Jornalista angolano vai a julgamento após publicação de obra que denuncia corrupção

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“Com esse grupo no poder, Angola continuará um país atrasado, sem bens sociais mínimos para viver, com alto índice de corrupção”, diz Domingos da Cruz

Capa do segundo livro de Domingos - DivulgaçãoNatalia da Luz, Por dentro da África

Rio – Uma suposição sobre o futuro de Angola foi descrita de forma crítica em uma obra que detalha prováveis caminhos sombrios cercados pela corrupção. “ Para onde vai Angola: A selvageria apocalíptica onde toda perversidade é real”, livro de um jornalista e ativista angolano, foi o motivo de perseguição política e de uma investigação por incitação à violência que o levará ao tribunal nesta sexta-feira.

– Normalmente, o grupo hegemônico tem não apenas em minhas obras como fonte para fortalecer a sua cólera irracional, mas também no meu trabalho como jornalista, ativista e docente progressista, herdeiro de uma pedagogia crítica-revolucionária – conta em entrevista exclusiva ao Por dentro da África Domingos da Cruz, despedido do cargo de professor pelo poder político.

Domingos não sabe dizer concretamente qual trecho do seu trabalho teria gerado tal repulsa dos políticos angolanos. A sua certeza é de que grande parte deles teme ideias autênticas e é claramente contrária à crítica e ao esclarecimento.

O escritor Domingos da Cruz - Arquivo pessoal – As suas atitudes de censura são manifestações de coerência com a natureza do regime. Para mim, com esse grupo no poder, Angola continuará um país atrasado, sem bens sociais mínimos para viver, com alto índice de corrupção, um país que envergonha os seus filhos, que lutam por uma vida ética – desabafa o ativista de 29 anos com três livros publicados: “Para onde vai Angola” (2008), “Quando a guerra se faz necessária e urgente” (2010) e “A liberdade de expressão e de imprensa: implicações éticas na infância” (2011).

Corrupção e perseguição 

“A corrupção pode acontecer em qualquer lugar: quando os políticos colocam seus próprios interesses acima dos interesses do público, quando os oficiais exigem dinheiro e favores de cidadãos para os serviços que deveriam ser de graça. A corrupção não é apenas um envelope cheio de dinheiro”, diz o texto de apresentação do relatório da Transparência Internacional deste ano. Segundo o órgão, de 176 países pesquisados, a Somália é a nação com o maior nível de corrupção. Logo em seguida (de mais corrupto para o menos corrupto), aparece Sudão, na 173ª posição; Chade e Burundi, na 165ª; Zimbábue e Guiné Equatorial, na 163ª; Líbia e República Democrática do Congo na 160ª; e Angola, também entre os últimos,  na 157ª colocação.

Em muitos lugares do mundo e, principalmente, no continente africano, o trabalho desses ativistas têm sido prejudicado pelos ditadores. Os detratores da democracia veem a imprensa independente, que não serve ao Estado, como uma grande ameaça. Amin (ex-ditador da Uganda), Taylor (ex-ditador da Libéria), Gaddafi (ex-ditador da Líbia), Mubarak (ex-ditador do Egito), Mubage (atual presidente do Zimbábue)… estão entre os muitos que mapearam e que ainda continuam investigando – com lupa – o trabalho desses profissionais.

Desalojados em condições precárias em Cacuaco - Foto: Maka Angola– A dignidade humana é uma questão metafísica e não físico-químico-matemática. Como seria capaz de dizer que Eduardo dos Santos (presidente de Angola) é mais delinquente, quando comparado ao Theodor Obiang (presidente da Guiné Equatorial), se tanto um quanto outro promovem a negação da vida em massa, mesmo que com métodos assimétricos em algumas circunstâncias? – questiona o mestre em Direitos Humanos e membro do Conselho de Governadores do MISA-Angola (Instituto de Comunicação da África Austral).

Domingos, que já foi ameaçado de morte diversas vezes, acredita que todos esses dirigentes citados acima cometem crimes contra a humanidade, pela ausência de políticas públicas que garantam uma vida digna. Como a polícia também faz parte do poder, a forma de proteção, no caso dele,  é por meio da denúncia pública, por meio da pressão de organizações internacionais como a Human Rights Watch e a angolana Omunga.

