta] cirurgia só é feita depois que o caso passou pelas equipes de ginecologia e psiquiatria”. O médico de nacionalidade brasileira adianta o seguinte: “para muitas mulheres, e em especial as religiosas, o fato de ter perdido a virgindade é traumatizante quanto o estupro em si”.
Destinatários da obra
O livro foi escrito com o intuito de despertar uma profunda reflexão sobre a liberdade de imprensa, o direito a manifestação, democracia em África, e os efeitos nefastos da militarização do poder que caracterizou o kadafismo.
Os psicólogos e psiquiatras encontram neste livro um produto interessante sobre o comportamento sexual do ser humano, e as possíveis causas e consequências da homossexualidade, sodomia e estupro (FOUCAULT, 1999).
Quanto aos historiadores, esperam-se estudos sobre a História Poítica da Líbia, as rupturas e permanências que poderá haver neste período histórico da Líbia – o pós-Gaddafi – e, se possível, o aperfeiçoamento da metodologia para abordagem do tema que suscita estudos multidisciplinares.
A pesquisa feita em Tripoli e Paris, apesar de ser interessante peca por algum paternalismo evidenciado pela autora. Entretanto, ela traz matéria de estudo sobre a História da Sexualidade (Foucault, 1999) da Líbia sob o governo de Gaddafi.