Apontamentos sócio-históricos sobre aspectos legais da cidadania da comunidade negra

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A pesquisa faz parte do livro “Africanidades, Afrodescendência e Educação”, que pode ser acessado aqui.

NEGRO LEGAL: APONTAMENTOS SÓCIO-HISTÓRICOS SOBRE ASPECTOS LEGAIS DA CIDADANIA DA COMUNIDADE NEGRA *

Ademir Barros dos Santos[1]

Marcos Francisco Martins[2]

INTRODUÇÃO

Este capítulo apresenta uma retrospectiva histórica das legislações que embasaram o processo de negação da cidadania à comunidade negra, bem como faz, ao longo das linhas que se seguem, críticas à situação econômica, social, política e cultural vivida por ela.

O arcabouço legal que afetou e afeta a cidadania negra pode ser sintetizado pela seguinte cronologia:

Esboço da cronologia legal do negro no Brasil

Data Evento
08.ago.1444 Neste sábado, pela manhã, são escravizados em Lagos, Algarve, Portugal, os primeiros 235 africanos, capturados na foz do rio Senegal, por Lançarote Bessanha.
18.06.1452 O Papa Nicolau V, através da bula Dum Diversas, concede a Portugal soberania sobre as terras que descobrisse, autorizando-o a escravizar as nações ali encontradas.
08.jan.1454 A bula Romanus Pontifex, do mesmo Papa, concede poderes à Coroa portuguesa – especialmente ao infante D. Henrique – para nomear delegados eclesiásticos, impor sanções e outras penas, instituindo o regime do Padroado, que permite, à Coroa, interferir nos negócios religiosos.
04.mai.1493 A bula Inter Caetera, do Papa Alexandre VI, estende, à Espanha, os poderes concedidos a Portugal pela bula Dum Diversas.
23.mar.1741 Alvará autoriza que se carimbe, com ferro em brasa, a letra “F” de fugitivo, em todos os negros recapturados.
06.jun.1755 Abolição da escravatura indígena nos Estados do Maranhão e Grão-Pará.
08.mai.1758          “                  “                   “   no Estado do Brasil.
25.nov.1808 Lei concede terras a estrangeiros – exceto negros – que viessem ao Brasil.
05.dez.1824 Negros e leprosos são proibidos, por emenda à Constituição, de frequentar escolas.
1830 O art. 295 do Código Criminal do Império condena à prisão, com trabalhos, quem não comprovar ocupação honesta e útil.
07.nov.1831 Por pressão inglesa, é proibida a importação de africanos destinados à escravidão no Brasil. A lei é totalmente ignorada, nascendo, daí, a expressão popular “só para inglês ver”.
20.mar.1838 O Governo de Sergipe, cumprindo fielmente a Constituição, proíbe a escravos e leprosos a frequência às escolas.
08.ago.1845 O governo inglês, pelo Bill Aberdeen Act, autoriza sua frota a capturar e/ou afundar qualquer navio encontrado traficando escravos no Atlântico Sul.
04.set.1850 A lei 581, denominada Eusébio de Queiroz, efetivamente encerra o tráfico de escravos africanos para o Brasil.
20.set.1850 Publicada a Lei da Terra, que proíbe ao governo tal cessão, exceto a título oneroso; em decorrência, o acesso à terra fica proibitivo para os ex-escravos.
24.set.1871 Aprovada a Lei do Ventre Livre.
25.mar.1884 Primeira abolição da escravatura no Brasil, em Redenção, no Ceará.
20.jun.1884 Abolida a escravidão no Amazonas; em dezembro, é a vez do Rio Grande do Sul fazer o mesmo.
26.fev.1885 Encerrada a Conferência de Berlim, que divide a África entre os países europeus.
28.set.1885 Aprovada a Lei dos Sexagenários.
13.mai.1888 Abolição da escravatura no Brasil, devolvendo a 5% – apenas – da população negra brasileira, o direito à posse e propriedade de si mesmo.
28.jun.1890 Reaberta a imigração no país – exceto para negros e asiáticos, que dependeriam de autorização do Congresso para tanto.
11.out.1890 O art. 402 da Lei de Vadiagem tipifica a prática pública da capoeira como crime.
19.nov.1890 Rui Barbosa determina a queima dos arquivos oficiais sobre a escravidão.
1940 O art. 59 da Lei de Contravenções Penais impõe pena de 15 dias a 3 meses para quem for considerado vadio.
18.set.1945 O Art. 2º do Dec. 7967, ao disciplinar a política brasileira de imigração, assim dispõe:  “Atender-se-á, na admissão dos imigrantes, à necessidade de preservar e desenvolver, na composição étnica da população, as características mais convenientes da sua ascendência européia, assim como a defesa do trabalhador nacional. “
03.jul.1951 Aprovada a Lei Afonso Arinos.
17.dez.1985 Governo do Rio emite a Lei 962, proibindo a discriminação em elevadores.
13.mai.2002 O decreto 4229 institui o PNDH, que legaliza as políticas gerais de proteção aos direitos humanos e legitima a discriminação positiva.
09.jan.2003 A lei 10.639 inclui no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”.

Nas linhas que se seguem, esse sintético esboço legal é analisado à luz do contexto socio-histórico. Inicialmente, se faz uma retomada dos dilemas vividos pelos negros africanos, sujeitados às idas e vindas dos impérios temporais europeus do final do século XV e início do século XVI, quais sejam, Portugal e Espanha, umbilicalmente articulados com o império espiritual da igreja católica. Segue relatando a base legal que fundamentou a situação vivida pelos escravos negros no Brasil durante o período colonial e imperial, para terminar no período republicano atual, momento em que surgem as cotas raciais e a Lei 10639/03.

O objetivo do presente texto é o de apresentar ao leitor os antecedentes legais que sustentaram a escravidão no Brasil, de forma a que possa compreender as dificuldades enfrentadas pela comunidade negra e o significativo valor que para ela representa a Lei 10639/03.