Panorama africano 

Segundo o ranking mundial da liberdade de impressa de 2012, o continente africano não se apresenta como um modelo exemplar, mas dentre as suas 54 nações algumas conseguiram posição de destaque como Cabo Verde, 9ª posição; Namíbia, 21ª; Mali, 25ª; Níger, 29ª; Tanzânia, 34ª; África do Sul – 42ª. A Freedom House classificou 11 países africanos como sendo livres no quesito liberdade de imprensa como Benim; Botswana, Cabo Verde, Gana e Lesotho.

– De uma forma geral, existem muitos progressos sem precedentes na África nos últimos 15 anos. Tais avanços positivos também acontecem no quadro da liberdade de expressão e de imprensa, mas isso não quer dizer que estamos bem… – diz Domingos, pesquisador do tema Direitos Humanos na África, completando que a África do Norte é motivo de orgulho porque mostrou o poder da cidadania, derrubando regimes autoritários durante a Primavera Árabe.

Dia Mundial da Liberdade de Imprensa 

Foto: UNESCO Em 3 de maio foi comemorado o 20º Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, mas as estatísticas trouxeram uma expectativa de escuridão para o exercício da profissão. Segundo as Nações Unidas, em 2012, 121 jornalistas foram assassinados. Nos últimos dez anos, mais de 600 foram mortos, muitos deles enquanto trabalhavam em situações de conflito. De acordo com a organização, nove em cada dez casos permanecem impunes.

Síria, México e Honduras são os países mais perigosos para esses profissionais, cujo objetivo é denunciar as práticas que ferem os direitos humanos. Na África, Eritréia e Somália seriam as regiões mais tensas para realizar um trabalho de investigação. O repórter Libaan Abdullahi Farah ‘Qaran’, da TV Kalsan, por exemplo, foi morto a tiros quando voltava para casa após o trabalho no último 7 de julho, em Gaalkacyo, centro-norte da Somália. A Missão de Assistência das Nações Unidas na Somália afirmou que, com esta morte, aumentou para cinco o número de jornalistas assassinados em 2013 no país, um dos lugares mais perigosos do mundo para os ativistas da mídia.

A jornalista Reeyot Alemu - Foto: ONUNeste ano, o Prêmio Liberdade de Imprensa foi para a jornalista etíope Reeyot Alemu, de 32 anos, presa desde 2011. Em abril deste ano, ela passou por uma cirurgia para remover um tumor do seio e voltou para a cadeia, sem tempo de recuperação. Perseguida por denunciar esquemas de corrupção do governo, ela permanece atrás das grades.

– Acredito que devo contribuir com alguma coisa para trazer um futuro melhor. Uma vez que há muitas injustiças e opressão na Etiópia, devo revelá-los em meus artigos – disse Alemu, em comunicado à imprensa.

Mecanismos de proteção

Em 1991, nasceu a Declaração de Windhoek, um apelo à comunicação social livre, independente e pluralista em todo o mundo, caracterizando a imprensa livre como essencial para a democracia.

Jornalistas Somalis - Divulgação O documento protege os princípios da liberdade consagrados no Artigo 19.º da Declaração Universal do Direitos Humanos. Neste ano, a UNESCO liderou a elaboração do Plano de Ação das Nações Unidas sobre a Segurança dos Jornalistas e a Questão da Impunidade, que prevê que as agências da ONU e seus parceiros trabalhem juntos para criar um ambiente de trabalho mais seguro.

Diversidade na liberdade

Domingos acredita que a diversidade do continente se manifesta também na liberdade de imprensa. Enquanto países como Namíbia, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe se encontram no nível de Canadá e EUA no âmbito da liberdade de Imprensa, podemos observar em outro extremo o autoritarismo de Angola, Eritreia, Guiné Equatorial e Swazilândia.

Segundo o Comitê de Proteção aos Jornalistas (CPJ), na Eritreia,  todos os meios de comunicação nacionais são controlados pelo governo. Do lado oposto, como Domingos bem lembrou, está Cabo Verde. Com grande número de comediantes, chargistas e mídia independente, a África do Sul também assume uma posição positiva no quesito.

– Sua vantagem está associada à relevância econômica, com destaque para a ciência, literatura, cultura, tecnologia… Pensa-se que está no topo em tudo, mas não! Temos outros modelos positivos no continente que a mídia capitalista não vê porque tem  na tragédia e no sofrimento a fonte para enriquecimento. O nível de liberdade de imprensa na Namíbia é tão bom que o país é palco constante para discussão do tema – afirma.

