Por Washington Santos Nascimento, Por dentro da África
Este texto promove uma discussão sobre o universo mítico-religioso do interior angolano de finais do século XIX até meados do século XX. Importa-nos analisar de que forma aspectos mítico-religiosos desse universo banto (sobretudo AkwaKimbundu), como os “gênios da natureza” (kiandas e kitutas) e os sacerdotes (kimbandas e kilambas), transitam no cotidiano e imaginário social daquele espaço em transformação, por conta da chegada dos portugueses e de novas matrizes socioculturais cristãs.
AkwaKimbundu é como os povos que atualmente habitam as regiões de Luanda, Bengo, Cuanza Norte, Cuanza Sul e Malanje se autodenominam. Em kimbundu, Akwa quer dizer “os”, “os de”, “os pertencentes a”, e que, junto à palavra kimbundu, quer dizer “os falantes do Kimbundu”, “os do Kimbundu” ou ainda “os pertencentes ao Kimbundu”. Assim, neste artigo, usaremos AkwaKimbundu para nos referir a povo e Kimbundu quando nos referirmos ao complexo povo-língua-universo cultural, preferimos não usar no texto a palavra quimbundo, comum no Brasil, para se referir sobretudo a língua.
Desde, pelo menos, o século XVI, os povos vizinhos do Kongo, que mantiveram uma relação de conflito e dominação sobre os Kimbundu, designavam esse povo de ambundo (ambundu ou mbundu), que significava “negro”, “escravo” e/ou “selvagem”. A junção ambundo-quimbundo, feita também pelos portugueses, ainda muito usual na historiografia brasileira sobre o tema, significa “negro/escravo/selvagem que falam quimbundo”. Em grande parte, essa definição já presente em documentos do século XVI, foi reiterada e amplamente divulgada pelo etnólogo José Redinha (1975), que, com sua extensa produção sobre os grupos étnicos angolanos, serve até hoje como a principal referência para denominar, a nosso ver erroneamente, os povos dessa região.
Kiandas e Kitutas no universo mítico-religioso kimbundu
Kiandas e kitutas são gênios da natureza, pertencem ao imaginário Kimbundu e não podem ser confundidas com as sereias, mito ocidental criado a partir da tradição greco-romana. Entretanto, percebe-se que, em diferentes obras de pesquisadores angolanos como Oscar Ribas e Uanhenga Xitu, que eles incorporam a denominação sereia como um sinônimo de kituta, demonstrando um entrelaçamento entre os universos locais e europeus, e a incorporação, por parte dos primeiros, de denominações (imaginários e valores) do colonizador europeu, trazidos, sobretudo, pelos missionários cristãos. De acordo com Peter Geschiere (2006), em suas análises sobre feitiçaria e modernidade nos Camarões, os novos imaginários ligados a feitiçaria não expressam apenas algum tipo de saudade por um passado dito tradicional. Pelo contrário, sua própria ambiguidade, que expressa ao mesmo tempo o “horror” e a “fascinação” pelas novas oportunidades que surgiam, ressalta o esforço despendido para lidar com as mudanças modernas. Por essa razão, esse discurso se torna elástico, buscando dessa forma capturar elementos novos introduzidos de fora (Geschiere, 2006, pp. 28-29), o que, a nosso ver, ocorrer com a ideia das sereias.