 

CIDADANIA, LEGISLAÇÃO E A QUESTÃO RACIAL

Atualmente, a palavra cidadania tem sido recorrente nos diferentes discursos sobre a realidade. Contudo, seus sentidos e significados não são unívocos. Pelo que se observa, os conceitos de cidadania veiculados são diferentes, e

[…] aparece[m] na fala de quem detém o poder político […], na produção intelectual e nos meios de comunicação […] e também junto às camadas populares mais desprivilegiadas da população […] O que é cidadania para uns e o que é para outros? É importante aprender de que cidadania se fala […] o que é cidadania? Podemos delinear concepções diferentes e até mesmo opostas.  (COVRE, 1993, p. 07 e 08)

Contudo, entre os mais variados conceitos pode-se perceber que “Há um consenso quando diferentes autores tratam de cidadania: ela diz respeito aos direitos e deveres dos cidadãos e sua participação nas instâncias políticas e sociais” (MARTINS, 2000, p. 51), o que é expresso na forma de lei. De maneira que os cidadãos, nas sociedades atuais, encontram seus direitos e deveres garantidos, limitados, disciplinados e/ou regulamentados pelo poder do Estado.

Ao tratar da questão racial, é pertinente, para bem entendê-la, verificar como a lei tratou e trata o cidadão negro no Brasil, que é o grupo social tomado como foco do presente texto.

Todavia, não é tarefa fácil resgatar as questões legais que envolvem a cidadania da comunidade negra no Brasil. Para tanto, é imprescindível relembrar os fatos históricos que deram início ao tratamento escravo a que os africanos foram sistematicamente submetidos, por longos cinco séculos, o que os alijou, durante todo este período, de qualquer pretensão ao status de cidadão, posto que eram tomados como escravos. Ou seja: eram eles pouco mais – ou pouco menos – que animais pensantes, seres alienados sociopoliticamente e tomados como mera força bruta a ser usada, explorada e desgastada na construção de nosso país.

Como a legislação expressa a condição cidadã dos indivíduos e grupos sociais, é necessário estudar as leis, os atos de poder que as produziram, as engendraram e legitimaram, os quais resultaram historicamente na manutenção da escravidão africana em terras brasileiras durante longo período de tempo.

É com esse intuito que se faz necessário abrir a janela do passado e dar, primeiramente, atenta olhadela sobre fatos históricos insólitos ocorridos a partir de meados do século XV que, embora nem sempre constem da história oficial, deram origem não só à escravidão africana, como também a muita confusão sobre o tema, produzindo efeitos ainda hoje.

 

O PODER DIVINO, O PODER TEMPORAL E A ESCRAVIDÃO NA ÁFRICA

Antes mesmo da investida europeia sobre a África, no início da Idade Moderna, no continente negro se encontravam desde impérios bem estruturados politicamente até mesmo relações sociais de tipo tribal (cf. NIAME, 2010). Nesse contexto, havia a tradição da escravidão como espólio de guerras, como era próprio de diferentes culturas, desde a Antiguidade clássica. Contudo, “[…] a escravidão moderna, ao contrário da escravidão da Idade Antiga, estava fundamentada na crença religiosa e na cor da pele” (CÁCERES, 1996, p. 183), e ela foi consolidada historicamente dentro do continente negro e fora dele pela presença massacrante de impérios europeus, como Portugal e Espanha, e legitimada pela Igreja Católica, que se encontrava umbilicalmente articulada a eles, conforme Gomes Eanes de Azurara, contemporâneo dos fatos, relata em seu Chronica do descobrimento da Guiné (p. 129 a 135).

Segundo este autor, assim teve início a agressão às gentes africanas: Lagos, Algarve, sul de Portugal, oito de agosto. Ano da Graça de 1444. O infante D. Henrique, o Navegador, encaminha-se, garboso, para os portões que protegem o povoado. O alvoroço do povo transforma aquela manhã de sábado em dia de festa.

O filho do rei segue lento, desfilando por entre o povo que o aplaude, respeitoso, e se prostra ao vê-lo. Vai sério: não deixa transparecer, no rosto altivo, a alegria que lhe vai na alma.

Além portões, o esperam Lançarote Bessanha e seus capitães. Estavam ansiosos. Afinal, foi com aval e ordem do infante que excursionaram, como desdobramento da guerra contra os mouros, pela foz do rio Senegal, em plena África. De lá trouxeram, capturados, 235 africanos que ali jazem aprisionados, à disposição do estimado príncipe. Que chega. Sem sequer descer do cavalo, separa 47 dentre eles, pois é de seu direito a participação em 20% de qualquer butim de guerra. E lá estava o butim: africanos que nada sabiam da guerra contra os mouros; mas que foram prisioneiros dela.

Eis acima o relato sobre os primeiros escravos da nova escravidão que se anunciava, e que retirou deles, por escravos, qualquer dignidade ou direito, qualquer status de cidadão, qualquer lembrança de humanidade, simplesmente porque não cristãos, mesmo não sendo ateus. Mas que também não eram mouros. Sequer sabiam que existiam muçulmanos. Porém, para os portugueses, paladinos da cristandade, se não são cristãos, não são humanos; não têm alma.

O infante lá se foi, com seu butim. Os prisioneiros que sobraram foram distribuídos entre os capitães que os caçaram, e estes, mesmo ali na praça, os doaram, venderam e leiloaram. Escravizaram, enfim.

A partir de então, Portugal prosseguiu em sua busca, tentando encontrar o caminho das Índias. Contornou a África para localizá-las e para destruir o que pensava ser a fonte dos tesouros mouros. Pelo caminho, encontrou africanos que, aprisionados simplesmente porque se encontravam ao alcance das armas portuguesas que, voltadas contra identidades que não se afinavam à brancura europeia católica, os transformaram de livres em escravos, de homens em animais. E isso em nada além de poucos segundos, que se tornaram momentos eternos de infinita infelicidade.

Apenas oito anos se passaram e Portugal continuou sua expansão por terras africanas sob o signo da guerra santa contra os mouros. Levava, em seus navios de exploração e de guerra, a benção do Papa Nicolau V, que lhe reconheceu e recompensou o esforço despendido na expansão da cristandade.

