Uma pesquisa de Ademir Barros dos Santos e Nuno Rebocho, Por dentro da África
Cabo Verde e Brasil – “Começar pelas palavras talvez não seja coisa vã. As relações entre os fenômenos deixam marcas no corpo da linguagem”.
É assim que Alfredo Bosi inicia seu Dialética da colonização, e é seguindo tão precioso conselho que se inicia, aqui, este estudo.
Isto posto, necessário se faz recorrer ao que ensina Kabengele Munanga, em Origem e histórico do quilombo na África: é o que se faz, a seguir.
Quilombos e Quilombolas
Segundo Munanga, ele mesmo africano do Congo e falante nativo de idioma da família bantu, a palavra “quilombo” tem origem quimbundo, idioma do povo mbundo de Angola, visto que a raiz _lombo se refere “indubitavelmente, ao ritual de circuncisão; ali, a palavra ochilombo ainda remete ao sangue desta iniciação que, em outros idiomas de mesma raiz, como cokwe e quimbundu, é designada por termo completamente diferente: mukanda”.
Sobre o mesmo termo, é mister que se informe que Mário Henrique Simonsen o aponta também no umbundo, sob a forma ochilombo já citada, mas que, para este autor, designa, originalmente, lugar de pousio, cemitério, ligado à chamada religião vodu.
Mas, na diáspora africana de colonização portuguesa, o termo ganhou o significado de comunidades autónomas de escravos fugitivos, o que exige explicação, mesmo que em ligeira pinceladas.
A origem dos quilombos africanos
Um dos mais arraigados e difundidos costumes africanos é o ritual de iniciação dos jovens que, somente a partir dele, deixam de ser considerados crianças, iniciando vida adulta; neste ritual, a circuncisão é o momento mais importante para os homens que, antes dela, são vistos como assexuados e, só a partir de então, ficam aptos para o casamento.
Via de regra, o ritual não é aberto ao público: por sagrado, é restrito e praticado em lugar afastado e secreto, onde os iniciandos ficam em confinamento, e somente às pessoas qualificadas para tanto é permitido o acesso; é neste ponto que é necessário voltar a atenção para os jagas – ou imbangala – e seus rituais de iniciação.
O povo jaga, ou imbangala
Segundo ensina Munanga na obra já citada, vindos da margem direita do rio Cuango, os imbangala – cujo nome parece derivar da raiz umbundu “–vangala”, que significa “ser bravo” e/ou “vagar pelo território” – invadiram o Congo, de onde, em 1568, foram rechaçados.
Mas, portando vínculos culturais com os lunda e os luba, misturaram-se a grupos suku, organizando numerosas chefias; essencialmente guerreiros, quando chegam ao oeste do rio Cuango, vivem em campos fortificados e em permanente pé de guerra.
Um dos seus costumes mais típicos era a incorporação, à sua sociedade, de jovens de ambos os sexos, retirados dos povos por eles vencidos e dominados: assim, o tamanho de suas tropas aumentava rapidamente, o que explica, em parte, a superioridade militar dos jaga sobre seus vizinhos; isto, de tal forma que imprimiram sua marca na história angolana durante meio século!
Para esta mencionada incorporação, realizavam eles rituais voltados a desvincular os jovens de suas linhagens de origem, incorporando-os ao próprio grupo, como se, ali, houvessem nascido; e este ritual era realizado em seus campos sagrados de iniciação, os quilombos.
Portanto os quilombos, a partir dos jagas, ampliam sua função: além de ambientes de iniciação, passam a ser lugares próprios para o ritual de incoporação, a seu grupo, de jovens de outras etnias; e de treinamento para a guerra.
É assim, múltiplos e guerreiros, que os quilombos dão nome aos acampamentos e vilas de resistência na diáspora.
Resta conhecer seus antecedentes históricos sob os imbangala.
Surge o povo novo
O estudo idiomático aponta que, há cerca de dois mil anos, os antepassados dos povos que, atualmente, falam idiomas bantu, iniciaram sua expansão: partiram, provavelmente, do centro da Nigéria, em direção ao sul e sudeste da África.