Para as populações locais associarem kituta (mas também as kiandas e kiximbis) às sereias era uma forma de traduzir um símbolo local para um universo ocidental, e assim ter êxito na intenção inicial de disseminar (entre os de origem europeia) o respeito por esse “gênio da natureza”. Apesar disso Duarte de Carvalho em seu estudo sobre os muxiluandas, da ilha de Luanda, destaca entretanto a necessidade de diferenciar as “sereias” das kyandas:
Há quem as tenha visto. Há mesmo quem tenha visto as cidades inteiras onde habitam. Uma infeliz – do ponto de visto cultural – e generalizada tradução portuguesa do vocábulo Kyanda com “sereia” (refere-se ambos os termos a seres “fantásticos”, habitantes das águas) é talvez responsável pelo fato de alguns testemunhos as descreverem com cabelos longos e lisos, gente de cintura para cima, peixe do ventre para baixo. Mas não: as “sereias” são como as pessoas, andam calçadas mesmo, podem até usar quedes. O que se vê normalmente, porém, não são mais que sinais delas, luzes, lençóis de luz debaixo das águas, fitas, fitas de muitas coisas. (CARVALHO apud PEPETELA, 1990, p.134-135).
Kianda (plural yanda) é a nomenclatura do gênio existente sobretudo na região do rio Cuanza, que banha a cidade de Luanda. À medida que o rio entra no interior de Angola, ela recebe a denominação de kituta e kiximbi, este último um termo mais antigo e pouco usual no século XX. A leitura de Vozes na sanzala de Uanhenga Xitu nos sugere a existência dessa distinção, que não é só uma questão de nomenclatura, mas sim de tipos de organização social: de um lado, uma sociedade de pescadores (às voltas com o mar e kiandas), e, de outro, agricultores (com os rios, lagos e kitutas).
A descrição física da kituta feita por diferentes pesquisadores, a exemplo dos citados Xitu, Ribas não se afasta de outras representações de sereia no continente africano, e mesmo no espaço diaspórico, onde ela recebe nomes como Yemanjá, Janaína, mãe-d’água etc., e nos sugere que, em meados do século XX, a influência das representações europeias (no caso específico, uma sereia) já tinha sido incorporada e tomada para si como pertencente também do imaginário dos Kimbundu, ou seja, aquilo que em um primeiro momento era uma forma de tradução, torna-se, então, um elemento novo e local.
Em sua obra Vozes da Sanzala (1974), Xitu, ao mostrar o contato de uma das personagens , Kaualende com a kituta, sob a forma de sereia, ele descreve este gênio. Ela, grávida, foi à fonte de água Kasadi em uma madrugada (horário não usual), invadindo, dessa forma, um espaço sacralizado e sob o domínio de um “gênio da natureza”. No caminho, ouvira o canto do kabirindjindu, um pássaro lendário. Depois encontrou outro, o kingunguaxitu (grande pássaro do mato), que cantava pressagiando que algo ruim estava por vir. São eles que vão marcando os passos da avó de Kahitu até o encontro com o ser encantado, evidenciando, assim, a construção de um espaço complexo e múltiplo, onde o encantado e o terreno, o visível e invisível, interagem e se complementam. Na fonte, logo que acabou de encher o pote, quando ia levantar a panda (tecido usado para se proteger, mas também para fixar o pote), um vozeirão atrás de Kaualende diz:
– Eme Kasadi ka-ngi-telami kalaji.
[Eu sou a sereia de Kasadi; para mim, não admito intrusas de madrugada.]
– Em seguida, um som especial de sinos começou a ecoar, melodiosamente.
Assustada, Kaualende virou-se e deparou com um vulto humano, alvo como a neve. De cabelos compridos que lhe caíam até as costas. Ela caiu.
(Xitu, 2004c, p. 76).
Xitu diz, então, que, quando a kituta aparecia, tudo se movimentava, todos os seres do universo vegetal e animal, todos a respeitavam, porque senão ela secava a água do manancial. Percebe-se um mundo complexo e interligado, onde diferentes dimensões do visível e do invisível se entrelaçam e se complementam.