Assim, em 18 de junho de 1452, o Papa editou a Bula Dum Diversas. Por ela, concede a Portugal o direito à posse e propriedade de todas as terras novas que o reino viesse a descobrir, desde que a leste da linha imaginária que corre, do sul ao norte, a partir das ilhas Canárias. Mas, não foi só: concedeu-lhe, ainda, o direito de escravizar, por pura catequese, os povos que acaso habitassem nessas novas terras. Diz a referida Bula:

[…] nós lhe concedemos, por estes presentes documentos, com nossa Autoridade Apostólica, plena e livre permissão de invadir, buscar, capturar e subjugar os sarracenos e pagãos e quaisquer outros incrédulos e inimigos de Cristo, onde quer que estejam, como também seus reinos, ducados, condados, principados e outras propriedades […] e reduzir suas pessoas à perpétua escravidão, e apropriar e converter em seu uso e proveito e de seus sucessores, os reis de Portugal, em perpétuo, os supramencionados reinos, ducados, condados, principados e outras propriedades, possessões e bens semelhantes […]. (GELEDÉS, s/d)

Abençoado, Portugal prossegue em sua saga santa, cedendo seus navios ao transporte do poder papal, que se articula ao poder temporal do rei português. Assim reforçado, o reino espalha feitorias pelo golfo da Guiné, rebatizado de Costa dos Escravos.

Novamente o Papa, agradecido, reconheceu o esforço português e em oito de janeiro de 1454 – ainda não completados dez anos da caça de Lançarote Bessanha – assinou a Bula Romanus Pontifex, pela qual concedeu, a Portugal, direitos para abrir freguesias nas terras descobertas. Foi além e lhe permitiu nomear, por lá e a seu bel-prazer, eclesiásticos que agiriam em nome papal e em nome de Deus. Foi o início do regime do Padroado, pelo qual se torna firme a aliança entre o poder divino e o temporal; e Portugal se viu autorizado, também, a gerir os negócios da cristandade.

De fato, a História é farta de fontes que demonstram que o poder da Igreja Católica se articulou ao poder temporal de Portugal e Espanha para legitimar a escravidão negra, com vistas a sustentar o império divino (pela autoritária catequese) e temporal (pela riqueza extraída da África e pela exploração da mão de obra negra).

Isso não significa desconhecer que, vez por outra, a própria cristandade condenou a escravidão[3], tendo alguns Papas, inclusive, emitido orientações aos seus servos em favor do fim da mesma[4].

Contudo, de fato, o que concretamente se assistiu no desenvolvimento histórico, foi a benção da Igreja à dominação europeia sobre o africanos, sendo estes submetidos à inumanidade do processo escravista; a propósito, este foi um dos pecados da Igreja reconhecidos pelo Vaticano, no ano de 2000, em documento intitulado “Memória e reconciliação: a igreja e as culpas do passado” (cf. COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL, 2013): nele se encontram, entre outros, o pedido de perdão pelos pecados contra diversidade cultural e religiosa, produzido pela autoritária evangelização, com o “Uso da violência ao serviço da verdade”, que seguiu o processo de colonização.

Então, investido de tanto poder soberano, Portugal não se fez de rogado e escravizou não mais homens e mulheres africanos, mas, sim, semi-humanos imbecilizados, que foram vendidos, comercializados, vilipendiados, transformados, enfim, em máquinas azeitadas por castigos vários, todos tenebrosos, que lhes amargaram a parca vida enquanto adoçavam as cortes com o açúcar produzido nos canaviais de Açores, São Tomé e Príncipe.

O açúcar, utilizando técnicas árabes e mão de obra escrava em sua produção, desceu dos palácios e se revelou incomparável produto para comércio quando se espalhou pela plebe, que lhe percebeu e lhe perseguiu o gosto. Gosto de sangue, é certo! Gosto de suor escravo, que carregou o sabor desse açúcar… Mas quem o sentiu?

Foi a Espanha quem primeiro notou o negro tempero adicionado ao novo ouro branco, pois, assistindo à forte expansão do país vizinho, logo o imitou e chegou, em 1492, a novas terras de um Novo Mundo.

Nada mais justo, portanto, segundo a compreensão de então, que a Espanha também requeresse, junto ao novo Papa, o mesmo direito anteriormente concedido a Portugal. E Alexandre VI editou, em 04 de janeiro de 1493, a bula Inter Cœtera, estendendo à Espanha os mesmos poderes que a Dum Diversas, cinquenta anos antes, havia concedido a Portugal.

Quanto a este, viu-se compensado pelo Papa, que deslocou para Tordesilhas a linha que divide o mundo entre as duas então potências europeias, paladinas da fé cristã, que se expandiram pelo mundo. Foi o bastante para que Portugal estendesse seus domínios às novas terras, que hoje conhecemos pelo nome de Brasil; não sem prosseguir com a exploração da costa africana em direção ao sul, na busca de caminho alternativo para as Índias e para os tesouros mouros.

Foi assim que se “descobriu” Angola, onde havia fartura de gentes, logo dominadas, constituindo fonte nova, de onde brotavam escravos novos aos borbotões.

Escravidão no Brasil - Gravura de Jean-Baptiste Debret
Escravidão no Brasil – Gravura de Jean-Baptiste Debret

A ESCRAVIDÃO CHEGA AO BRASIL

A terra de além-mar é larga e o poder está distante. Como defendê-la da ganância de estrangeiros tantos, agora não mais só espanhóis, pois a eles se juntam ingleses, franceses, holandeses?

A solução foi dividir a terra em sesmarias, doadas a capitães que detêm poder ilimitado, sujeitando-se somente ao rei de Portugal. Criaram-se as hereditárias capitanias, onde foi preciso encontrar fonte de renda e subsistência, destinada a fixar o dono à terra: a solução encontrada resultou em transportar, para cá, o poder da cana-de-açúcar, cujo cultivo, nos Açores, se mostrava tão poderoso, e nas novas terras, tão promissor.

Por aqui, sobretudo em Pernambuco, se veem promessas certas para tal cultivo, pois está quase em linha reta com os Açores, onde a cana é riqueza inconteste, tão bem adaptada como se em sua própria casa.

Porém, no tempo de então, a cana requeria fartura de mão de obra que, como nos Açores, haveria de ser sempre escrava. Potenciais escravos havia, aos montes, nas terras de Angola, e eles foram remetidos para o Brasil, em navios de Portugal.

Foi assim que chegou a escravidão ao Brasil: mero desdobramento de costume arraigado em Lisboa, cuja população, então, se torna quase negra – um terço de seus habitantes, por essa altura, era formado por escravos africanos. Isto, em menos de um século de impunidade, captura e saque!

E a escravidão chega ao Brasil, apoiada pelas leis papais, cujo alcance, à época, é universal e sujeita a todos os que professam a fé cristã, que Portugal, sobretudo, carrega, espalha e impõe.

