Ademir Barros dos Santos, Por dentro da África
“Em outubro de 1663, o Padre Cavazzi, que estivera no interior desempenhando suas atividades de proselitização, foi repentinamente solicitado a voltar à corte da Rainha. Nzinga[1] estava muito doente […]”.
Assim Roy Glasgow inicia o tópico 5. O fim de uma época, à p. 173 de seu estudo sobre a Rainha de Matamba[2], denominado, exatamente, Nzinga.
Prossegue ele, à mesma pg. e seguinte:
O missionário estava cônscio do sofrimento da soberana e tentou desviar a conversação para longe deste aflitivo tópico […]. Mas Nzinga recusou-se a ser distraída, declarando que: ‘Vou morrer logo. […] que dirão aqueles que pensavam que eu fosse imortal? Sei que sou mortal e que tenho muitos pecados que serão julgados por Deus. Sinto que vou morrer.´
A fala da rainha, que remete ao julgamento divino, denota sua convicção cristã, agora renovada; renovada porque ela, a esta altura beirando oito décadas de vida, já havia passado pelo processo de conversão, aproximadamente, quarenta anos antes; mas esta conversão havia logo sido renegada, tendo ela passado à vida jaga[3] que, nômade, predadora, dada a canibalismos rituais – é frontalmente contrária aos princípios cristãos.
Portanto, no ano de 1663, quando ocorrem os fatos acima registrados, a Rainha era re-conversa.
Mas, por que haveria a Rainha se convertido de primeira hora? Havia sido efetiva sua conversão, visto que ocorrida quando representava seu irmão, o rei do Ndongo, em negociação com os portugueses, à busca de diplomacia e paz? Ou teria sido mero ato político? E quanto à segunda conversão, teria sido, agora, sincera e definitiva?
Talvez caibam aqui, mesmo que especulativamente, algumas ponderações sobre tais motivos. Vamos a elas.
Introdução
John Thornton, no capítulo 9 de seu A África e os africanos na formação do mundo atlântico, p. 312 a 354, aborda a dinâmica da religião cristã nas sociedades africanas, como elemento de modificação da cultura.
Para desenvolver seu argumento, classifica as religiões em dois grandes grupos, a partir do conceito de revelação: revelação contínua e revelação descontínua.
Neste segundo grupo, o exemplo marcante é o da reforma luterana que, ao desenvolver a tese Sola Scriptura, desautoriza, explicitamente, qualquer intervenção na fé que não a decorrente do escrito bíblico: para ela, a revelação está pronta, escrita e consolidada no Livro Sagrado.
No outro grupo está, dentre outras crenças, o catolicismo tradicional: isto porque influenciável não só por interpretações papais e dos doutores da Igreja, como também pela intervenção de santificados, quer por via direta[4], quer indireta, da qual as presenças do Espírito Santo nas igrejas e de Cristo na Eucaristia, bastam como exemplo.
Mas não só: as religiões africanas, cuja universalidade no continente negro – pelo menos quanto aos aspectos fundamentais – é defendida por Thornton na primeira parte do mencionado capítulo[5], também aparecem neste segundo grupo.
Isto porque tais religiões acreditam na constante intervenção dos ancestrais na vida, decisões e destinos de sua descendência, o que pode ser lido e sentido por meio de relíquias, adivinhações, interpretações e práticas similares.
No desenvolver de seu argumento, Thornton conclui que, do encontro entre as matrizes religiosas católica e africana, resulta nova religião, híbrida – o catolicismo africano[6] – que, por sua vez, afeta o catolicismo branco; pelo menos nas Américas, bem como nas regiões africanas onde o encontro entre as duas crenças, ambas baseadas em revelações contínuas, acontece.
Para melhor compreensão deste encontro e das negociações daí decorrentes, talvez se exija alguma incursão sobre a história e o formato destas religiões.
Para ler a pesquisa na íntegra, acesse aqui “Nzinga, política e religião- contatos e negociações”
Ademir Barros dos Santos é coordenador da Câmara de Preservação Cultural do Núcleo de Cultura Afro-Brasileira – NUCAB – da Universidade de Sorocaba – UNISO.
[1] conforme grafado pelo autor; Njinga, dentre outras, é grafia utilizada por outros autores.
[2] região a sul do rio Cuanza, na atual Angola.
[3] povo nômade que, por volta do séc. XVII, subdividido em bandos autônomos, vivia do saque e predação de outros povos, normalmente sedentários e agricultores; considerados invencíveis nas guerras, eram vistos, pelos povos atacados, talvez mais como espíritos guerreiros e saqueadores, que como humanos comuns, dedicados à guerra; seus bandos compunham-se de guerreiros dos povos vencidos, além de aderentes espontâneos: portanto, não havia a formação de linhagens, como costume nos demais povos entre os quais viviam.
[4] aparição de Fátima, por exemplo.
[5] p. 312 a 334; para tanto, o autor se utiliza de variadas fontes produzidas, entre os séc. XV a XVII, por viajantes e missionários; relatos do capuchinho Cavazzi, citado no início deste estudo e confessor da rainha Nzinga, também é largamente utilizado, aqui.
[6] p. 312