Já Ruy Duarte de Carvalho, faz outra descrição destes seres, nas entrevistas de campo que fez na ilha de Luanda, com alguns muxiluandas que tiveram contato com a Kyanda:
Quando ia chegar na lagoa da ponta do Mussulo, no Pinho, apanhei um arrepio e comecei a rezar e a falar. Estava cheio de luzes por cima da lagoa. Era voltar para trás ou avançar. Avancei batendo as palmas: – mais velhos, eu não sei nada, fui só passear, estou a voltar em casa. E as luzes todas se apagaram. Mais longe, já olhei para trás: as luzes, lá com o brilho delas, outra vez acesas. O meu cabelo voltou ao normal e o medo passou. Para ver mesmo, é difícil. Tapam o corpo com o cabelo, viram as costas, dão-te escuridão nos olhos. A luz que vês é espalhada: um bando de patos a brincar na baía, as vezes pombos, em terra. Mas são de luz, sobretudo, e cor e brilho e fitas. (CARVALHO apud PEPETELA, 1990, p.135).
Carvalho ainda salienta que as Kyandas tem um amplo poder, pois tudo veem e tudo ouvem, tendo também uma importância significativa na abundancia do pescado, nas movimentações do mar ou nas tempestades. Assim os pescadores tem que agradar a mesma, com cerimônias, o Kakalu que dura dias, oferendo a ela as melhores iguarias, como bebidas finas, vinhos do porto, uísque, cerveja, refrigerantes, uva passas, gengibre, cola, cigarros etc tudo isso acompanhado de invocações e danças.
Kimbandas, kilambas e feiticeiros no universo mítico-religioso Kimbundu
O kimbanda (ou quimbanda, em português) era o responsável pelos processos de cura, conhecendo para tanto as propriedades e aplicações das plantas. Como se acreditava que os males tinham sempre causas sobrenaturais, tais como enfeitiçamento, vingança, contrariedade etc., o kimbanda fazia uso da adivinhação como parte de seu diagnóstico. Por outro lado, tinha um caráter duplo, podendo, em alguns casos, assumir um papel de feiticeiro e, assim, fazer uso do feitiço para matar ou mesmo atrapalhar a vida de uma pessoa.
Construído a partir das suas memórias e experiências pessoais, Maka na sanzala, de 1979, escrita por Xitu, mesmo sob estruturação e convenções próprias de uma obra literária, oferece-nos um rico painel dos procedimentos de duas quimbandas no auxílio a um parto difícil. A primeira, denominada apenas como “velha quimbanda”, ao encontrar-se com a mulher em trabalho de parto:
Fazia das suas mãos kixakatu. Os dedos da mão direita passava-os na palma da mão esquerda, como quem estivesse a afiar uma navalha. Deslizava-os com uma destreza de impressionar. Dessa sua perícia mágica saíam uns estalidos singulares. De vez em quando tirava de uma pasta de couro uns pós brancos que atirava para trás e para a frente de si, ao mesmo tempo que monologava umas preces (Xitu, 2004c, p. 21).
Chega, então, outra quimbanda (Kasexi), a mais importante da região – e a única que, ao tocar seus guizos, fazia os moribundos abrirem os olhos ou mexerem os lábios –, para terminar de auxiliar no parto. Xitu assim descreve as ações de Kasexi:
De repente a velha quimbanda, num movimento diabólico, urrou e buibuilou, mexendo-se convulsivamente, ao mesmo tempo que sacudia os sinos que lhe pendiam dos paramentos. E esteve neste delírio por longos minutos […] Nada mais aconselhou senão tirar uns pós mágicos da sua bolsa. E deitou uma pitada de pós na língua da Mulemba. Da mesma forma “sacou” um boião de onde tirou uns pós e fez uns riscos cabalísticos em volta da cabeça e da cintura do bebê (Xitu, 2004c, p. 35).