Assim chegaram os escravos ao Brasil: dominados, renomeados, desumanizados… Não cidadãos, porque meros animais de carga e tração. Animais que, durante dois séculos, disputaram, palmo a palmo, com os índios – chamados então “negros da terra” – a hegemonia do indesejado status de escravo. Tudo sob o domínio inconteste e truculento de posseiros legais, visto que sesmeiros por determinação real e sob a bênção papal.

Escravidão no Brasil - Gravura de Jean-Baptiste Debret
Escravidão no Brasil – Gravura de Jean-Baptiste Debret

Mas os africanos fugiam e isso porque não se conformavam com o domínio integral de seu corpo, alma, desejos, crenças e vontades, por outros que, com a justificativa da cor da pele e da identidade religiosa, o exerciam à larga, violentamente, à chibata, bacalhau e pelourinho.

Como reação, o Estado autorizou, por alvará de 23 de março de 1741, que se carimbasse, a ferro em brasa, a letra “F” de fugitivo em todos os negros recapturados. Com a letra, foram eles para sempre reconhecidos como rebeldes pela vida que lhes restava, o que lhes condenava a nova escravidão, dentro da escravidão que já viviam.

Marcados, de nada lhes adiantava carta de alforria, visto que, sem foto ou qualquer outro fator de identificação além da indelével letra que carregavam sobre a pele, a carta sempre poderia ser contestada como obtida por roubo ou assassinato. Ou crime pior que, via de regra, os levava à forca.

Marcado, não podia mais ele ser vendido, por absoluta falta de comprador: quem investiria o precioso e raro capital em mercadoria tão volátil, fugidia e fugaz? Marcado, não lhe adiantava fugir. Não teria a liberdade de ir e vir, posto que a letra que o denunciava lhe travava as pernas. Marcado como gado, foi-lhe impossível sequer sonhar com a cidadania, se é que algum dia a condição de escravo lhe possibilitou sonhar tão alto tal sonho…

Quatorze anos tinha o malsinado alvará quando a abolição da escravidão indígena se consolidou no Brasil: a partir de 06 de junho de 1755 no Estado do Grão-Pará e Maranhão e, três depois, em todo o Brasil, reservava-se, aos africanos, o privilégio de permanecer como escravos únicos, únicos não cidadãos de nosso país. Por lei e por definição.

Mais cinquenta e três anos se passaram e o Brasil, recebendo fugido o rei de Portugal, que então temia mais as tropas de Napoleão que a própria morte, tenta modernizar-se. Assim é que, em 25 de novembro daquele ano de 1808, quando recebe o rei, se vê necessitando mão de obra nova, até porque a Revolução Industrial atingia quarenta anos de idade na Inglaterra.

Então, concedeu-se terras a estrangeiros, exceto negros, que aqui viessem buscar vida nova. Estrangeiros, sim; negros, não… porque se negro nem sequer é gente, que dizer gente estrangeira? Nada mais lógico: sem nem sequer ser gente, nem mesmo dono de si mesmo, como poderia ele ser digno de ser dono da preciosa terra, que cultivava apenas sob o manto e o mando de seus donos brancos?

Mas lá se foi o rei; e seu filho, depois chamado Pedro I, proclamou a Independência do Brasil. Mas não dos negros brasileiros, que continuavam dependentes das vontades das elites que, quando não os possuíam, podiam mantê-los abaixo da base da pirâmide social, sem direito a qualquer direito além daquele de apenas ter dever, e muitas vezes o dever de responder por crimes nem sempre cometidos.

Escravidão no Brasil - Gravura de Jean-Baptiste Debret
Escravidão no Brasil – Gravura de Jean-Baptiste Debret

Sem direitos, exceto o de tornar-se gente apenas para se sujeitar às leis europeias que vigoravam no Brasil, muitos africanos foram condenados por furto, mesmo que provindos de sociedades em cujo ordenamento e dinâmica social o furto é crime impossível, posto que desconhecem o conceito de propriedade individual.

Nesse sentido, é interessante observar as ideias racistas de Nina Rodrigues, segundo as quais os negros – como também os índios – compõem, no universo humano, raças inferiores, marcadas biológica e socialmente por incapacidades e incompreensões, se comparadas à superior raça branca europeia, a qual goza a condição de estar em estágio mais elevado da evolução social e mental.

Foi baseado nesta racista compreensão que ele persistiu na pertinência e necessidade de tratamento penal diferenciado aos negros[5], considerando costumes variadamente arraigados em diferentes sociedades; mas não obteve qualquer resultado mais objetivo.

Assim, a primeira Constituição brasileira, de 05 de dezembro de 1824, foi mais além e proibiu que negros e leprosos frequentassem escolas. Talvez quisesse a Lei Maior proteger as elites contra as gentes que portavam defeitos de pele… Talvez quisesse somente ampliar a escravidão física, adicionando, a ela, a escravidão da ignorância…

Passaram-se apenas seis anos e a libertação dos escravos se mostrava inevitável, até por pressão externa motivada, também, por interesses econômicos: negros livres, por alforria ou fuga, formavam quilombos nos campos ou transitavam, comerciando-se, pelas cidades.

Quanto a estas, encheram-se de negros, enquanto o campo se encheu de pontos de contestação. Entende-se que, diante de tanta ignomínia, o Código Criminal do Império não poderia fazer vista grossa: tornava-se claro que a Lei deveria ser endurecida para colocar, em grades, aqueles que assim atentavam contra a moral, os costumes e a ordem pública.

Em decorrência, insignes homens da lei decidiram agir, de maneira que o art. 295 do mencionado Código Criminal passou a condenar, à prisão com trabalhos, quem não pudesse comprovar ocupação “honesta” e “útil”! Porém, qual seria a ocupação honesta e útil pertinente a ex-escravos? Como eles comprovariam, mesmo sendo artesãos ou comerciantes, que possuíam ocupação “honesta” e “útil”? Ou permanecer escravo bastaria para tal comprovação…?

Mas o mundo mudou, e a Inglaterra, transportada por sua poderosa esquadra naval, já se tornava a grande potência em torno à qual o mundo girava. Por consequência, ao  ver-se detentora das rédeas que moviam a economia mundial, transformou-se em nação capaz de ditar os rumos de todas as demais.

