África em Conto: ‘Antes do Pôr do Sol’

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Foto de Virginia Maria Yunes – Divulgação Por dentro da África

Ed Mulato, Por dentro da África

“Quantas mãos amaciaram a massa do pão que o diabo amassou? – perguntou-se ela, enquanto enrolava o rocambole pedido pela tia.

Com este pensamento solto ao vento, deixou que sua mãe reabitasse suas lembranças quando ela, ainda criança, aprendia a cortar, em pequenos pedaços, a massa dos beliscões; ou a embolar o que seriam beijinhos.

Acabou o rocambole e foi bater a massa do bolo, enquanto a lembrança da mãe recortava, do nada, aquelas mãos pretas que ela sabia da avó, ensinando à filha, agora sua mãe, o ponto de bala.

Ainda divagando, deixou-se perder, tentando percorrer toda a sua ancestralidade, da qual nada sabia; então, por não saber, deixou enlevar pelo sonho, a fantasia, a impossibilidade: foi onde pode encontrar uma negra gorda, bunda larga exposta sob um pano ralo, cozinha estreita e quente, umbigo escondido sobre o fardo de lenha, fazendo quitutes para o “sinhô”, pai de muitos meninos brancos, irmãos de mulatos, entre os quais, a mulatinha de quem ela própria descendia.

Por que não poderia deixar sua mente ir além da senzala? – perguntou-se, atenta.

Terminou a massa do pão; enquanto esta descansava, foi cozinhar o cuscuz; olhou a canjica, ainda meio dura, fora do ponto; por isso, foi cozinhar a pamonha, enquanto o caldo do milho virava curau.

Deixou-se divagar para além da senzala; foi onde encontrou sua essência retinta retorcida no corpo daquela mulher que paria em pleno porão do navio; deixou que a dor do parto a desesperasse e, por isso, deixou de pensar.

Pintura de Johann Moritz Rugendas

Viu que o curau estava pronto, a pamonha estava pronta, a canjica esta pronta; só não estavam prontos, ainda, seu passado e o pão, que ainda precisa descansar; então, resolveu descansar-se tanto quanto o pão enquanto este crescia.

Cochilou; seus devaneios tornaram-se sonhos, e ela se viu aparentada com Nã Agontimé, a rainha jêje vendida ao Brasil, onde fundou a Casa das Minas; em seu sonho, Nã era a reencarnação da Rainha Kahina, que quase empacou a evolução do islã no norte africano.

Mas, não só: a sororidade se estendia pelas tantas candaces que haviam governado nações africanas, especialmente o Sudão. Mas, que jaziam esquecidas. Só? Estariam Nzinga e Sta. Ifigênia fora desse parentesco? De sorte que não!

Será que não? “Sabe-se lá”, o anjo preto do sonho falou. “Sabe-se lá…”

De onde veio tanta gente africana? Quanta gente, partida a linhagem, não se espalhou do outro lado do Atlântico? É possível afirmar que Dandara, voltando-se lá para os anos mil e quinhentos, não era tia-avô da mãe da tataravó de quinto grau da heroína Araminta Ross, depois chamada Harriet Tubman, que promoveu a fuga de mais de mil escravos norte-americanos, e que chegou a comandar soldados na Guerra de Secessão?

Harriet Tubman

-“A mil escravos eu dei fuga; teria dado a mais se, pelo menos, eles soubessem que eram escravos” – disse ela, quase ao fim da vida; merecida a estampa de sua cara preta nas notas de vinte dólares, não?

Levantou para ver se o pão já estava crescido e pronto para ser levado ao forno; quase; esperou mais um pouco, dividiu a massa, riscou cada pedaço de fora a fora, para ficar bonito. Colocou a massa no forno, e voltou a sonhar.

Seu sonho, agora que estava acordada, preencheu o ar da cozinha com as sombras de tanta gente enforcada, a ponto de ouvir-se o desespero cantado em Strange Fruits, porque eram aqueles corpos negros pendurados por cordas, os frutos colhidos no Mississipi, onde eram plantados pela Ku Klux Klan.

Estava enrolando os brigadeiros, tão negros quanto a cor de sua pele, quando rostos nítidos transbordaram da cena tétrica assim que Ruby Bridges, aos seis anos de idade apenas, se tornava a primeira negra a frequentar a William Frantz, escola até então segregada.

Ruby saindo da escola escoltada por policiais – Divulgação

Seus pais foram retaliados, seus avós foram retaliados, mas todos permaneceram firmes, e Ruby abriu o caminho depois trilhado por gente como Ângela Davis, bel hooks, Patrícia Hill Collins, Tony Morrison e tantas outras mais.

Olhando os brigadeiros, lembrou quando os levava para vender na escola, primeiro com muita vergonha; depois, com muito prazer, porque seria daquelas bolinhas pretas que tiraria o dinheiro para os cadernos e livros com que Mary Benedita podia lhe ensinar inglês.

Então, retornou: pensando no idioma tão norte-americano, voltou a questionar se todas aquelas ativistas negras, atuais, teriam pisado tais trilhas, se Ruby não houvesse aberto as picadas através do pântano do racismo e da intolerância; talvez; mas, apenas, talvez.

Ainda em meio ao inebriante cheiro do pão assando, eis que aparece rosto, carregando a típica rebeldia adolescente, de Claudette Colvin, grávida aos quinze anos, enfrentando a lei, porque prefere ser presa a ceder seu lugar a uma branca; talvez tenha sido ela a inspiração para que Rosa Parks, ainda ao fim daquele mesmo ano, repetisse o gesto, disparando a luta de King pelos direitos civis.

