“Ex-escravo, Luiz Gama foi a grande voz negra no combate à escravidão”, diz Ligia Fonseca Ferreira

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Luiz Gama – Reprodução

Natalia da Luz, Por dentro da África 

Ele foi o único intelectual que passou pela experiência de ter sido escravizado. Baiano, filho de uma africana livre e de um pai branco que o vendeu como escravo, Luiz Gama foi escritor, jornalista, advogado e abolicionista, que lutou pela liberdade de mais de 500 pessoas escravizadas. Falecido em 1882, a primeira voz negra na literatura brasileira a denunciar os paradoxos sociais durante o período da escravatura, é protagonista de uma história que precisa ser conhecida pelos brasileiros.

Para falar sobre essa personalidade tão importante, o Por dentro da África conversou com professora Ligia Fonseca Ferreira, da Universidade Federal de São Paulo, que há mais de 20 anos estuda a vida do patrono da abolição, tema de seu doutorado na Universidade de Paris 3 Sorbonne (França).

“Luiz Gama é uma figura de extrema importância em muitos aspectos. Ele foi um grande líder do movimento abolicionista e libertou centenas de pessoas. Dono de uma cultura jurídica incomparável, ele foi um advogado autodidata que se tornou referência para muitos juristas da sua época. Por isso é tão importante conhecer Luiz Gama”, contou a professora da Universidade Federal de São Paulo.

Ligia Fonseca Ferreira – Arquivo pessoal

Gama nasceu em Salvador no ano de 1830. Aos 10 anos, ele foi vendido como escravo e levado para São Paulo, onde permaneceu analfabeto até os 17 anos. Obteve secretamente as provas de ter nascido livre e, aos 18 anos, retomou a sua liberdade.

Gama lutou arduamente pelos direitos dos negros, 100 anos antes de Martin Luther King ser um líder nos Estados Unidos. A sua história, especialmente a experiência de ter vivenciado a escravidão, tem uma correspondência com a história de Frederick Douglass (1818-1895), ativista negro que foi um abolicionista e escritor nos Estados Unidos. Depois de escapar da escravidão em Maryland, ele se tornou um líder nacional do movimento abolicionista em Massachusetts e Nova York.

Frederick-Douglas

“Nos Estados Unidos, não há um negro, um ativista, um intelectual que não conheça a história de Douglass. Aqui no Brasil, Gama ainda é profundamente desconhecido”, comparou Ligia.

Libertação de escravos

Como advogado autodidata e profundo conhecedor jurídico, Gama fez uso de diversas leis para lutar por justiça. Em sua saga abolicionista, a escritora lembra que ele “desenterrou” uma lei que não estava sendo colocada em prática. Sancionada em 1831, a Lei Feijó proíba a importação de escravos no Brasil, além de declarar livres todos os escravos trazidos para terras brasileiras a partir daquela data. A lei ainda estabelecia multas aos traficantes, além de oferecer um prêmio em dinheiro a quem denunciasse o tráfico.

“Gama foi escravo e filho de uma escrava. A população brasileira, naquele momento, era majoritariamente descendente de escravos. Quando ele começou a unir esforços com outros ativistas para fazer valer a lei, aquilo foi um assombro. Essa lei que não interessava aos donos de escravos surgia em meio a uma sequência de pressões internacionais”, explica Ligia.

A pesquisadora complementa que essa medida é uma das famosas “leis para inglês ver”, ou seja, existia para dar uma satisfação à Inglaterra (que fazia pressão para o término do tráfico transatlântico), mas, na prática, o Brasil continuava traficando escravos.

Gravura de Johann Moritz Rugendas (Rio de Janeiro)

“Entraram mais de 700 mil africanos depois dessa lei, contrabandeados ao velho estilo brasileiro. Isso é revoltante, e Luiz Gama comprou essa briga. Os juízes ‘escondiam’ a lei para seguir protegendo os donos de escravos. Era muito comum, naquela época, os proprietários modificarem o registro do escravo como se ele tivesse chegado antes”, ressaltou.

Com atuação mais incisiva fazendo uso da Lei Feijó, o ativista começou a ser seguido por muitos outros advogados e a fazer novos inimigos em São Paulo. Em seguida, outras leis tentaram proibir o comércio de escravos, mas foram ‘abafadas’, como a Lei Eusébio de Queiroz (1850), que defendia o fim do tráfico. Nesse período, a maçonaria fortaleceu a luta de Gama. A Loja Maçônica América, da qual era membro fundador e contava com a participação de Rui Barbosa, à época estudante de direito em São Paulo, foi bastante ativa na causa republicana e abolicionista.

Debret – Negra Tatuada Vendendo Cajus – 1827

“A partir do final dos anos 1868, ou seja vinte anos antes da Abolição, Gama começa a escrever uma série de artigos criticando os procedimentos de advogados e juízes, apoiando-se nas leis de 1831 e, depois, na de 1871, a Lei do Ventre Livre. Nos seus eloquentes artigos de jornal, ele cria uma ponte e um contato com o leitor muito forte porque ele dizia que precisava mostrar o modo ‘extravagante’ como se praticava a justiça no Brasil. Ele não era só um advogado, era um filósofo e teórico”, conta Ligia, destacando um trecho de um artigo de Gama, escrito em 1880″.

“Se algum dia, os respeitados juízes do Brasil, esquecidos do respeito que devem à lei e dos imprescindíveis deveres que contraíram perante a moral e a nação corrompidos pela venalidade ou pela ação deletéria do poder abandonando a causa sacrossanta do direito e por uma inexplicável aberração faltarem com a devida justiça aos infelizes que sofrem escravidão, eu, por minha própria conta sem impetrar o auxílio de pessoa alguma, e sobre minha única responsabilidade aconselharei e promoverei não a insurreição – que é um crime, mas a resistência que é uma virtude cívica.” 

