Vanessa Oliveira, Por dentro da África
Luanda – O envolvimento de mulheres em atividades comerciais está longe de ser algo extraordinário na África Ocidental, onde elas competiram com os homens desde muito cedo no comércio local, regional e às vezes até mesmo internacional. Desde sua fundação em 1575, Luanda atraiu grande número de estrangeiros, principalmente homens europeus e brasileiros.
Eles eram degredados, imigrantes voluntários e militares que serviram na conquista e povoamento de Angola. Alguns desses permaneceram em solo africano enquanto outros continuavam a chegar, todos em busca de enriquecimento fácil através do comércio, especialmente o tráfico de escravos que perdurou legalmente até 1836.
Visto que estrangeiros precisavam do apoio para estabelecer contatos comerciais que lhes permitissem trocar seus produtos por mercadorias africanas como ouro, pimenta, escravos, marfim entre outros, muitos desses intermediários foram comerciantes locais, entre eles mulheres. Em Angola as mais proeminentes comerciantes eram chamadas de Donas. Elas eram proprietárias de fazendas, escravos, embarcações, casas onde residiam e para aluguel e emprestavam dinheiro a juros. Representando a elite comercial feminina, as donas adotavam vários componentes da cultura portuguesa: falavam português, professavam o Cristianismo, vestiam-se à europeia e residiam em casas de estilo português, os famosos sobrados.
A colaboração entre mulheres locais e comerciantes estrangeiros favorecia a ambos os grupos. As mulheres ofereciam aos estrangeiros acesso às redes comerciais angolanas, casa mobiliada e com escravos domésticos onde podiam residir, cuidados em caso de doença – o que era muito comum entre os recém-chegados, além de auxílio como intérpretes das línguas e culturas africanas. Do mesmo modo, a aliança com homens estrangeiros também oferecia às mulheres locais acesso direto a produtos importados trazidos por eles, os quais elas poderiam comercializar e assim aumentar sua riqueza, bem como acesso ao mercado consumidor europeu ou brasileiro.
Mulheres eram agentes-chave no desenvolvimento do comércio local e de longa distância. Mulheres pobres e escravizadas atuavam como quitandeiras ou vendedoras ambulantes (atualmente chamadas de zungueiras), oferecendo diversos tipos de produtos para abastecer a população multiétnica de Luanda tais como farinha de mandioca, milho, carne e peixe seco entre outros. As donas, por outro lado, possuíam maior capital o que lhes permitia investir no comércio da cidade e do interior, algumas chegando mesmo a cruzar o Atlântico em busca de novos mercados. Elas eram proprietárias de lojas, abasteciam o mercado local com alimentos produzidos em suas fazendas e algumas tornaram-se proprietárias ou sócias de firmas comerciais que operavam no tráfico de escravos.
É importante notar que algumas mulheres já eram prósperas comerciantes antes mesmo de entrarem em alianças afetivas e comerciais com estrangeiros, seja através dos lucros advindos do comércio ou de bens herdados dos seus pais e de relacionamentos anteriores. Uma dona chamou a atenção dos residents e viajantes que passaram por Luanda no século XIX. D. Ana Joaquina Santos Silva nasceu em Luanda, no ano de 1789, filha de Joaquim de Santa Ana Nobre dos Santos and D. Teresa de Jesus. Seu pai era de origem portuguesa e sua mãe uma mestiça ou luso-africana.
D. Ana Joaquina casou-se em primeiras núpcias com o Coronel João Rodrigues, com quem teve a sua única filha, D. Thereza Luíza. Com o falecimento do primeiro marido, ela contraiu segundo matrimônio, desta vez com o português Joaquim Ferreira dos Santos Silva, um próspero negociante em Luanda durante a segunda metade do século XIX. O casal realizava transações comerciais em conjunto, particularmente no Brasil e ao longo do Rio Zaire.
O português Francisco Travassos Valdez esteve em Angola na década de 1850, quando visitou uma das fazendas de D. Ana Joaquina. Na ocasião ele foi informado pelo feitor que o estabelecimento contava com cerca de 1400 escravos. Apesar do número de escravos parecer exagerado para um único estabelecimento, ela era sem dúvida uma mulher de muitas posses.
Em Angola, D. Ana Joaquina possuía investimentos em Luanda, Moçâmedes, Golungo Alto, Dande e Icolo e Bengo, tais como engenhos para produção de açúcar, plantações de café, feijão e mandioca, escravos, casas para aluguel além do sobrado onde vivia no Bungo. Ela também possuía embarcações que faziam viagens para Benguela, Lisboa, Rio de Janeiro, Pernambuco, Bahia e Rio Zaire, estendendo seus negócios através do Atlântico. Pelo menos duas de suas embarcações eram utilizadas para transporte de escravos, Maria Segunda e Conceição Maria. Seus lucros também advinham da concessão de empréstimos a juros à população local.
D. Ana Joaquina assinava seu próprio nome em documentos oficiais, o que indica que a ela deve ter sido alfabetizada em Angola ou no exterior. Em 1859, ela veio a falecer a caminho de Lisboa para onde seguia em busca de tratamento médico. Com sua morte, teve início uma longa disputa pela sua herança a qual ela deixara para seus dois netos, deserdando sua filha, D. Thereza Luíza, que casara com Elísio Guedes Coutinho Garrido, irmão do seu inimigo Augusto Garrido, sem seu consentimento. Dada sua habilidade com os negócios e as posses herdadas de dois casamentos, D. Ana Joaquina permanece na memória da população de Luanda como a mais próspera comerciante do século XIX.
O exemplo de D. Ana Joaquina evidencia que através de heranças deixadas pelos seus pais e maridos, estratégias comercias e afetivas além de filiação com a cultura portuguesa, algumas mulheres foram capazes de conquistar prestígio social e poder econômico. A conexão com mercadores europeus facilitou o desenvolvimento de suas atividades comerciais, garantindo-lhes acesso a produtos importados e ao mercado internacional.
Ao mesmo tempo, elas foram a via de acesso desses comerciantes ao mercado angolano, tornando-se suas parceiras comerciais e companheiras. A longo termo, as fortunas dessas mulheres garantiram o acesso dos seus filhos a posições de destaque de cunho administrativo, econômico e político enquanto suas filhas casaram-se com membros de famílias ilustres, contribuindo para a formação de uma elite de origem luso-africana em Luanda.
Vanessa S. Oliveira é doutoranda em História da África na York University, em Toronto, Canadá.
Para mais informações acerca de D. Ana Joaquina Santos Silva, consultar:
Lopo, Júlio de Castro. “Uma Rica Dona de Luanda,” Portucale 3 (1948), 129-138.
Cardoso, Carlos Alberto Lopes. “Ana Joaquina dos Santos Silva, Industrial Angolana da segunda metade do Século XIX,” Boletim Cultural da Câmara Municipal de Luanda 32 (1972), 5-14.
Wheeler, Douglas L. “Angolan Woman of Means: D. Ana Joaquina dos Santos e Silva, Mid-Nineteenth Century Luso-African Merchant-Capitalist of Luanda,” Santa Bárbara Portuguese Studies Review 3 (1996), 284-297.