Domingos da Cruz, Por dentro da África
Luanda – Um professor e amigo, me convidou para um diálogo com alunos adolescentes que frequentam entre nona e décima primeira classes. Não indicou o tópico que serviria de base para a nossa troca de razões. Em seguida, eu disse que gostaria de dialogar em torno do poder do cérebro. Disse também que não tinha nenhuma pretensão de falar sobre as dimensões anatómico-fisiológicas do cérebro. Sobre isto não sei nada!
O meu amigo mostrou-se céptico. Entendeu que seria inviável abordar com adolescentes sobre o assunto. Um dos argumentos usados foi o contexto onde os meus interlocutores estão mergulhados: favelas insalubres; espaços onde não há bens culturais que permitam a expansão do pensamento além do estômago: Mabor, Sonef, Mamã Gorda, Malueca, Kicolo, entre outras nos quais são provenientes os alunos.
Insisti. O proponente do convite aceitou a minha proposta. Persisti porque acredito piamente na necessidade urgente das pessoas acreditarem e conhecerem enquanto novos, o poder do cérebro para a transformação das suas vidas, da comunidade local, nacional, regional e global. Por que? Porque quem inventa, quem tem ideias criativas e inovadoras, não beneficia somente a si, mas o mundo. Há casos em que a mente criadora beneficia somente os outros.
As linhas que se seguem, são as ideias destiladas e «debatidas» na sala.
Por que as outras sociedades inventam e nós não? Como os outros povos inovam e nós não? Por que os outros povos criam permanentemente ideias e tecnologias novas, dando-lhes uma dimensão comercial, nós não? Por que os outros povos amam a ciência e a técnica, e nós não?!
De acordo com a estudiosa sobre o desenvolvimento, Axelle Kabou, nós não inventamos e não inovamos porque rejeitamos e odiamos o desenvolvimento com todas a nossas forças física e espiritual. Esta é a resposta de Kabou às questões levantadas. Não interessa se somos partidários ou distanciamo-nos desta perspetiva. No final das contas, interessa-nos encontrar o caminho para que possamos amar a ciência; amar as ideias e a inovação como uma das melhores autoestrada para o desenvolvimento. Quanto a mim, não conheço outra via!
Nós não inovamos, não criamos, não inventamos porque nunca aprendemos sobre o poder do cérebro. Sobre a grandeza deste órgão. Segundo o filósofo Italiano, Battista Mondin, caso queiramos compreender a grandeza humana, devemos visualizar as obras do género humano. Tendo como alicerce, este argumento, basta olharmos para o navio, o computador, a internet, as células estaminais, a medicina de alta precisão, a física quântica, o transplante de órgãos, entre outras criações do génio humano, para que possamos compreender a sua grandeza.
Mas o problema aqui é: por que esta grandeza é manifesta e expressa noutros contextos, mas o homo angolense, parece nem sequer saber da existência do cérebro humano? À minha resposta anterior, somarei outra: o homo angolense não cria porque não foi ensinado sobre o potencial revolucionário do cérebro humano; ou ainda, porque o somatório dos cérebros deste povo não foi cultivado, não foi treinado.
Ninguém pode saber exatamente o potencial do seu cérebro se não crescer numa ecologia que valorize o cérebro. Se não há escolas que treinam o cérebro, não podemos ter mulheres e homens que sejam capazes de valorizar o poder desta entidade — responsável por todas as criações ao longo da história.
Quem é, ou quais são os responsáveis por criarem instituições e atmosfera para dar a conhecer o poder do cérebro? Como treinar o cérebro para que ele possa expressar o seu poder transformador, da vida e do mundo? Estas questões responderemos mais adiante. Paciência caro leitor! Um cérebro treinado tem a liberdade de ler até ao fim e de não ler. Pode parar e começar a pensar respostas às questões levantadas. As soluções coletivas são mais viáveis do que a visão limitada de um homem (neste caso, o autor do presente texto).
Ao longo da história do pensamento é possível um resgate geográfico variado das ideias que expressam o poder do cérebro, num campo (bastante) específico: Futurologia e Previsibilidade. Não se trata de astrologia, magia ou quiromancia. Futurologia é ciência.
O filósofo moçambicano, Severino Ngoenha, leciona que «no fim da Segunda Guerra Mundial, iniciou-se um esforço de abordar o futuro de uma maneira científica» (1993:169). Este empenho do gênero humano para compreensão do futuro, expressa a fé na razão, no poder do cérebro. Nenhuma pessoa que não acredita no poder do cérebro, pode dedicar-se a compreensão do devir com base em recursos científicos. Só pessoas com cérebros treinados podem dedicar-se aos estudos de previsão.
Esta ciência do futuro, Ossip Flechtein chamou Futurologia, Gaston Berger denominou Prospective, para B. de Juvenal é Futuribles e John Mc Hale entendeu o labor de previsão como sendo Future Studeis.