Nessa conjuntura, duas questões colaboraram fortemente para que a Inglaterra adotasse posição em favor do fim da escravidão pelo mundo, inclusive impondo, em 1807, o fim do tráfico pelos ingleses, por meio da aprovação, em seu Parlamento, do “Abolition Act”.

Primeira questão: motivados por campanha popular interna inédita, que contava com grupos organizados de diferentes perfis de cidadãos, acharam os ingleses que se havia tornado imprescindível revestirem-se da capa de guardiões da dignidade humana, especialmente quando a inexistência de tal dignidade pudesse ameaçá-los em sua hegemonia.

Segunda: a duvidosa esperança de transformar escravos em sujeitos consumidores de produtos ingleses, motivando a criação de mercado interno na América, o que viu-se alavancado pela diminuição do preço do açúcar produzido no Brasil com mão de obra escrava negra, o que afetava, diretamente, a concorrência com as colônias inglesas. Portanto, torna-se evidente e necessário eliminar a escravidão africana.

O Brasil, subserviente à Inglaterra, sobretudo porque grato à proteção inglesa dada à fuga da Corte portuguesa para o Brasil, ao escapar Napoleão, viu-se forçado a promulgar lei proibindo a importação de escravos novos: assim, a Lei Feijó foi aprovada em 07 de novembro de 1831, proibindo o tráfico e considerando livres todos os africanos introduzidos no Brasil a partir daquela data.

Mas, como toda lei que impõe deveres enfrenta resistências de todas as formas possíveis, esta não produziu qualquer efeito. Nasceu aí a expressão ainda hoje tão popular: “Só p´ra inglês ver!”

Em 20 de março de 1838, o governo de Sergipe, cioso guardião dos poderes constitucionais, efetivamente proíbe negros e leprosos de frequentar escolas.

A Inglaterra continuava a legislar em favor do fim da escravidão e na defesa de seus interesses. Tanto que, em 1833, o Parlamento daquele país aboliu a escravatura internamente, em todo o Império. Em 08 de agosto de 1845, aniversário de quatrocentos e um anos da incursão de Lançarote Bessanha à foz do rio Senegal, é aprovada a Slave Trade Suppression Act, a famosa Bill Aberdeen Act, que proibia o tráfico de escravos em África e América, e autorizava os ingleses, unilateralmente, a desrespeitar a soberania alheia, aprisionando ou afundando navios negreiros de qualquer nação, quando encontrados em águas do Atlântico. Foi assim que negreiros destinados ao Brasil, inclusive, foram reprimidos pelos ingleses.

Em resposta, o governo brasileiro pôs em vigor, cinco anos e vinte e sete dias depois, a Lei 581 – Eusébio de Queiroz: por ela, se reproibiu o tráfico de africanos escravizados para o Brasil, a partir da data de sua promulgação: 04 de setembro de 1850.

Não contente, o Brasil ainda sentiu necessário reafirmar sua soberania como plena sobre seus negócios e promulgou, apenas dezesseis dias depois, a lei 601, de 20 de setembro de 1850, denominada Lei de Terras: por ela, ficou proibida, ao governo, a cessão de terras a quem quer que seja, exceto a título oneroso; na prática, ficou proibido, aos pobres, o acesso à terra, dentre os quais os ex escravos que, logicamente, constituíam sua imensa maioria.

É evidente que, a partir de então, escravos de eito, obrigados ao trato sem salário da terra alheia, viram afastada de si qualquer possibilidade de possuir um pedaço de chão. Daí a origem dos bairros negros, ocupando morros e várzeas, que passaram a circundar os incipientes centros urbanos. Em outras palavras: daí os mocambos, alagados e favelas.

Entretanto o governo, mesmo perante o comando da Lei 601, continuou concedendo terras a imigrantes, exceto aos negros que, durante os trezentos anos anteriores, haviam sido imigrantes compulsórios. Tanto assim que oficializou tais doações quarenta anos depois, em 28 de junho de 1890, quando reabriu a imigração no país, como se verá adiante.

Porém, a sociedade segue… e modifica sua filosofia: a névoa de positivismo, nascida na França há quase um século, exigiu que a liberdade passasse a ser considerada como patrimônio humano, qualquer que seja o humano a ser considerado… e a Lei 2040, chamada do Ventre Livre, assim se fez.

Não que, efetivamente, os filhos de escravos nascidos após 28 de setembro de 1871, data de promulgação desta Lei, realmente viessem ao mundo como livres. Não! Eles deveriam ser sustentados pelo dono de sua mãe até os oito anos de idade, é verdade; mas deveriam, também, pagar sua estadia, trabalhando, no eito deste mesmo dono de escravos, até completar vinte e um anos: é o que dispunha o d 1º do art. 1º desta Lei. Só depois seriam livres… Seriam? Será?

Patrões houve, é claro, que não quiseram arcar com a despesa de criar um negrinho que, alguns anos depois, estaria livre. Então, passaram a entregar recém-nascidos aos cuidados oficiais, dando início à famosa Roda dos Enjeitados; e à infância abandonada.

Ao lado deste quadro, a política nacional também buscava novos rumos: o Brasil, sob a vigência do Príncipe Regente, resolve, conforme texto da lei eleitoral de 03 de janeiro de 1822, proceder a eleições para a Assembleia Constituinte e Legislativa. Exigia-se, dos eleitores, “[…] decente subsistência por emprego, indústria ou bens”[6]. O voto era censitário, ou seja, proporcional ao número de casas – chamadas fogos – existentes em cada paróquia. Admitia-se o voto por procuração. Não havia título de eleitor e o reconhecimento deste era feito pelas paróquias. E mais: exigia-se, do eleitor, a fé católica.

É lógico que os negros, quer escravos, quer não, sempre deixavam alguma dessas condições por preencher. Quanto aos escravos, simplesmente não lhes era dado qualquer direito ao voto, posto que considerados mercadorias estrangeiras, mesmo quando nascidos no Brasil. Enfim: a população negra viu-se afastada de um dos principais exercícios de cidadania, que é o direito ao voto: direito de escolher, por vontade livre, seus próprios dirigentes.