O conhecimento da metalurgia deve ter facilitado esta expansão: e possível que utilizassem instrumentos de ferro para abrir caminho através da floresta equatorial.
Neste ponto, há que se recorrer ao mito, pois se trata de povos à época sem escrita, onde a tradição oral – com suas possíveis imprecisões e lacunas – era a grande fonte de informação sobre a chamada África Negra.
Com este foco em vista, eis ao mito, segundo Munanga: provavelmente no final do século XVI, o império luba – centro e sudeste do Congo – era governado por Kalala Ilunga Mbidi, cuja morte causa conflitos de sucessão entre os herdeiros do trono; um deles, o príncipe perdedor Kimbinda Ilunga, parte com seus seguidores em busca de novo território.
Já com fome e sem nenhuma provisão, avistam eles uma aldeia: aproximam-se, buscando provisões e descanso; a aldeia era do povo lunda, então governado por Rweej, filha do recém-morto rei; encantada pela beleza e modos nobres de Kimbinda, Rweej casa-se com ele.
Porém, como acontece entre quase todos os povos de cultura bantu, a tradição proibia a rainha de governar durante o ciclo menstrual, já que, por não engravidar neste período e por estar perdendo energia, considerava-se a mulher simbolicamente morta; assim sendo, os tabus diziam que, se governasse, ela poderia contaminar negativamente o povo.
Assim é que, um dia, durante a interdição, a rainha chama seus notáveis e chefes de linhagem e, colocando o bracelete que simboliza o poder em seu marido, o apresenta como novo chefe lunda; é evidente que o casamento da rainha com o estrangeiro, seguido por sua elevação a rei, causa descontentamento não só entre a família real: também algumas camadas da população recusam-se a aceitar o governo do forasteiro luba.
Como consequência, Kinguli, irmão da rainha, leva seus simpatizantes para oeste, onde pretende fundar novo reino, sob sua direção. Isto, no início do século XVII.
Kinguli chega à região ocupada pelos jaga em Angola, e se faz aliado deles; então, adota o quilombo – campo ritual – para a formação e iniciação, também, de jovens guerreiros estrangeiros, que incorpora ao próprio exército; como resultado, consegue espalhar seu povo por toda a região mbundu depois de 1610, chegando mesmo a fundar novos estados, tais como Kalandula, Kabuku, Holo, Kassanje, etc.
É importante ressaltar que a ampliação do uso do quilombo como campo de iniciação aplicável também à admissão de guerreiros conquistados, dá ao termo a conotação de “associação de homens, aberta a todos, sem distinção de pertencimento a qualquer linhagem”; é com esta conotação que ele passa a ser entendido na diáspora.
Ressalte-se que o auge do povo imbangala coincide com as guerras contra Portugal; à época, é este povo comandado por Nzinga, que se tornaria, até por isto, lendária rainha angolana, da qual vem a descender nova etnia, que leva seu nome.
Também se reafirme que é neste sentido, o de guerreiro e de resistência, que o termo quilombo passa para a diáspora, permitindo assumir que, como instituição, ele foi a mais duradoura e efetiva expressão de enfrentamento ao processo escravista, quer no Brasil, quer em qualquer ponto onde a escravidão foi adotada.
Isto porque é ali que o escravizado deixa de ser coisa, animal de carga, objeto de exploração e comércio, retornando a ser gente, ao readquirir sua humanidade.
Confira a pesquisa na íntegra aqui Quilombos – Estudo de Ademir Barros e Nuno Rebocho
Ademir Barros dos Santos é coordenador da Câmara de Preservação Cultural do Núcleo de Cultura Afro-Brasileira – Nucab – da Universidade de Sorocaba – Uniso.
Nuno Rebocho vive em Ribeira Grande de Santiago (Cabo Verde) como jornalista, escritor e estudioso das representações culturais africanas.
Por dentro da África