Ngoenha delimita o campo da Futurologia, quando afirma que ela dedica-se à «previsões demográficas [sismográficas, oceanográficas, meteorológicas] e militares, tecnológicas e sociais, cenários, projecções simuladas nos computadores invadem o mundo do saber, criam, por um lado, uma moda, e, por outro, um esforço científico sobre o único domínio temporal que o homem pode influenciar ou mesmo mudar: o futuro» (1993:169).
A geografia do saber sobre o poder do cérebro, no campo das previsões, levou-nos à Alemanha de 1837, ano de publicação da obra, Filosofia da História, cujo autor é Hegel. Neste livro, o filósofo prognostica qual seria o papel dos Estados Unidos no destino do mundo e como influenciaria as nossas vidas. Ele afirma ipsis litteris: «A América é […] a terra do futuro, na qual se revelará, em tempos vindouros, o elemento importante da história universal — talvez a disputa entre a América do Norte e a do Sul. É uma terra de aspirações para todos os que deixam o museu de armas históricas da velha Europa» (2008:79). A expressão «aspirações para todos» lembra-me o filme Em Busca da Felicidade e o jargão The American Dream.
Quando lemos esta assertiva futurológica perfeita, e quase fotográfica, o que eu questiono é: como não acreditar no poder do cérebro enquanto caminho para o desenvolvimento? A previsão feita um século antes da influência inquestionável dos Estados Unidos no mundo é mais do que real.
Em caso de pretensão de análise, podemos dizer que as disputas entre as Américas aconteceram e ainda acontecem. Com os EUA numa posição de vantagem a mais de meio século.
Os fatores que determinam hoje o curso da história universal — pensamento criativo, ciência (robótica, bioengenharia, nanotecnologia, saber sobre o espaço), desporto, cinema, indústria militar, finanças, internet/comunicação e a espionagem em massa — estão literalmente sob o controlo deste último império.
A literatura é um campo fértil e privilegiado, no que diz respeito a distopia/futurologia.
Em 1932, o romancista Inglês, Aldous Huxley, publicou a obra «Admirável Mundo Novo». Nela prevê a reprodução assistida. Não passou um século após a publicação deste livro, começaram a vir ao mundo, muitas pessoas com auxílio da tecnologia reprodutiva.
Os estudiosos de áreas como a manipulação genética, a engenharia genética e outras tecnologias ligadas à vida, veneram Huxley como sendo uma grande fonte seminal para os avanços nesta área do conhecimento, mesmo que o terá feito na esfera da ficção.
Outro romance distópico, igualmente publicado na Inglaterra, em 1949 é de George Orwell. Título: «1984». Neste empreendimento literário, Orwell previu todo o controlo em massa a que as sociedades pós-modernas estão submetidas. Eu chamaria, a opressão suave e invisível.
A espionagem de dimensão global, sintetizada na imagem do Big Brother, coordenada pelos EUA, em parceria com outros quatro-olhos do mundo — Reino Unido, Canada, Austrália e Nova Zelândia — configuram a concretização da profecia intelectual, expressa no Nineteen Eighty-Four (1984).
Para além desta coordenação sofisticada dos serviços secretos dos cinco-lhos do mundo, que têm controlo sobre o que falamos e o que fazemos, Orwell recupera alguns tópicos levantados por Huxley, como sejam a hipnopedia, a manipulação psicológica e política associada e o condicionamento clássico. Neste sentido, a sua obra desperta-nos sobre os autoritarismo ferozes que a Europa viveu na Alemanha, na Itália, na Espanha, na Rússia como extensão, para não falar das ditaduras eleitorais mais recentes, um pouco por todo mundo.
Angola tem um romance futurológico recente — Barroco Tropical (2009) — de José Eduardo Agualusa. A narrativa capta e apresenta a alma e o espírito da classe política angolana. A imoralidade generalizada e a confusão reinante entre o que é e o que se possui.
Onde reside a dimensão distópica desta obra? Nela, o autor apresenta uma Angola de 2020. Arrasada por uma crise económica, decorrente da queda do preço do petróleo. Por arrasto, as obras na área de construção param. Assiste-se a um colapso generalizado das instituições, antes já inoperantes, mas a abundância dos petrodólares fazia pairar a ilusão de que tudo funcionava. Mas a névoa causada pelas notas verdes desapareceu, e caiu um pouco de lucidez.
Agora percebe-se que o país (em termos institucionais) não vale nada!
Esta previsão tem o diferencial de que o tempo que separa o exercício de futurologia, até a concretização, ser bastante curto. A obra foi publicada em 2009. O autor esperava que a sua visão escatológica se concretizasse onze anos depois.
