África do Sul: Primeiro casamento homossexual zulu estimula debate sobre o tema

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Tshepo (esquerda) e Thoba no dia do casamento - Arquivo Pessoal
Tshepo (esquerda) e Thoba no dia do casamento – Arquivo Pessoal

Natalia da Luz – Por dentro da África

Rio – Eles fazem parte do maior grupo étnico sul-africano descendente de um império comandado, no século XVIII, por Shakazulu. Grupo de guerreiros  no passado, eles mantêm de pé muitas de suas tradições, principalmente o rito do casamento. Pela primeira vez na história do povo, que corresponde a 22% da sociedade sul-africana, um casal homossexual se casou nos moldes tradicionais, provando que o respeito pode caminhar com a tradição.

– Os mais tradicionais disseram que o nosso casamento seria um insulto para a cultura zulu. Isso nunca havia sido feito anteriormente e eles não nos apoiaram. Mas o mundo nos deu bênçãos, enquanto os religiosos diziam que isso era pecado – contou em entrevista exclusiva ao Por dentro da África Thoba Sithole-Modisane.

Thoba conheceu o companheiro Tshepo, em Durban, na África do Sul. Depois de três anos sem qualquer contato, os sul-africanos de 27 anos se reencontraram em Johanesburgo. Eles ficaram amigos e, poucos meses depois, Tshepo pediu Thoba em casamento com um anel improvisado, feito de plástico, que ele guarda até hoje.

Tshepo (esquerda) e Thoba no dia do casamento - Arquivo Pessoal – Nós estamos juntos há dois anos e acompanhamos a reação dos outros. Dependendo do lugar onde você vive, principalmente no subúrbio, você vai encontrar pessoas mais fechadas. Próximo à cidade, a gente percebe um nível de aceitação maior – conta o analista de sistemas, destacando que ninguém de sua família teve qualquer rejeição e que todos, além de ajudarem, estiveram presentes na cerimônia realizada em abril deste ano.

Shakazulu: o herói dos zulus  

O zulu representa um grupo étnico de mais de 11 milhões de sul-africanos originários, principalmente, da província de Kwazulu Natal. Há também grupos menores espalhados pelos vizinhos Leshoto, Moçambique e Zimbábue.

Shakuzulu, o grande rei dos zulus que viveu entre 1787 e 1828, recebeu o nome de “parasita” (shaka, no idoma zulu) porque a mãe, de outra etnia, havia engravidado de um zulu que a desprezara. Por isso e pelo fato de a personalidade dela não ser tão amigável, todos na comunidade diziam que ela tinha um “shaka” no ventre. Após o nascimento, mãe e filho buscaram abrigo em outro reino. Ainda bem jovem, Shaka já despontava como um grande guerreiro, vencendo batalhas para o seu povo. O retorno à tribo que o expulsara aconteceu em 1818, quando o pai, chefe tribal, morreu. Shaka removeu o irmão que estava prestes a assumir o comando e passou a liderar um clã de 1300 pessoas e 300 guerreiros.

Historiadores relatam que, antes de Shaka, os zulus eram pequenos grupos espalhados e, depois dele, se tornaram um contingente muito mais expressivo. Ele chegou a reunir 40 mil soldados que combatiam dos 14 aos 60 anos. Em diversas pesquisas que mencionam a homossexualidade no continente, estudiosos destacam que há muitos relatos indicando que o guerreiro dos zulus era homossexual.

Cerimônia zulu 

Tshepo (esquerda) e Thoba no dia do casamento - Arquivo Pessoal Thoba explica que, no casamento zulu, o homem pede à família da mulher a sua mão em casamento. Se os pais concordarem, o noivo  deve pagar o lobola (espécie de dote africano), que significa dar aos pais algo de valor para ter a permissão de se casar com a filha.

– Um homem que não oferece nada aos pais da noiva, é como se não tivesse permissão para casar com ela. Isso frequentemente limita o número de esposas que um homem zulu pode ter – afirma, completando que a poligamia é permitida entre os zulus.

Em um casamento dentro da nação zulu todos da comunidade são convidados e qualquer um que queira pode ir à celebração. Para eles, é uma grande festa sem seguranças e nomes na porta.

– Primeiro, os noivos vão à igreja para uma cerimônia religiosa, onde a mulher usa roupa branca. Depois, o noivo se reúne em sua casa com outros homens, enquanto a mulher veste um modelo colorido e tradicional dos zulus! – explica Tshepo Modisane, que trabalha como administrador.