Escravidão no Brasil - Gravura de Jean-Baptiste Debret
Escravidão no Brasil – Gravura de Jean-Baptiste Debret

É certo que a partir da Lei Saraiva, de 09 de janeiro de 1881, elaborada por Ruy Barbosa, deixou-se de exigir o catolicismo como fator de habilitação às eleições. Porém, foi a partir de então que se impediu o voto aos analfabetos e aos mendigos que, em sua esmagadora maioria, assim como ainda hoje, são escravodescendentes; e são negros.

Mas o vento da liberdade não podia parar de soprar. E ventou forte lá no Ceará. Exatamente a 25 de março de 1884, por artes e manhas de Francisco José do Nascimento, o Dragão do Mar – jangadeiro e negro – a cidade de Acarape, hoje chamada Redenção, decretou a abolição da escravatura em seu território. A seguir, em 20 de junho do mesmo ano, o Amazonas repetiu o mesmo gesto, que encontrou eco, em dezembro, no Rio Grande do Sul.

Mas o ano seguinte viu, logo em fevereiro, encerrada a Conferência de Berlim, que dividiu a África entre as potências europeias, fatiando-a de longe e dividindo, entre si, os pedaços gulosamente abocanhados. Isto é: à vista do fim do tráfico de escravos africanos, já então abolido em todos os países do mundo, os europeus resolveram escravizar a África inteira, formando, no próprio local de origem, escravos novos, sem o incômodo de transportá-los de lá para cá. De quebra, assenhorearam-se das riquezas locais.

Considerados prós e contras, a Conferência de Berlim, do ponto de vista de seus efeitos, só começou a encerrar-se a partir de 1960, quando países africanos, quer por armas, quer por estranhos e tortos caminhos de diplomacia, começaram a alcançar sua independência.

Portanto, durante mais setenta e cinco anos, a África permaneceu fatiada e esquartejada, embora grande o bastante para se mostrar mais que suficiente para saciar a fome insaciável e a sanha de seus indevidos dominadores, que aproveitaram para enriquecer-se durante a digestão.

São os pedaços arrancados pelos esfomeados países europeus, ao marcar suas tortas cicatrizes, que formam, hoje, as fronteiras africanas, que não respeitam costumes, culturas, soberanias ou etnias. Daí as infindáveis e incompreensíveis guerras e escaramuças, perenes holocaustos de origem europeia.

No Brasil, em 28 de setembro de 1885, foi assinada a Lei 3.270, a Lei dos Sexagenários: no papel, ela daria liberdade aos escravos que completassem sessenta anos; desde que, segundo dispunha o d 10º do art. 3º da mencionada Lei, indenizassem seus senhores com mais três anos de trabalho! Caso contrário, liberdade, mesmo, só aos sessenta e cinco!

Na verdade e na prática, a tal Lei se mostrou de impossível execução. Como comprovar a idade sem registros de nascimento? A quem caberia a execução da Lei, se não aos próprios donos de escravos? Por outro ângulo: quem teria interesse em manter, às suas custas, o velho escravo sexagenário, imprestável para o trabalho àquela altura da vida, sendo que o trabalho havia sido, sempre e exclusivamente, sua única finalidade?

Enfim: a Lei autorizou os proprietários a descartar-se, até por obrigação legal, de seus entulhos humanos, carregadores de bocas desdentadas para sustentar, sem qualquer retorno possível a ser esperado. Efetivamente, a Lei dos Sexagenários instituiu, no território nacional, a velhice desamparada.

Chegamos, então, ao celebrado 13 de maio de 1888, quando a Princesa Isabel, a Redentora, assina, com a caneta de ouro cedida por José do Patrocínio, a nossa festejada Lei Áurea. Que merece festa; muita festa: afinal, devolveu a cinco por cento da população negra brasileira da época, o direito à posse e propriedade de si mesmo! Quanto aos restantes noventa e cinco por cento, ou haviam fugido, ou já se haviam tornado livres há muito tempo atrás…

O quilombo do Jabaquara, em Santos/São Paulo, é prova viva desta liberdade antecipada, quer obtida por alforrias, por autocompra ou qualquer outro meio; legal, ou não.

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O BRASIL APÓS A ABOLIÇÃO

Porém, a evolução não para e o Brasil não pode, só porque a escravidão não mais existia, prescindir de mão de obra. De preferência estrangeira, vez que ex-escravos são ex-escravos e qualquer negro, naquele momento, ou era escravo, ou melhor, ex-escravo, ou descendia dele.

Então reabre-se, em 28 de junho de 1890, a imigração no país: apenas dois anos após doar a indigência ao contingente negro à força imigrado, aceitam-se estrangeiros como imigrantes voluntários; exceto negros e asiáticos, que dependem de autorização do Congresso para tanto. Autorização negada aos africanos; mas conseguida por outros povos, tais como os asiáticos japoneses…

Passam-se apenas quatro meses e, em 11 de outubro de 1890, o art. 402 da Lei de Vadiagem tipifica a prática pública da capoeira, esporte e dança de negros, como crime…

Mais um mês e oito dias transcorrem, e Rui Barbosa, então nosso Ministro da Justiça, determina, em 19 de novembro do mesmo ano de 1.890, a queima dos arquivos oficiais sobre a escravidão: temia, ele, a condenação do Governo ao pagamento de indenização aos antigos donos de escravos, pela perda de patrimônio causada pela abolição…

Dez anos depois, e chegava o século vinte: novos ares preenchem os pulmões da política e da seara legal brasileira. Getúlio vence a Revolução de 1930 e assume o poder. Mais dez anos…, e o art. 59 da Lei de Contravenções Penais, de 1940, impõe pena entre quinze dias e três meses para quem for considerado vadio… Porém, quem seria o vadio? Quem não tem documento que prove o contrário, é lógico! Mas, e os negros que ainda hoje não encontram facilidade para obter o documento assinado, exceto para trabalho braçal ou subalterno? O IBGE que o diga! E diz![7]

É ainda sob Getúlio que nova determinação legal alcança os negros, brasileiros ou não: o Decreto 7967, de 18 de setembro de 1945, redisciplina a política oficial de imigração, assim dispondo, em seu art. 2º: “Atender-se-á, na admissão de imigrantes, à necessidade de preservar e desenvolver, na composição étnica da população, as características mais convenientes de sua ascendência européia […]”. Mesmo com a deposição de Getúlio, pouco mais de um mês depois, em 29 de outubro do mesmo ano, o decreto sobrevive a seu governo.