Chegou mais cedo. Isto não constitui problema. O fato é que a previsão tornou-se facticidade. A textografia do novelista fala por si, e confrontam-se profundamente — num diálogo bonitinho — com a realidade vigente:
«Vivia-se, além disso, a euforia do petróleo. Apartamentos com cinco assoalhadas podiam custar dois milhões de dólares e vendiam-se antes que o prédio estivesse concluído. Depois, com o súbito excesso de oferta e o fim da era do petróleo, o mercado ruiu. A sociedade responsável pela construção da Termiteira foi forçada a baixar os preços. […].
Os lucros do petróleo fizeram florescer altos edifícios de paredes espelhadas. A seguir, o preço do petróleo caiu (caiu desamparado, estatelou-se) e todo aquele radiante mundo novo entrou igualmente em colapso.
Deixou de haver dinheiro para lavar imensas vidraças, e estas cobriram-se de uma áspera camada de poeira vermelha, de lama, e por fim de uma carapaça capaz de resistir à mais forte pancada de chuva e totalmente impenetrável à luz. As bombas que levavam a água para os andares mais altos avariaram. Os geradores também. Muitos expatriados foram-se embora. Os deserdados voltaram a ocupar os prédios.
Luanda corre a toda velocidade em direção ao desastre. Oito milhões de pessoas aos uivos, aos choros e às gargalhadas. Uma festa. Uma tragédia. Tudo que pode acontecer aqui. O que não pode acontecer acontece igualmente. Estamos no século XXI. Estamos lá muito atrás. Estamos mergulhados na luz. Estamos afundados no obscurantismo e na miséria. Somos incrivelmente ricos.
Temos ouro, cobre, minerais raros, florestas por explorar e água que não acaba mais. Morremos de fome, de malária, de cólera, de diarreia, de doença do sono, de vírus vindo do futuro, uns, e outros de um passado sem nome. Um dia alguém pintou uma frase na parede do aeroporto internacional de Luanda: «BEM-VINDO à lua. Entre e deixe a razão lá fora». (AGUALUSA, 2009: 63 & 93-94).
Ainda no contexto de Angola, o antigo chefe da UNITA, Jonas Savimbi, terá proferido um discurso em 1992 na cidade do Lubango, cuja precisão sobre o futuro, hoje presente, recusa qualquer comentário: «Vocês pensam que ele [José Eduardo dos Santos] roubará sozinho, mas na verdade será ele, os seus amigos e os seus filhos, que daqui há vinte anos serão os donos de Angola, é isso que eu não aceito. (…) Se calhar vocês me darão razão quando não haver mais solução».
Previsões análogas, terão sido feitas, pelo primeiro presidente Moçambicano pós-independência, Samora Machel.
No âmbito da Ciência Política e Relações Internacionais, o exercício de previsão é comum. Hoje, é cada vez mais consensual que daqui há 30 anos, ficará para trás o domínio de uma superpotência global, com respostas e influência em todos campos. No futuro, as Relações Internacionais serão marcadas por um mundo multipolar, com várias potências regionais. Isto levará os atores a cooperarem mais, do que a confrontação, a que nos habituaram.
Em «EUA versus China: Confronto ou Coexistência», José M. F. Ribeiro radiografa sinteticamente o papel dos EUA no mundo, numa relação estreita com a globalização. Faz igualmente um exercício de previsão: tenta compreender o que sucederá na Política Internacional dos próximos vinte anos, tendo como horizonte, 2030.
Este é o momento de responder aos questionamentos levantados. O governo e os cidadãos são os responsáveis pela criação das condições para que se possa forjar mentes criativas. Cérebros que conhecem o seu poder. É óbvio que a cota de responsabilidade do governo é maior e a determinante número um e insubstituível. Outras esferas devem igualmente contribuir para a tomada de consciência do poder do cérebro, como sejam a família, a midia e a sociedade civil.
Claro está, que o governo sobre o qual referi, trata-se de governos democráticos. Em contextos autoritários, não é possível o governo jogar o papel de promoção de cérebros poderosos e conscientes do seu poder. Nos regimes fechados, o governo transforma a escola num instrumento para a extensão e manutenção da opressão, com vista a garantia do fim último: o poder absoluto.
Por isso, os cidadãos enquanto responsáveis pela necessidade urgente de sabermos sobre o poder do cérebro, de usá-lo para o bem da humanidade, devem pôr fim a maior barreira — o regime autoritário — que obstaculiza este desiderato. Assim, finalmente, poderão fazer com que a educação construa mentes críticas e rebeldes, que problematizam permanentemente o real e o irreal.
Mesmo em Angola, apesar da opressão, da falta de liberdade inventiva, apesar de nos roubarem o direito de construir novas utopias, ainda assim, existe um grupinho selecto de inventores de ideias e máquinas. Só precisamos fazer de Angola um país, para que esses possam ocupar o lugar que lhes é devido por direito.
Dado o grau e o nível de futurologias feitas pelos pensadores referidos, e por todas as criações do cérebro e outros milhares de previsões não referidas, para mim, o cérebro tem poder e é poder. Não tenho a ínfima dúvida!