Nas duas descrições, destaca-se o uso de pós brancos no trabalho de parto. Mariana Fonseca (2015) registra que, desde o século XVII, os povos dessa região usavam a pemba, um pó branco sagrado, feito de argila, em rituais que visavam garantir a fertilidade feminina e a reprodução do grupo, e utilizavam também a takula, pó feito da árvore de mesmo nome, nos rituais masculinos. Em seu dicionário de termos angolanos, Oscar Ribas diz que a pemba era um “calcário margoso”, um caulim (espécie de gesso), que possuía largo emprego na umbanda, “servindo, juntamente com o ucusso, para as caracterizações que, obrigatoriamente, se executam nos lugares concernentes à liturgia, a fim de se abrirem os caminhos, ou seja, para atrair a graça dos espíritos” (Ribas, 2009 [1969], p. 317-318).
Como dissemos, o kimbanda poderia assumir o papel de feiticeiro, apenas o trabalho era diferente. O feiticeiro era visto como o “terror da população”, pois ele praticava sobretudo o “mal”, escondido e quase sempre à noite. Poderia se transformar em bicho, em coisa ou vegetal. Tornava-se feiticeiro através de uma ação extrema, ou seja, cometer incesto, mesmo com a mãe, matar por feitiço um parente próximo etc. Tinha um coração de tamanho grande, ou mesmo dois corações para assim poder caber neles o “quanto existe de pior”. Em Ilundo: divindades e ritos angolanos, Ribas (1958) diz que as ciências do kimbandeiro e do feiticeiro eram diferentes e não podiam ser todas elas designadas pelo nome de feitiço. Diz ainda que, enquanto o kimbanda praticava a umbanda, que significa a “arte de curar” ou ainda “cerimônia ou prática ritual efetuada pelo quimbanda”, o feiticeiro praticava a uanga, vista como “malefício”, “veneno ou droga nociva” feito por um “ocultista”.
Na obra de Xitu, Os discursos do Mestre Tamoda, de 1984, a portuguesa Dona Amélia gostaria de separar sua filha do “preto” Marajá, por isso pede a seu cozinheiro para procurar um kimbanda. Depois de voltar do primeiro contato com este, perguntou o funcionário à sua senhora: se era para “virar o coração da menina” ou “matar o rapaz no feitiço” (Xitu, 1984a, p. 132).
Voltando a Vozes na sanzala…, se conclui que somente outro tipo de sacerdote, um kilamba, poderia ajudar Kaualende. O kilamba era o intérprete das kitutas, o único que podia conversar com elas, tratar das enfermidades ocasionadas por esses gênios da natureza, usando, para isso, também a adivinhação como diagnóstico. Foi a kituta ou não? Se foi a kituta, por que foi?
No apêndice de Vozes, Xitu define o kilamba como sendo ligado às “sereias”, responsáveis por tratar e curar as doenças relacionadas com elas, bem como, eventualmente, pela consagração dos sobas em suas cerimônias de coroação. Eles já nasciam predestinados, trazendo do ventre da mãe um sinal característico que só os entendidos sabem reconhecer nos primeiros dias de vida. Além disso, era consagrado (“feito”) de forma diferente dos kimbandas, tendo ritos próprios.
A origem dos kilambas é associada ao poder dos antigos Ngola. Beatriz Heintze (1998) conta que o Ngola que reinava em 1575 no Estado do Ndongo – que cobriu parte significativa dos territórios Kimbundu –, afirmava ser um kilamba, portanto senhor do sol e da chuva, estando dessa forma ligado à fertilidade da terra e ao bem-estar de seus governados. Mais recentemente, o primeiro presidente de Angola pós-independência, Agostinho Neto, designava-se, desde a luta colonial, como kilamba, uma forma de se fazer entender entre as comunidades tradicionais como um chefe e/ou presidente (Coelho, 2010).
Oscar Ribas (2002, p. 66) acrescenta que esses sacerdotes eram os responsáveis por cuidar da cólera da sereia “quer embravecendo o mar ou qualquer outro curso de água, bem ainda as infestações de feras e a estiagem”. Como as sereias, os kilambas podiam ficar embaixo da água até um mês. Tal qual Xitu, Ribas (2002) diz ainda que normalmente um kilamba tinha alguma deformação física, mas que somente um kimbanda poderia revelar a essa pessoa se ela seria ou não um kilamba. Assim, podemos ao menos supor que Kahitu um dia poderia ter-se tornado um kilamba.