Torna-se claro que, à luz das legislações vigentes, em nossa terra dita de democracia, a cidadania negra nunca foi reconhecida; exceto para esconder-se à sombra da luz que iluminava a elite de outra qualquer cor! E isso, por longos quatrocentos e cinquenta anos, o que ainda produz efeitos nefastos e negativos sobre nossa maior minoria: os escravodescendentes atuais.

Quanto a estes, somente viram pequena luz, quase invisível, quando a Lei Afonso Arinos, de 03 de julho de 1951, foi promulgada, sob nº 1390/51: a referida lei foi a primeira, no Brasil, a incriminar a discriminação e preconceito racial. Mesmo assim, por tímida, nenhum efeito produziu em nossos tribunais.

Somente trinta e quatro anos depois, o governo do Rio de Janeiro, editando a Lei 962, de 17 de dezembro de 1985, proibiu a discriminação em elevadores. Isso porque, sem a lei local, não haveria como impedir tal discriminação, quase completamente absorvida pelo direito consuetudinário…

Vê-se, claramente, que o corpo legal vigente até então, por pífio, fraco, inócuo, inerme, embora apregoasse democracias sociais, mantinha como coisa alguma a dignidade e a cidadania dos negros.

Como decorrência, o momento passava a exigir nova ordem legal; e foi justamente o que fez o deputado, baiano e negro, Carlos Alberto Oliveira – conhecido por Caó -, que conseguiu fazer aprovar a Lei 7.716, de 05 de janeiro de 1989, que leva seu nome; ou melhor, seu apelido. Essa lei tipifica, como crime, atos ali descritos como originados pela prática da discriminação de cor e o racismo.

Oito anos depois, em 13 de maio de 1997, por iniciativa do então deputado federal Paulo Paim, gaúcho e negro, foi aperfeiçoada a Lei Caó, alterando-lhe os artigos 1º e 20, o que ocorre por meio da Lei 9459.

Vejamos: originalmente, a mencionada Lei trazia, em seu art. 1º, o seguinte texto: “Constitui contravenção, punida nos termos desta lei, a prática de atos resultantes de preconceito de raça, de cor, de sexo ou de estado civil”, o que foi assim alterado: “Serão punidos, na forma desta Lei os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.” Portanto, o que era contravenção passou a ser crime.

Quanto ao art. 20, continha a seguinte redação: “Praticar, induzir ou incitar, pelos meios de comunicação social ou por publicação de qualquer natureza, a discriminação ou preconceito de raça, por religião, etnia ou procedência nacional”; com a alteração, passa a ser assim redigido: “Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Pena – reclusão de um a três anos e multa.” Percebe-se a ampliação do alcance do comando legal, que passa a atuar sobre qualquer meio de indução e incitação, não mais, apenas, quando praticados “pelos meios de comunicação.”

A conquista seguinte consolidou-se com o Decreto 1904, posteriormente revogado pelo Decreto 4229, ambos sob o governo Fernando Henrique e datados da emblemática data de 13 de maio: o primeiro, de 1.996 e o segundo, de 2.002, instituíram o Plano Nacional de Direitos Humanos – PNDH, que dá suporte à adoção de políticas de discriminação positiva, conhecidas pelo nome popular de ações afirmativas e que, em última análise, nada mais pretendem, para os escravodescendentes, que lhes devolver a cidadania plena que todo o ordenamento legal anterior lhes negou, reiterada e sistematicamente.

Foi como desdobramento do PNDH que o Governo Federal, a esta altura sob a Presidência de Luís Inácio Lula da Silva, institui, em 09 de janeiro de 2003, o ensino de história e cultura negra nos ensinos médio e fundamental, por meio da Lei 10639.

Ainda com base no PNDH, as universidades cariocas adotaram cotas para negros em seus vestibulares: iniciativa muitas vezes mal criticada pela referência ao art. 5º da Constituição Federal, que garante a igualdade de todos perante a Lei.

Ora, igualdade perante a Lei, como sabem os operadores do Direito, só existe quando há equilíbrio de poder entre as partes, no agir perante a Lei: esta a base em que se assenta o paternalismo que fundamenta a postura da Justiça do Trabalho, por exemplo, em que é lícita a inversão do ônus da prova, dentre outras providências não destinadas a nada mais que prover o hipossuficiente da desejada igualdade.

Não é outro, também, o fundamento que, por exemplo, determina fórum especial, no Código de Processo Civil, para os casos que especifica: dentre outros, a Comarca de residência do autor, sendo este menor; também assim nas ações de pensão alimentícia, ou, um pouco mais além, a diversidade de fóruns competentes a dizer a lei perante acidentes de trânsito.

O importante é que, se assim é o espírito da lei, embora não sua letra cheia, não há o que discutir quanto à pertinência das ações afirmativas. O importante, enfim, é conhecer-se que, se negros hoje precisam de cotas, ou o ensino de sua cultura só se faz quando obrigado por lei, são estas determinações meros paliativos – remédios que, se aliviam a dor legal, não curam o câncer social que esta mesma dor produziu. Por isto, não podem ser tidas como panaceias universais, curadoras de todos os males e cicatrizes que a própria lei gestou, produziu e aplicou.

Há, ainda, quem duvide da pertinência das cotas ou da lei 10.639, mesmo sabendo que nosso Código Civil, sobretudo, impõe ao causador do dano a reparação do mesmo e que quase todo o dano causado aos afrodescendentes brasileiros decorre da lei? Ou há quem duvide da pertinência do PNDH, por que incentiva a prática da discriminação positiva? Há!

Por este pensamento, nada mais faz o PNDH que autopunir-se por todo o equívoco emanado das leis e costumes que o antecederam…!!!

Quem sabe as cotas, a lei 10.639 e o PNDH, se bem aplicados, consigam devolver, ao menos em pequena dose, um pouco de cidadania àqueles que, deportados compulsoriamente de suas terras, banidos que foram pela força do aliciamento sob armas, aqui vieram ter, transformados em meros semoventes, destinados unicamente à execução braçal da arquitetura de um povo novo – o brasileiro – que, ao fim, lhes recusou reconhecimento e os manteve, sempre e sistematicamente, no mais profundo poço escuro da escala social…

Quem sabe a lei possa servir como subsídio importante na luta para devolver, ao negro, a cidadania que ela própria lhe negou, e o inclua entre seus pares, gerando o negro social, já que nada fez de aproveitável, em nenhum momento de nossa história, pelo negro legal.