Gama fazia muitos inimigos, mas tinha amigos poderosos e era figura muito popular. Segundo jornais da época, o seu funeral em 24 de agosto de 1882 foi o maior já havido na cidade e movimentou a população paulistana, que lhe prestou as mais diversas homenagens. Entre os presentes, havia pessoas de diversas posições e classes sociais: do escravo a personalidades ilustres, inclusive políticos adversários.

Fonte inesgotável de pesquisas

No final dos anos 90, ao iniciar seu projeto de doutorado na Universidade da Sorbonne, Ligia, seguindo a sugestão do seu orientador, decidiu estudar com mais profundidade Luiz Gama e desde então ele tem sido uma fonte inesgotável de suas pesquisas. Fonte importante de seus estudos, o primeiro livro dele, ‘Primeiras Trovas Burlescas de Getulino’ (publicado em 1859), a professora só encontrou na coleção particular do bibliógrafo José Mindlin (1914-2010). Na época, Ligia reescreveu todo o livro à mão, bem como, a segunda edição, corrigida e ampliada pelo próprio Luiz Gama, publicada lançada no Rio de Janeiro, em 1861.

Fruto de pesquisas realizadas desde então, a obra “Com a Palavra, Luiz Gama: Poemas, artigos, cartas, máximas” foi reeditada em 2018, encontrando-se novamente disponível nas livrarias, e se constitui na principal referência para aprender sobre a história desse herói que foi negligenciado pela historiografia brasileira.

 

“Essa obra é bastante atípica no Brasil porque pouca gente se debruça sobre o estudo das fontes. Geralmente, os autores fazem aquela síntese, e os leitores ficam sem saber da onde aquilo foi extraído. Outra vertente do trabalho foi lidar com a correspondência dos escritores contemporâneos a Luiz Gama. Além disso, há artigos de jornal e seções com cobertura da morte de Luiz Gama na imprensa”, disse Ligia, que, neste livro, tratou de explicar e contextualizar, em mais de 400 notas, informações contidas nos escritos de modo a torna-los mais claros para os leitores” disse a pesquisadora, lembrando que, cada seção do livro, tem um ensaio escrito por ela.

Quando aprendemos um pouco mais sobre Gama, vemos como ele foi invisibilizado. Ainda hoje, a sua história é pouco falada e conhecida. A comparação entre o quanto ele era conhecido naquela época e hoje é um abismo.

“Esse desconhecimento diz respeito à invisibilidade do pensador negro. Diante da singularidade dele como autor negro, nós vemos o peso da sua cor, vemos que o preconceito foi maior do que a vontade de enxergar o que ele era. Mas isso continua sendo perpetuado nos dias de hoje. Basta olhar para as nossas oligarquias em 2018, e ver que elas ainda são representadas pelos mesmos grupos com seus filhos, netos e bisnetos. Essa velha oligarquia é duradoura. Ela faz de conta de que está ouvindo as pessoas, mas não está.”

Esse não reconhecimento de Luiz Gama passa, obviamente, pelo racismo estrutural e institucional do Brasil e pela rejeição de movimentos populares. Na história da abolição, da literatura e da implementação da República, Gama foi perversamente apagado.

Um passo para o reconhecimento tardio

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Com as dezenas de artigos e os livros de Lígia (organização de ‘Primeiras Trovas Burlescas e outros poemas de Luiz Gama’, e ´Com a Palavra, Luiz Gama: Poemas, artigos, cartas, máximas”), a história do ativista é resgatada e conhecida. Em dezembro de 2015, a Ordem dos Advogados do Brasil deu a Gama o título póstumo de “profissional da advocacia”. Na ocasião, seu tataraneto Benemar França, de 68 anos, recebeu a homenagem.

No dia 17 de janeiro de 2018, ano que marca os 130 anos da abolição da escravatura, a Lei 13.629 declarou o advogado Patrono da abolição da escravidão do Brasil.

“Antes tarde do que nunca. A academia é uma instância de poder e nossas vozes têm poder, poder editorial. O que paga toda essa minha dedicação é fazer com que as pessoas conheçam Luiz Gama tal como ele foi. Já existem muitas ficções sobre ele, precisamos da verdade”, detalhou a escritora, que, a partir de seus estudos combateu alguns mitos sobre Gama e sobre a sua mãe, Luiza Mahin, acusada de articular muitas revoltas em meados do século 19.

Leia também: “No coração, a liberdade: as cartas exemplares de Luiz Gama”

Também, a partir dos textos de ‘Com a Palavra, Luiz Gama’, foi desenvolvido o espetáculo ‘Uma voz pela liberdade”, em cartaz no Rio de Janeiro. Na peça, que, nos últimos dois anos já foi vista por mais de 10 mil pessoas no Rio de Janeiro, o ator Déo Garcez interpreta Gama. Para Ligia, a peça faz parte da realização do sonho de ensinar Luiz Gama. O próximo passo é que essa valorização seja levada para as escolas.

“A educação no Brasil é um processo muito lento. Não adianta ter toda essa pesquisa se o material didático ainda é produzido em forma de síntese. Precisamos de livros didáticos com autores que sejam mais comprometidos e responsáveis, com reflexões e atualizações. Luiz Gama precisa chegar aos professores e alunos, ser conhecido pela população brasileira que encontrará nele inspiração e um exemplo a ser seguido, fundamental nos dias de hoje.”

Assista a um programa com a professora