Na conversa do kilamba com o pai de Kaualende, estabelece-se um debate entre as antigas tradições Kimbundu (e banto) e os novos elementos religiosos (e culturais) trazidos pelos europeus naquele contexto:
– Há muito venho despertando a essa gente de que era tempo de se oferecer um banquete ao Kasadi. Mas… A água está a diminuir, já não chega lá ao fundo, na lavra do Kingolo; os desdéns já não tem o mesmo gosto e nem produzem o óleo como antigamente; há dias, uma cobra preta e cheia de cabelos correu atrás de mulheres que iam buscar água, escapando matar o filho de Kinguadi, e não falemos na jiboia que engoliu o cão de Kaiambi, agora surge este caso da tua filha! Não teríamos evitado tudo isso se o povo ouvisse os meus conselhos?…
– Ah, meseneKilamba – interrompeu um dos velhos presentes, hoje é escusado, os nossos filhos não ligam a essas coisas. Vieram os homens da Missão…
– E que desrespeito, cantam e assobiam atrevidamente os hinos da Missão, mesmo quando estão a tomar banho nas águas do NganaKasadi! – disse um outro velho, num tom de muito aborrecido.
(Xitu, 2004c, p. 74)
O Kasadi era o nome da fonte (uma espécie de lago), onde a “sereia” aparecia. Tratava-se de entidades encantadas que tinham o poder da metamorfose, transformando-se em cobras, por exemplo. Essa era também uma forma de provar, naquele contexto mais racional, a presença física das antigas tradições.
Xitu também revela os impactos das missões cristãs na região, responsáveis por novos ordenamentos religiosos e culturais. Se, por um lado, as igrejas protestantes (e mesmo católicas) podiam ser uma resposta às grandes inquietações do encontro e desencontro colonial, podiam ser também razão de inquietação, pois, apesar de suas diferenças, que vão desde a relação com o poder metropolitano até o ethos religioso, católicos e protestantes compartilhavam a mesma visão de que o africano deveria ser salvo pelos cristãos e de que o que havia antes da chegada dos europeus não passava de crendices ou selvageria (Paredes, 2010).
Voltando a Vozes na sanzala, a situação se resolve após o pai de Kaualende realizar o mais pomposo banquete que um kilamba já tinha preparado até então para uma kituta. Victor Turner (2005), em seus estudos sobre os Ndembu, povos do noroeste da Zâmbia (país vizinho a Angola), diz que a escolha por realizar determinados rituais que não estavam diretamente ligados ao calendário geral do grupo social ocorria em momentos de crise daquela comunidade, servindo, dessa forma, como uma tentativa de retorno ao equilíbrio espiritual de um indivíduo ou mesmo do grupo que foi perturbado por alguma “anomalia”, como a infertilidade de uma mulher ou o nascimento de gêmeos. No caso em questão, a “anomalia” era o fato de Kaualende ter invadido um espaço sagrado em uma hora imprópria sem a permissão da kituta.
José Redinha (1975 registra que, em Luanda, região próxima à descrita por Xitu, organizavam-se suntuosos banquetes para os gênios da natureza (as sereias, na sua descrição), com louças, vinhos doces, pentes e iguarias africanas junto com outras europeias. Segundo ele, dispunha-se esses objetos em esteiras, na praia, após o que toques de tambor anunciavam à sereia que o banquete seria servido.
Ao acordar, Kaualende dá mais detalhes do encontro com a kituta, revelando, assim, a circularidade da história, um recurso da maka, a forma tradicional que Xitu escolheu para escrever a sua obra literária, distante, assim, da linearidade mais comum nos contos europeus.