 

REFERÊNCIAS

AZURARA, Gomes Eanes de. Chronica do descobrimento e conquista de Guiné. Disponível em <http://purl.pt/216/4>. Acessado em: 29/07/2013.

BRASIL, Tribunal Superior eleitoral. História das eleições no Brasil: a evolução do sistema eleitoral brasileiro. Disponível em: <http://www.tse.jus.br/hotSites/biblioteca/historia_­das_eleicoes/­capitulos/eleicoes_brasil/eleicoes.htm>. Acessado em: 28/07/2013.

CÁCERES, Florival. História geral. 4ª ed. rev., amp. e atual. São Paulo: Moderna, 1996.

COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL. Memória e reconciliação: a igreja e as culpas do passa­do. ­Disponível em: <http://www.vatican.va/roman_curia/congre­gations­/cfaith­/­cti_docu­ments/­rc_con_cfaith_doc_20000307_memory-reconc-itc_po.html> Acessado em: 26/07/2013.

COSTA, Ricardo da. A igreja Católica e a escravidão. Gazeta do povo, Caderno Opinião – 2, de 03/02/2013. Disponível em: < http://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/conteudo.phtml?­id=1341698&tit=A-Igreja-Catolica-e-a-escravidao>. Acessado em: 28/07/2013.

COVRE, Maria de Lourdes Manzini. O que é cidadania. 2ª ed.. São Paulo: Brasiliense, 1993. 78p. (Coleção primeiros passos; nº 250)

GELEDÉS – Instituto da Mulher Negra. 1452-55: quando Portugal e a Igreja Católica se uniram para reduzir [praticamente] todos os africanos à escravatura perpétua. Disponível em: <http://www.geledes.org.br/esquecer-jamais/179-esquecer-jamais/1807-1452-55-quando-portugal-e-a-igreja-catolica-se-uniram-para-reduzir-praticamente-todos-os-africanos-a-escravatura-perpetua>. Acessado em: 29/07/13

MARTINS, Marcos Francisco. Ensino técnico e globalização: cidadania ou submissão? Campinas-SP: Autores Associados, 2000. (Coleção polêmicas de nosso tempo)

NIANE, Djibril Tamsir (editor). História geral da África, IV: África do século XII ao XVI. 2. ed. rev. Brasília: UNESCO, 2010.

RODRIGUES, Nina. As raças humanas e a responsabilidade penal no Brazil. Rio de Janeiro, Editora Guanabara, s/d. Disponível em: < http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/Deta­lhe­ObraForm.do?select_action=&co_obra=61586>. Acessado em 01/08/2013.

* Artigo originalmente como capítulo do livro Africanidades, Afrodescendência e Educação.; Curitiba: CRV, 2017, p. 15-34

[1] Bacharel em Administração de Empresas e Ciências Contábeis. Coordenador da Câmara de Preservação Cultural do Núcleo de Cultura Afro-Brasileira – NUCAB – da Universidade de Sorocaba – UNISO. E-mail: ademirbs@ig.com.br

[2] Professor adjunto da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) – campus Sorocaba, onde coordena o Programa de Mestrado em Educação e lidera o GPTeFE (Grupo de Pesquisa Teorias e Fundamentos da Educação). É bolsista de Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), com graduação em Filosofia (PUC-Campinas), mestrado e doutorado em Filosofia e História da Educação (FE-Unicamp). E-mail: marcosfranciscomartins@gmail.com

[3] Como afirma Costa: “Entrementes, a Igreja Católica, reiteradamente, condenava a escravidão. Há inúmeras bulas papais a respeito: na Sicut Dudum (1435), Eugênio IV mandou libertar os escravos das Ilhas Canárias; em 1462, Pio II instruiu os bispos a pregarem contra o tratamento de escravos negros etíopes, e condenou a escravidão como um tremendo crime; Paulo III, na bula Sublimus Dei (1537), recordou aos cristãos que os índios são livres por natureza (ao contrário dos negros, que praticavam a escravidão); em 1571, o dominicano Tomás de Mercado declarou desumana e ilícita a escravidão; Gregório XIV (na Cum Sicuti, de 1591) e Urbano VIII (na Commissum nobis, de 1639) condenaram a escravidão.” (COSTA, 2013)

[4] Esse foi, dentre outros, o caso do Papa Leão XIII que, por meio da Encíclica In Plurimis, dirigiu-se aos brasileiros, pedindo que intercedessem junto ao Imperador e à filha Isabel pelo fim da escravidão.

[5] “O desenvolvimento e a cultura mental permitem seguramente às raças superiores apreciarem e julgarem as fases por que vai passando a consciência do direito e do dever nas raças inferiores, e lhes permitem mesmo traçar a marcha que o desenvolvimento dessa consciência seguiu no seu aperfeiçoamento gradual. […] As condições existenciais da sua sociedade tendo variado, com elas variou o conceito do direito e do dever. As condições existenciais das sociedades, em que vivem as raças inferiores, impõem-lhes também uma consciência do direito e do dever, especial, muito diversa e às vezes mesmo antagônica daquela que possuem os povos cultos. Mas, a esta circunstância, que já os impedia de ter a mesma consciência do direito e do dever, acresce que a sua organização fisiopsicológica não comporta a imposição revolucionária de uma concepção social, e de todos os sentimentos que lhe são inerentes, a que só puderam chegar os povos cultos evolutivamente, pela acumulação hereditária gradual do aperfeiçoamento físico que se operou no decurso de muitas gerações, durante a sua passagem da selvageria ou da barbárie à civilização.” (RODRIGUES, s/d, p. 84-85)

[6] Cf informa, dentre outros, o site do TSE: <http://www.tse.jus.br/hotSites/biblioteca/historia_–das_eleicoes/capitulos/­eleicoes_brasil/eleicoes.htm>

[7] Segundo o IBGE, negros ganham 30% menos que mulheres brancas, o que corresponde a apenas 50% do rendimento médio dos homens brancos. Isto, em 2001, diz o IBGE, que o repete dez anos depois! E o diz oficialmente, posto que publica tão espantosa revelação – se é que causa qualquer espanto conhecer, oficialmente, o que a realidade não faz questão de esconder – em sua Síntese de Indicadores Sociais; quer em 2002, quer em 2012.