Bruno Pastre Máximo e Bernardo da Silva Heer , Por dentro da África
Ouidah, Benim – Sem dúvida, a cidade histórica de Ouidah é uma parada obrigatória no Benim para quem se interessa por assuntos como a cultura Fon, o Vodum, o sincretismo religioso beninense, o trafico de escravos e a comunidade afro-brasileira local (Agudás).
A cidade foi a segunda mais importante do Reino de Daomé e possuiu um dos maiores portos de escravos da África, durante o final do século XVIII e início do XIX. Ela foi moldada com uma arquitetura colonial expressiva, que se mantém até hoje, bem como o Forte Português, que foi transformado em museu e importante para entender o passado da cidade e do tráfico negreiro.
Vale a pena alojar-se no centro da cidade, garantindo fácil deslocamento a pé para os principais pontos de interesse, com exceção da praia, alcançada por veículos, como moto-táxi (trajeto de 15 minutos).
Ouidah possui significativa rede de hotéis, não apresentando dificuldades nesse sentido, à exceção da época do festival do Vodum (10 de janeiro), quando tudo fica lotado, e é prudente reservar com antecedência.
Existem dois caixas eletrônicos na cidade, mas, às vezes, eles ficam fora de atividade; é recomendável sacar seu dinheiro antes. A estrutura urbana é boa no centro, havendo asfalto, luz e água encanada na maioria das casas, mas a iluminação pública, à noite, é escassa. Para nós, a cidade se mostrou extremamente segura, sem nenhum problema de violência, mesmo à noite.
Caminho para a praia
O caminho para a praia relembra a antiga rota dos escravos, sendo marcado por esculturas. O trajeto culmina no principal monumento da região e atual patrimônio da humanidade: a Porta de Não-Retorno dos Escravos. Esse interessante marco arquitetônico é consagrado pela lembrança do horror da escravidão e tráfico negreiro em direção à América.
Neste local, é celebrada boa parte do festival do Vodum de 10 de janeiro, tópico que será tratado à parte. Junto ao monumento, existe um museu que aborda o comércio de escravos. Por lá, existem diversos guias que podem ser de grande valia para melhor compreensão da história.
Museus e mais museus
A cidade possui quatro museus: o já citado Museu de História de Ouidah, no forte antigo Português; a Casa do Brasil; Museu da Escravidão e a Fundação Zinsou. O Museu de História é composto por diversas salas, que retomam a história do forte e seu vínculo com a escravidão. A coleção está um pouco confusa, porém, com a ajuda do guia, é possível compreender melhor a função e utilidade dos artefatos.
O ponto alto foi a visita à sala de exposições temporárias, onde estava exposta uma série de fotografias de Pierre Verger, fazendo a comparação com a religião Vodum e o seus descendentes na América, em países como Haiti, Cuba e Brasil. Em todo o nosso percurso, este foi o único local onde esta ligação era explicitamente colocada, o que nos deixou contentes por vermos que não esqueceram de seus descendentes no além-mar.
A Casa do Brasil, o museu mais esperado, em primeiro momento, se mostrou decepcionante por ter com uma exposição antiga e sem relação com o título do Museu. A amostra tinha como tema as mulheres e o seu trabalho no continente africano, contendo fotografias, textos e artefatos ilustrativos dos diversos segmentos do artesanato. Não que o tema não seja importante e relevante, porém, como brasileiros, esperávamos algo que contasse a história da presença brasileira na região. O único objeto referente é uma lista incompleta com os nomes das famílias brasileiras em Ouidah.
Comunidade afro-brasileira (Agudás): um expressivo número de ex-escravos residentes no Brasil, junto com alguns traficantes de escravos e administradores coloniais luso-brasileiros fixaram residência em Ouidah, entre o fim do século XVIII e início do XX. Desde então, estabeleceram lá uma ampla comunidade que até hoje reivindica a identidade brasileira, mantendo uma série de tradições, tais como o sobrenome português, a religião católica, alguns vocábulos e diversas festividades que, no caso de Ouidah, são organizadas pelas principais famílias afro-brasileiras (como os de Souza e os Gomez).
As danças e canções dos agudás, que são cantadas em português até hoje, são transmitidas por tradição oral, bem como danças como a “Bouria” (Burrinha).[1] A comunidade “brasileira” é muito grande e extremamente receptiva com brasileiros e pode ser encontrada por toda a cidade, basta perguntar por eles! As datas de suas festividades não são fixas, porém, o mês de janeiro, por ser o mês das comemorações do Nosso Senhor do Bonfim, é muito propenso.
As festas são privadas, mas é possível ser convidado pelas famílias que se simpatizarem com você. No nosso caso, fomos extremamente bem recebidos numa festa da família Gomez; pediram que fizéssemos um discurso com trechos em português, com o qual eles ficaram inacreditavelmente contentes.