Tsepho e Thoba com a família no dia da cerimônia - Arquivo PessoalNo ritual, Tshepo conta que um boi é abatido pelo noivo como um símbolo de aceitar a noiva em sua casa. Em seguida, a noiva coloca dinheiro dentro do estômago do animal, e oferece presentes para a nova família como mais uma prova de que ela  faz parte do grupo.

– A festa após o casamento zulu é geralmente muito grande e barulhenta, e inclui competições de dança entre a família da noiva e a família do noivo – brinca Tshepo, completando que, no casamento deles, como não havia lobola, as famílias trocaram presentes entre elas, como acontece em todo o mundo.

Apesar de viverem na maior cidade do país, Johanesburgo, eles fizeram questão da cerimônia tradicional e escolheram Shakaville, coração de Kwazulu Natal, para celebrar um casamento que abriu portas para muitas discussões sobre a tradição e ritos sul-africanos.

Avanço e retrocesso nos direitos dos homossexuais 

Direitos dos homossexuais - Anistia Internacional
Direitos dos homossexuais – Anistia Internacional

A Constituição da África do Sul é considerada uma das mais avançadas em relação aos direitos dos homossexuais. Desde 1996, a primeira legislação pós-apartheid garante que os seus direitos sejam respeitados. Em 2006, o governo aprovou a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo, transformando o projeto de lei em uma realidade antes mesmo de muitos países europeus.

Em todo o continente africano, de acordo com a Anistia Internacional, há 38 países que criminalizam a homossexualidade. Nos últimos cinco anos, Burundi e Sudão do Sul implementaram leis criminalizando relacionamentos com pessoas do mesmo sexo. Uganda, Libéria e Nigéria aumentaram as punições para os crimes. Há ainda os mais radicais, onde a pena de morte é aplicada como na Mauritânia, Sudão e Somália.

Protestos em defesa dos direitos dos homossexuais na Cidade do Cabo - Divulgação
Protestos em defesa dos direitos dos homossexuais na Cidade do Cabo – Divulgação

– Há muitos desafios para os direitos dos gays na África, uma vez que ser gay ainda é visto como crime. As pessoas não têm educação e não compreendem o que é a comunidade LGBT. Precisamos mudar a mentalidade das pessoas para que compreendam a homossexualidade a partir da educação – conta Thoba, lamentando uma prática comum na África do Sul: a do estupro corretivo (quando mulheres são estupradas por um grupo com o propósito de transformar a sua orientação sexual).

Veja também: Sentença desumana em Uganda 

Apoio  aos homossexuais perseguidos 

Durante a nossa conversa, Tsepho disse que o casamento deles vem influenciando muita gente ao redor do continente. Isso porque muitas pessoas puderam superar o preconceito e enxergar o amor que existe nas comunidades gays das áreas rurais. Segundo ele, muitos jovens que pensavam em suicídio fortaleceram a sua esperança após tomarem ciência de sua união com Thoba.

– Eles nos aplaudiram pela bravura, mas isso não quer dizer que por causa de um casamento gay haverá aceitação na comunidade, o que ainda vai levar tempo… De qualquer forma, é preciso uma pessoa para dar um passo de coragem e enfraquecer esse estigma.

Thoba (esquerda) e Thsepo - Arquivo Pessoal Grande parte dos zulus pratica o cristianismo, mas há diferentes crenças que se comunicam com Deus através de seus ancestrais. A maioria das religiões considera a homossexualidade um pecado porque a sua aceitação enfraqueceria os valores familiares tradicionais essenciais para a nossa sociedade. Para os dois sul-africanos, isso confunde as crianças sobre os papéis de gênero e as expectativas da sociedade: somente um homem e uma mulher podem procriar.

– O estilo de vida gay não é algo a ser encorajado. Uma série de pesquisas mostra que essa união leva a uma expectativa de vida conturbada, distúrbios psicológicos e outros problemas. (Essa não é uma consequência da orientação sexual, da união homoafetiva, mas de toda a repressão e perseguição que os homossexuais sofrem na África, lembrando que, em muitas regiões, eles são obrigados a viver em guetos, escondidos da comunidade e da polícia). De qualquer forma, precisamos respeitar, compreender e aceitar a escolha do outro, seja na África ou em qualquer lugar do mundo – completou Thoba.

Por dentro da África