Rosa Parks – Divulgação

Foi tirando o pão do forno que Regina Anastácia percebeu só ter colocado mulheres norte-americanas em sua remontagem da ancestralidade; no entanto, não poderia Kimpa Vita ter sido irmã tanto dos ancestrais de Harriet Tubman quanto de Chica da Silva? Sabe-se lá: a árvore genealógica dos negros não tem qualquer certeza, além dos cadeados da senzala!

Regina, caminhando com seus doces para colocar nos balcões da tenda de venda, não conseguia se desgrudar daquele incômodo de não conhecer sua parentela; não seria descendente de Mãe Stela de Oxossi? Talvez não, porque Mãe Stela não tinha filhos, exceto os filhos-de-santo: apenas os sagrados, porque ela era homoafetiva.

Mãe Meninha, talvez? Aquela tão decantada yalorixá, rainha de Oxum, lá no Gantois? Será?

Será, afinal, que este desconhecimento não havia permitido, em sua parentela, algum incesto não percebido? Não estariam algumas de suas primas tão distantes que, de tão perto, não podiam mais ser reconhecidas?

Quis, sinceramente, pertencer à mesma linhagem que gerou Lélia Gonzales, que trouxe, no mesmo chão mineiro, tanto Chica da Silva quanto Carolina Maria de Jesus; ou, a liderança de Tereza de Benguela, talvez…

Carolina Maria de Jesus, em São Paulo, 1961 (Divulgação)

Colocou os doces no tabuleiro, e voltou para buscar os salgados; trouxe os rocamboles; depois, os pães, que ainda exalavam o cheiro imperioso dos fornos; tal cheiro, totalmente indomável como é a natureza dos cheiros, resolveu invadir a praça; foi quando ela notou aquelas duas mulheres que se aproximavam, embora a passos lentos.

Não soube porque tanto de sua atenção foi atraída para aqueles óculos escuros que enfeitavam o rosto de uma delas, que vinha, braços dados, com outra, que parecia, de certo modo, um tanto quanto amuada, mesmo sem estar triste ou aborrecida.

Aquela dos óculos falou:

– Cheiro tão bom! Será que você me venderia um pedaço?

– É claro, senhora; afinal, é isto o que eu faço aqui.

– Só que eu quero uma fatia bem do meio do pão. Quero me sentir envolvida pelo cheiro tão bom…

Regina estranhou um pouco, mas concordou. Foi então que recebeu o pedido mais estranho de sua vida.

– Moça, por favor, feche os olhos antes do cortar o pão.

Estupefata, olhos arregalados na alma embora cerrados no rosto, atendeu: afinal, o freguês sempre tem razão.

Tateando um pouco, achou o meio do pão, que partiu, exatamente naquele pedaço: o cheiro, então, resolveu fugir de lá, e encheu o espaço todo a sua volta, com um ímpeto e uma delicadeza, que Regina nunca havia pensado haver colocado, ela mesma, em uma simples massa de pão.

– Você é Regina Anastácia, não é? – perguntou a de óculos escuros, no exato momento em que Regina notou que falava com uma cega.

– Sou, sim, senhora – nem soube como o som, curto e surdo enroscou antes de escorrer para fora de sua garganta.

– Reconheci pelo cheiro de seu pão: é o mesmo cheiro em que tanto minha avó tanto me envolvia quando eu era criança! Deve ter envolvido você também!

Regina não sabe dizer como permaneceu em pé, quando suas pernas replicaram o torpor de encontrar ali, à sua frente, um pouco de sua parentela; da qual havia perdido qualquer contato, desde que fora roubada pelos brancos do jipe.

– Com certeza, Regina, você é minha irmã desaparecida! Ando à cata de minha gente, que sumiu. Descobri uma prima dançarina, a Rose Dusreis, que ensinava dança por aqui; mas, parece que ela morreu.

Recuperando-se do desmaio em pé, recém sofrido, Regina respondeu:

– Ehé; foi antes de ontem; eu estava lá; ela dançava, e simplesmente caiu; estava morta. É que parte de nossa parentela tem anemia falciforme, mas os doutores acham que é, apenas, alguma outra anemia; ou, então, leucemia; é assim que parte da gente morre. Acho que é isso; afinal, de minha parentela, pouco sei.

Então, sorriso incontrolável aberto sob as insubmissas lágrimas de alegria que enchiam o rosto das três, Regina falou, em pleno êxtase, eufórica, com grande efusão:

– Vamos entrar; precisamos conversar muito; mas, só depois de muito nos abraçar.

As duas mulheres, sorriso incontrolável no rosto, contornaram o balcão e, braços dados as três, se encaminharam para o interior da casa enquanto Regina chamava:

– Walquíria!

Explicou:

– É minha filha, meu orgulho, minha paixão: minha filha de múltiplo estupro, só porque eu me sentia muito mais menino que mulher; por isso, ela só tem uma mãe, embora tenha múltiplos e, graças da Deus, tão desconhecidos e odiados pais.

Walquíria respondeu:

– ´tou indo, mãe! – e veio, limpado as mãos no avental, onde ainda podiam ser vistas as marcas de gema de ovo.

O Sol se punha quando, frente a frente, se encontraram, no corredor: Walquíria vindo, mulheres entrando, cruzaram-se exatamente em frente ao grande espelho;

onde, apenas a cega viu o que ninguém ainda havia visto:

separadas, as mulheres negras são quase ninguém;

mas, juntas, são Conceição Evaristo.

Conceição Evaristo – Foto: Rafael Arbex/Folhapress