Rodrigo Arreyes, Por dentro da África
A história a seguir é o fim de uma ambição sem limite que eu senti ao ler Amália de José Mármol, escritor da oligarquia argentina do século XIX.
Mármol afirmou ter começado a sua obra contra Rosas (Juan Manuel de Rosas) na prisão, onde carbonizava os “pauzinhos do chimarrão” para poder escrever. Eu, muito pelo contrário, anos e anos depois, apenas dilapidei o meu tempo e dilapidei as minhas energias. Não copiei, adulterei nem engordei as páginas deste romance clássico, mas sim o examinei a partir da perspectiva de uma personagem representante do terror rosista, uma “negrita”, talvez, da minha idade.
Lembremos: uma vez eliminado o projeto político do rosismo, começou a forte eugenia da Argentina branca, sonho dos unitários. A “negrita”, aqui chamada Paulina, de certa forma, fala da história da minha família em vários sentidos. Pretendia escrever sobre aquilo que imaginei com a leitura daquela estranha Buenos Aires e fiquei desorientado no diálogo com a Paulina, a garota protagonista da minha história.
Contudo, já estou decidido, eu não sei se vocês vão me entender, um dia serei professor nos subúrbios de Buenos Aires e não vou ensinar Amália, clássico racista que estudei na Faculdade de Filosofia e Letras. Por isso, para quem quiser ler esta história, deixo o seguinte resumo, tão incompleto quanto qualquer resumo, porém muito útil para entender a história sem necessidade de ler todo o romance. É central entender o que aqui acontece.
Amália narra o seguinte: Buenos Aires, metade do século XIX, Rosas no poder.
Na marra, Daniel Bello resgata Eduardo Belgrano, descendente direto do prócer da independência, único sobrevivente de um grupo de unitários assassinados pela mazorca quando tentavam emigrar ao Uruguai. Daniel Bello trabalha como político federal, em favor dos seus interesses e dos interesses do seu pai, mas na verdade ele é um espião unitário.
Cada momento do romance de José Mármol ele conspira contra o regime do caudilho Rosas. É por isso que Bello possui informações secretas, como a que permite que Belgrano seja resgatado da Mazorca ou aqueles segredos que produzirão mil intrigas no romance.
Para salvar Eduardo Belgrano, que é perseguido como um tigre do zoológico, Daniel Bello o esconde na casa da sua prima, a viúva Amália. Na rua, nos esconderijos e nas casas luxuosas de Buenos Aires, tudo acontece como planejado pelos unitários, até que um dia a “negrita” (batizada “Paulina”) aparece diante de Maria Josefa Ezcurra para trair Amália, dizendo que ela esconde o fugitivo.
Como resultado da delação, a mazorca irrompe com seus cavalos na casa dos sonhos de Amália e mata todos os presentes, incluindo os protagonistas, Daniel Bello e Eduardo Belgrano. Este é o final da história: uma promessa cumprida que aparece neste fato literário, bem diferente à realidade histórica, em que o rosismo é derrotado pelos unitários.
Quem queira conhecer mais e ainda não se sinta satisfeito com o meu breve resumo, que é apenas uma bola de gude para entender o conto no que se refere ao contexto literário, que, por favor, se isso deseja, leia os capítulos I (“Traición”) de la Primeira parte, VI (Doña María Josefa Ezcurra) de la Terceira parte e o XIX (“El tálamo nupcial”) da Quinta parte do romance de Mármol.
(…) Não foi uma ilusão, mais o medo transformou o caminho em um rio subterrâneo. Você tem 15 anos, teu espírito se manifesta com soltura, a tua inteligência é maravilhosa e em tudo você é melhor do que eu, por isso eu me sinto esplêndida, falo com a sinceridade do amor. Eu sei, filha, obrigado por deixar que eu seja honesta e, depois de tantas brigas, não deixar passar o meu tonto silêncio.
Foi assim que eu cheguei nestas terras, aonde você e o teu irmão chegaram à vida: eu tinha seis o talvez sete anos, mas já sabia dormir com os olhos fechados e aprender os passos de coruja vizcachera da minha mãe. Era o quinto dia de uma chuva que começava a se espreguiçar e o caminho abria os braços entre as terras alagadas.
A viagem de norte a sul, com uma parada de cinco dias em uma pequena cidade uruguaia -só sei que era desse país-, prolongou-se no tempo, impossibilitando a chegada programada. Não sei se fomos transportados em uma carroça ou em um bote – a água chegava até os nossos cotovelos e os mosquitos chupavam o nosso sangue até de dentro das nossas orelhas.
Finalmente, na última semana do mês de março, poucas gotas caíam do céu. Eu lembro: Dormia enfiada no colo da minha mãe, entre vários artigos sagrados de ouro e uma imagem da Virgem com a mesma altura que a minha mãe, em volta de um metro e sessenta.
Com um olhar tão real que parecia tocar os meus ombros, esculpida em madeira mágica pelo meu tio, famoso artesão da “fazenda”, a estátua da Mãe de Deus nos observava. Para nos abençoar, além dos cinco soldados que cuidavam das riquezas dos brancos e os outros três negros, também escravizados, a obra de arte que ali estava era uma Virgem de Guadalupe, o tesouro dado pelo meu tio em troca da nossa viagem.