Vodum e floresta
É impossível compreender a cidade de Ouidah e aquilo que se passa nela sem entender minimamente o Vodum. Em muitos sentidos, o Vodum move a cidade. Ele está presente em praticamente toda a cidade. Um dos significados da palavra Vodum, na língua Fon, é o de “divindade”, ou, para os praticantes do Candomblé, “Orixá”. Além disso, Vodum também é o nome da religião deles, religião que é antepassada direta do Candomblé brasileiro.
Existe uma forte correlação entre as divindades do Brasil e as de lá, algo que, no começo, parece um pouco confuso pela diferença de nomes (já que, no Brasil, ficaram mais conhecidos os termos na língua Iorubá, e não em Fon). Ao longo das conversas, a confusão é dissipada.
O Vodum é praticado tanto em ambientes internos, em pequenos “altares” e templos do Vodum, como em locais públicos, praças, florestas e locais significantes. O culto é altamente difundido. Mesmo aqueles que, em um primeiro momento, se dizem cristãos ou muçulmanos, se mostram profundos conhecedores do Vodum e até mesmo o praticam paralelamente. Na cidade, existem alguns templos famosos; localizado no centro da cidade (em frente à Catedral Católica), o templo de Python é o principal (habitado por diversas cobras, é visita obrigatória).
Segundo a narrativa tradicional, as cobras foram fundamentais para a criação da cidade. Há inúmeras divindades cultuadas na cidade: Gu (Ogum), Legba (Exu), Heviosô (Xangô), Tron (sem equivalente no Brasil), Abiku, Sakpatá (Obaluaê), dentre tantas outras. Existe uma profunda hierarquia entre os sacerdotes do Vodum, e o chefe supremo recebe o título de Daagbo Hounon. Ele possui a função de comandar as principais cerimônias e zelar pelas práticas tradicionais.
Para se tornar o chefe supremo, é necessário uma consulta aos oráculos (Fá) e uma prova de poder, que, no caso do atual chefe, teria sido andar sobre o mar até o horizonte, ficar lá por três dias e voltar sem se molhar. Qualquer desenho, montinho de pedras, encruzilhada ou árvore pode ser um local sagrado ou de culto. Por isso, a cidade é tão profunda e tão complexa, e nem mesmo morar lá por anos tornaria possível decifrar todos os códigos sociais.
Outro local importante para o Vodum é a Floresta Sagrada. Ela está afastada do centro da cidade e contém a Árvore que se acredita ser o Vodum do primeiro rei da cidade de Ouidah. Nessa floresta,são enterrados os grandes chefes de algumas das principais famílias da cidade e lá onde também são realizados muitos rituais Voduns interessantíssimos.
No nosso caso, no dia 9 de janeiro, presenciamos uma extensa e incrível cerimônia Vodum, que começava no templo de Daagbo Hounon, seguia em marcha pelo centro da cidade e depois continuava, por horas, na floresta sagrada, com muita dança, tambores, oferendas e uma infinidade de códigos próprios. Na floresta,existe também uma série de estátuas representando os Voduns.
Durante a nossa estadia, por sermos entusiastas do Candomblé, tivemos uma recepção extraordinária por parte dos sacerdotes Voduns, criando vínculos e amizades. É extremamente recomendado que as pessoas com interesse em saber mais sobre o Vodum já cheguem com alguma noção sobre o Candomblé, pois isto será o seu passaporte para poder entrar em locais e obter informações restritas.
A maioria da população de lá “já viu na TV” que existe o Candomblé, e é muito curiosa em saber as diferenças e similaridades. Outra questão essencial: as cerimônias e locais sagrados Voduns possuem algumas “regras de conduta” próprias. Exemplificando, jamais tire fotos de algo sagrado sem autorização (pode ser muito ofensivo e, em alguns casos, só pode ser feito mediante pagamento aos responsáveis do local – essa é uma das formas de captação de dinheiro para eles). Mas, mesmo que se pague para fotografar, jamais perca o bom senso!
Presenciamos algumas cenas deprimentes de estrangeiros que se enfiavam no meio dos rituais com suas câmeras enormes, sem perceberem o quão desrespeitosa era essa atitude. Outra conduta comum é tirar os sapatos nos locais sagrados, como sinal de respeito.
Arquitetura
A cidade possui um vasto patrimônio arquitetônico histórico, deixado pelo tráfico de escravos, pelos Agudás e pela colonização. Os diversos casarões, com a chamada arquitetura afro-brasileira, são os que mais impressionam: foram construídos por ex-escravos que aprenderam o ofício de pedreiro e carpinteiros no Brasil, e quando retornaram para a África, reproduziram os padrões arquitetônicos brasileiros na cidade.
Há uma imensa quantidade de casas com essa arquitetura; as casas dos Agudás são as principais. A situação de preservação depende muito da condição financeira do proprietário, mas em geral, por serem ainda utilizadas como residência, elas estão bem preservadas. Como casas de destaque, podemos citar a Maison dos De Souza, Gomez, Monteiro e a primeira escola da cidade. As casas são privadas, portanto, o acesso depende da permissão.
Confira aqui a introdução ao Especial Viajando por Benim, Togo e Gana
Veja mais: Passeio pela cidade universitária, Veneza Africana e um pouco de dança
Por dentro da África