Pelo caminho encontrei-me com um kingunguxitu muito grande! Fez-me assustar. O coração pesou-me, mas resolvi ir até a nascente. Posta lá, ouvi cantar outro kingungu, parecia persuadir-me para não avançar. Mas como a interpretação do cantar daquele pássaro é considerado como brincadeira de crianças, embora seja envolvida a muitas lendas, não liguei… Quando enchi a sanga, comecei a ouvir um som de guizos. Pensei que fosse uma pessoa vestida de mandungela (sinetas, guizos) e que ia a um xingidi (xinguilador “médium”). Logo que endireitei a disanga já cheia ouvi alguém a dizer: Eme kasadi ngitelami kalaji (Eu sou a sereia de Kasadi, não admito intrusas na madrugada) (Xitu, 2004c, p. 83).
Kaualende segue detalhando o encontro com a kituta, descrita por ela como “branca como o fubá de kindele (milho)”, e que só a vira sob a forma de sereia, da cabeça à cintura, “estava ajoelhada na água, e tinha-me dado as costas. O cabelo comprido e molhado, colava-se-lhe às costas” (Xitu, 2004c, p. 84). Em uma perspectiva ampla para os povos da região Congo-Angola, o mundo estava dividido em duas esferas, a dos vivos/terrenos e a dos mortos/encantados; estes últimos tinham a cor branca e eram os ancestrais daqueles que fundaram as aldeias e organizações políticas (Costa e Silva, 1998). No livro Os discursos do Mestre Tamoda, de 1984, Xitu relata a história de José Maquita, “preto, beçula” que morava em Portugal desde pequeno e, ao voltar para Angola, trouxe a sua esposa e a apresentou aos pais no interior. Assustados com a cor da mulher, seus progenitores fugiram, dizendo que o filho lhes havia trazido uma kianda.
Depois da fala de Kaualende, um novo ritual foi feito, não só pelo kilamba, mas também pelos kimbandas que estavam no local, com o oferecimento de bebidas ritualizadas, toque de guizos e danças. A partir daquele encontro (e da primeira obrigação feita), Kaualende e toda a sua geração serviriam à kituta, ou seja, em toda festa ou invocação a ela, deveria fazer-se presente a família de Kaualende e seus descendentes. Além disso, em toda gravidez se faria uma obrigação para a “sereia”, pois senão o filho nasceria com alguma deformação.
Assim, Mbombo, filha de Kaualende e mãe de Kahitu, nascera saudável e já sabendo das obrigações que tinha para com a “sereia”. Ao se casar com Mukita, cumprira, dedicadamente, esse seu compromisso com os quatro primeiros filhos, menos com o último, Kahitu. E, talvez por essa razão, este nascera com uma deficiência física.
Considerações finais
A articulação social da diferença Kimbundu/português foi uma negociação complexa, em andamento, que procurou conferir autoridade aos hibridismos culturais que emergiram naquele momento de transformação histórica, ocasionada pela maior presença missionária e europeia, sendo tais hibridismos uma forma pela qual as pessoas daquele contexto lidaram com as mudanças modernas, muitas das quais traumáticas.
Na Angola da primeira metade do século XX (e até mesmo em tempos recentes), conciliar visões de mundo conflitantes, e até mesmo antagônicas, fazia parte do processo geral de acomodação em um contexto no qual os povos Kimbundu e português se ligaram uns aos outros pela imposição da situação colonial. Assim, podemos entender as costuras e articulações da sanzala e do universo mítico-religioso descrito por Xitu, cujo amplo processo de misturas e mestiçagens com a manutenção de determinados elementos da cultura tradicional Kimbundu funcionava como uma reação de sobrevivência e resistência a uma situação instável e imprevisível devido à presença missionária e ao questionamento, mas também reafirmação, das tradições locais.
Para saber mais
http://www.scielo.br/pdf/rbcsoc/v32n95/1806-9053-rbcsoc-3295142017.pdf
Washington Santos Nascimento é professor de História da África da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)