A imagem estava presa no chão da carroça de forma que ficava em pé no meio do grupo, como se fosse outra pessoa que jamais iria descansar até chegar na igreja de destino. A estátua e nós todos éramos o pacote enviado de presente entre três fidalgos. Ali os passageiros acendiam velas que a imagem segurava com as mãos, para que, depois da oração, ela servisse como castiçal para o truco dos soldados ou para iluminar alguma comida compartilhada pela combinação de passageiros, que se revezavam para dormir ou então conversar com nós na improvisada sala de jantar do carro.
E apesar dos pedidos de proteção do meu tio, sob o olhar da Virgem, a tua avó era levada à beira do caminho para diversão dos soldados ou também para o uso do dom Jean, um francês nojento que me olhava com lascívia depois de voltar com ela. Minha mãe apenas recebia comida e dinheiro em troca. Lembro perfeitamente destas partes da viagem no meio do nada. Alojadas entre os outros objetos, contra o maldito frio da noite, ficamos quietas olhando as estrelas, abraçadas com cobertores com cheiro a cachorro doente, com medo dos milicianos estupradores e assassinos que podiam aparecer a qualquer momento.
A Virgem Maria com as velas e os cobertores fedorentos, a algazarra e o cansaço dos homens, o frio – essas são as imagens que guardo desta espantosa viagem. Pelo contrário, minha mãe, em Buenos Aires, lembrava da nossa travessia como a linha reta sobrenatural da nossa salvação.
Os estupros, dia a dia, a humilhavam e deixavam mordidas e cortes no seu corpo, além da tristeza inesquecível, porém também é verdade que a luz ao fundo do nosso destino foi de los pies hasta el cuello diferente a escuridão encontrada por outras mulheres da minha família, como a minha avó, que passou anos e anos em uma gaiola com duas guaripés como presente dos filhos do Senhor em São Paulo, ou homens como o meu avô Zezé, a quem lhe enfiaram um ferro no pênis e deixaram morrer sobre um formigueiro por ser o amante da sua senhora, a mãe do meu tio.
Ela me abraçou com força durante a viagem toda, mas o abraço não foi o abraço de uma mãe zelosa que teme pela vida da filha, sim o abraço de alguém que resgata um dos seus da morte, graças à especulação da troca de bens que nos jogavam em uma terra onde a escravidão não era como a imperial brasileira, um país onde muitos pretos velhos, embora por vezes mutilados, já eram livres desde criança. A nossa liberdade era uma realidade, embora à primeira vista fosse uma troca de mão em mão, pois é, da mão do artesão do meu tio.
Entre os outros parentes do Brasil, lembro do Meleca, que sempre usava a “máscara de flandres”, punição porque uma vez comeu terra para se infectar e evitar o trabalho da fazenda. Lembranças das torturas são infinitas, também eternas. Vários outros negros usavam esta máscara, que os mantinha longe da embriaguez ou de furtar as pedras preciosas ou outros objetos das mulheres, a maioria das vezes esquecidos por descuido dentro de casa.
Meio dia antes de chegar na cidade de Buenos Aires, um arco-íris se espalhou sobre a planície. De lado a lado na planície desértica, formava uma semicírculo perfeito. Um dos negros, que quase não falava conosco, me acordou com entusiasmo para vê-lo.
O céu destas terras, hoje, creio, desenha uma imagem certa da travessia que vivi, que não foi uma linha e sim um rabisco. Quando vejo este céu, que na paisagem ocupa mais espaço que a terra, sinto estar dentro de uma bola de cristal gigante. Minha mente fica abstraída e os meus olhos seguem a fina linha do horizonte, que às vezes tem cores que, para mim, formam uma visão da esperança nesta terra de sofrimento para os pobres e recompensas para os ricos. Sinto, além do mais, que o mesmo céu, que aparece na bandeira argentina (e do Uruguai), é o principal fator da paz que vi nas tardes durante o período de proteção do Restaurador, que sofreu tantas injustiças por culpa de seus covardes inimigos.
Depois do Restaurador, o engajamento entre negros e brancos, juntos no caminho do fim da pobreza e da injustiça da face da Terra, chegou ao fim pela ação dos diabólicos unitários. Me emociona o céu azul quase branco, mas também amplamente vermelho, como se o sangue da terra passasse através de veias espirituais para o céu, deixando-o laranja, violeta, turquesa e em outros tons nunca antes registrados pela pintura, se não só pela alma daqueles que pararam para matear ou beber cana nas esquinas, à tarde, com outros e outras, sempre pensando no fim dos tempos que diariamente aparecia nesse céu desenhado por fantasmas. Falamos muitas bobagens místicas sobre este céu com meus queridos paisanitos.
A imagem do céu da minha infância forma parte de mim e com certeza tem a ver com que agora eu escreva estas palavras, minha filha, como surgem do meu interior, pelo sentimento de que o céu está em movimento e ele não é algo atemporal e estável, como aprendi na catequese.
*Rodrigo Arreyes nasceu em San Martín, no Grande Buenos Aires, em 1985. Viveu muitos anos em São Paulo, onde em parte se alfabetizou, e estudou Letras na Universidade de Buenos Aires. Participou da Antologia Outsider I (Editorial Outsider) e em 2012 publicou a nouvelle “Manifestación de todo lo visible” (Editorial Simulcoop). Foi mecânico e borracheiro em El Palomar e atualmente trabalha como tradutor e cuida da sua pequena filha. Escreve em @fideosmanteca.