Natalia da Luz, Por dentro da África
Rio – Ela sempre teve o sonho de conhecer de perto para ouvir, aprender e compartilhar as histórias de um continente que a fascina desde menina. Aos 21 anos, Jéssica Paula deixou o Brasil para encontrar essas histórias em campos de refugiados que vivem nas fronteiras do Sudão, Sudão do Sul, Uganda e Etiópia. Usando muletas para se locomover, por conta de uma deficiência desde a infância, ela percorreu mais de 7 mil quilômetros para contar em livro histórias daqueles que costumam ser esquecidos.
– A guerra sudanesa sempre foi apresentada através de números. Eu queria contar a partir de grandes histórias. Esses destinos foram escolhidos por fazer parte da guerra civil sudanesa, que durou 50 anos e fez milhões de refugiados – contou, em entrevista ao Por dentro da África, a escritora de “Estamos aqui”, livro produzido e lançado no mês passado por meio de financiamento coletivo, superando a meta de R$15 mil.
Jéssica foi uma das primeiras brasileiras a entrar no Sudão do Sul, quando o país se formou, em 2011. Ela queria retratar aquele cenário de uma forma mais real, mais autêntica. Por isso também que cada rosto, cada história de vida que ela encontrou se tornaram especiais.
– Quando eu cheguei ao campo de refugiados de Bambasi, na Etiópia, um dos refugiados veio até mim e disse: “Eu sei porque você está aqui, você está aqui por causa da gente. Então, quando você voltar para o seu mundo, por favor, conte a eles que nós estamos aqui”. É por isso que dei esse título ao livro. Essa frase foi a minha grande motivação – conta a jornalista, hoje com 24 anos, especialista em documentário pela Universidade Carlos III, em Madrid, Espanha.
Com passagens pela TV Brasília e Correio Brasiliense, a repórter nascida em Rio Verde, Goiás, sempre se interessou por temas sociais, humanitários. Neste ano, ela teve a ideia de lançar o livro para contar sobre a sua temporada de maio a julho de 2013 em território africano.
Rotina em áreas de conflito
Antes de desembarcar na África, Jéssica conta que as únicas pessoas que ela havia contatado trabalhavam em ONGs, já que as regiões pelas quais ela passaria seriam de difícil acesso.
– Uma garota viu que eu estava sozinha no aeroporto do Sudão, então, sentou do meu lado enquanto eu ia pedindo informações sobre hospedagem. Ela me respondeu que era bem cara. Como eu falei que estava com pouco dinheiro, ela disse: “fica lá em casa”! Eu aceitei o convite na hora! – lembra a escritora.
Não apenas no Sudão do Sul, mas em todos os lugares (cerca de 15 cidades por onde ela passou), o trabalho começava cedo. Por volta das 7 da manhã, Jéssica já estava de pé em busca de histórias. Caminhando pelas ruas, ela encontrava pessoas que as levava até outras. Na Etiópia, ela buscava por refugiados; no Sudão, por soldados; no Sudão do Sul, por crianças-soldado e em Uganda, pelas vítimas de Joseph Kony, um dos dez mais procurados do mundo.
Joseph Kony (1961) é chefe da Lord’s Resistance Army (LRA), uma guerrilha que tenta estabelecer um governo teocrático em Uganda. Dirigido por Kony, o LRA ganhou reputação pelas suas ações contra os povos de vários países, incluindo Uganda, Congo e Sudão. Raptou e forçou um número estimado de 66 000 crianças a lutar por ele e forçou a deslocação interna de mais de 2 milhões de pessoas desde a sua revolta, que começou em 1986.
Guerra no Sudão do Sul
Os destinos escolhidos por Jéssica abrangiam as regiões que eram afetadas pelos conflitos. A situação no Sudão do Sul vem piorando. Um relatório da ONU, divulgado no mês passado, sugere que o Exército Popular de Libertação do Sudão (SPLA) e os grupos armados associados realizaram uma campanha de violência contra a população do estado de Unidade do Sudão do Sul, matando civis, roubado e destruído aldeias, deslocando mais de 100 mil pessoas.
Neste mês, o Sudão do Sul completou quatro anos de independência. A esperança sentida em todo o país, nos primeiros dias de 2011, quando tornou-se a mais jovem nação do mundo, se apresenta em contraste com a realidade de hoje, em meio a uma crise humanitária. A situação da segurança no Sudão do Sul se deteriorou de forma constante ao longo do ano passado, desde que um embate político entre o presidente Salva Kiir e seu ex-vice-presidente Riek Machar e suas respectivas facções eclodiu em dezembro de 2013. As hostilidades, posteriormente, se transformaram em um pleno conflito, resultando em atrocidades relatadas e possíveis crimes de guerra.
De acordo com as últimas estimativas divulgadas pela agência de refugiados da ONU, mais de 730 mil pessoas fugiram para países vizinhos, como Uganda, Etiópia, Quênia e Sudão, que têm visto a maior taxa de chegadas neste ano. Enquanto isso, mais de 1,5 milhão de pessoas permanecem deslocadas internamente, muitas vezes, indo para locais de “proteção de civis” cada vez mais superlotados, apoiados pela Missão da ONU no Sudão do Sul (UNMISS).
Desafios
Apenas por estar sozinha em regiões de conflito já seria considerado um baita desafio. Além desse, Jéssica teve que lidar com o fato de andar de muletas em locais onde não havia energia elétrica, tampouco banheiro, apenas um buraco no chão. “Para uma deficiente física, essas condições são ainda mais complexas!”, pontua.
O momento em que ela quase foi expulsa do estado do Nilo Azul, no Sudão, onde é proibida a presença de estrangeiros, foi, sem dúvida, um dos grandes desafios enfrentados durante a temporada na África. Na ocasião, ela usou uma canga para cobrir todo o rosto como se fosse muçulmana. No Nilo Azul, onde cerca de 800 mil pessoas vivem, até Médicos Sem Fronteiras e a Cruz Vermelha foram impedidos de entrar.
– Um dos hotéis que busquei permitiram que eu ficasse a noite, mas avisaram que logo cedo chamariam o oficial de segurança. No dia seguinte, eu sai bem cedo para conversar com as pessoas, mas como estava fazendo 52 graus, não consegui andar muito e logo voltei para o hotel. Disseram que se eu não fosse embora, eu seria presa. Então, fui embora e consegui, no caminho, fotografar uma das poucas imagens que existem no mundo, nos dias de hoje, desse local – detalha.
Desde 2011, centenas de pessoas fugiram para o estado do Alto Nilo no Sudão do Sul e para o oeste da Etiópia para escapar de novos enfrentamentos nas regiões fronteiriças entre Sudão e Sudão do Sul.
– Outro momento delicado foi quando peguei malária, em Uganda. Eu tinha acabado de fazer minha última entrevista com uma mulher que teve as orelhas arrancadas pela milícia comandada por Joseph Kony.
Até hoje, Jéssica mantém contato com algumas pessoas que entrevistou, mas infelizmente não todas. A guerra continua, e a situação piorou no Sudão do Sul. Ela lamenta não saber se os amigos que fez ainda estão vivos, mas tem a certeza de voltar para colher mais histórias pela África.
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