Processo contra jornalistas  em Angola

Presidente de Angola José Eduardo dos Santos - ONU De acordo com o ordenamento jurídico angolano, no caso de o réu não comparecer no tribunal inúmeras vezes, ele é novamente acusado pelo crime de desobediência, acusação que também recai sobre Domingos.

– Mais tarde ficou esclarecido que houve uma informação falsa prestada pelo oficial de diligência do tribunal. Não há qualquer acusação pelo crime de desobediência, mas sim prevalece a acusação anterior, que é crime de incitação à violência coletiva contra as autoridades – detalhou o intelectual também formado em pedagogia e filosofia.

Em agosto de 2009, após a publicação do artigo “Quando a guerra é necessária e urgente” no jornal Folha 8, a Direção Nacional de Investigação Criminal apresentou queixa contra o jornalista, acusando-o de ter incitado o povo à guerra. No texto, Domingos acusa o governo de ser autoritário, corrupto e insensível ao sofrimento do povo. Diante desse cenário, segundo o escritor, a guerra se faria necessária…

Caso Rafael Marques 

Além de Domingos, outros jornalistas e ativistas vêm sendo perseguidos em Angola. Um caso de grande repercussão internacional é de Rafael Marques, que, durante alguns meses, foi impedido de sair do seu próprio país. Em seu discurso, o ativista diz que “Angola é um país que existe, embora grande parte concorde que ainda não é uma nação. A democracia é uma farsa, o governo é uma farsa, as políticas internacionais para  Angola são também uma farsa” – afirma Marques em sua obra.

Extração de diamante em Lunda - Foto: Maka Angola Em abril deste ano, Marques foi interrogado no Departamento de Combate ao Crime Organizado, sob a acusação de difamação por conta do livro “Diamantes de Sangue: Tortura e Corrupção em Angola”, publicado em Portugal, em 2011. A obra documenta casos de homicídio, tortura, deslocamentos forçados e intimidação contra os habitantes das áreas de extração de diamantes em Lundas.

Em 2000, ele foi condenado a seis meses de prisão e sentenciado a pagar uma indenização por difamação contra o presidente José Eduardo dos Santos, mas o Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas decidiu que o julgamento, em Angola, violara os direitos de Marques e condenou o governo a pagar-lhe uma indenização.

– Sinteticamente podemos afirmar que há o controle de conteúdo e o controle tecnológico onde inclui papel e gráficas. O país tem somente uma rádio (Despertar) e um jornal (Folha 8) que escapam do controle. O jornalista e órgãos capazes de criticar o poder hoje ficam para história e classificados como heróis – informa Domingos.

Pressão da Igreja Católica

Foto: Protesto em Luanda - Maka AngolaA relação do jornalista Domingos com a Igreja Católica em Angola não é amigável, e a sua justificativa é porque o poder político controla todas as esferas da sociedade, inclusive a Igreja, que é sua refém. Em março de 2011, ele foi impedido de lançar o livro em uma sala pertencente à Conferência Episcopal de Angola e São Tomé. Na ocasião, o bispo Dom Emílio Sombebelo, responsável pelas instalações, o impediu ordenando o cancelamento da reserva por conta de suas críticas à Igreja.

– As razões da proibição são políticas, mas também pela crítica radical que deixou nua a relação de subserviência da igreja com  o poder político, que se traduz no apoio claro da instituição ao regime opressor em troca de bens financeiros e materiais. Não posso deixar de ressaltar que o grau de degradação ética da Igreja é mais visível na hierarquia, mas também há padres, pastores e diáconos que prestam esse tipo de serviço…

Capa do livro de Domingos - Divulgação Julgamento

Às vésperas do seu julgamento, que acontecerá nesta sexta-feira às 10h, no Tribunal Provincial de Luanda, Domingos explica que a acusação que recai sobre ele é política e não jurídico-criminal, já que, caso ele tivesse cometido algum excesso no exercício da sua profissão, deveria ser responsabilizado pela lei de imprensa e não em outra. Em inúmeras vezes, Por dentro da África tentou contato com o Ministério das Comunicações de Angola, mas não obteve resposta.

–  Em um país realmente democrático esse julgamento não aconteceria até mesmo porque a lei que trata de incitação à violência já foi revogada. Quanto às implicações do julgamento de amanhã, não faço a mínima ideia… Tudo em Angola pode acontecer porque estamos todos a mercê do poder do ditador e seus seguidores.