Kassoum Diémé, Por dentro da África
Dias se passaram e, numa bela manhã de folga, a Dalni começou a pensar sobre as cores. Havia um bimestre que ela pesquisava sobre raça em Madeirâge por esta ser associada à cor, mas não só a esta. Ela descobriu que segundo alguns dicionários o substantivo feminino cor é: 1. a sensação que a luz provoca no órgão de visão humana, e que depende, primordialmente, do comprimento de onda das radiações. [contrapõe-se ao branco que é a síntese das radiações, e ao preto, que é a ausência de cor.] 2. Qualquer cor, exceto o branco, o preto e o cinzento. Estas são umas das concepções oficiais que se tem sobre a cor, mas que são literalmente distorcidas na sua aplicação social.
Dalni costumava dizer que: preto não é escuro ao passo que branco não é transparente e que o escuro e o transparente podem ser encontrados em qualquer cor. Dizia também que aquilo poderia parecer estranho para muitos que, aliás, apontariam como possíveis motivos de tal afirmação, a vergonha de ser preta, o louco desejo de deixar de sê-lo. Diante desta situação, se esforçava para levar o mundo a entender que seu pensamento estava muito distante de promover algum tipo de afinidade com o complexo de inferioridade ou de superioridade em uma ou outra raça e que era relevante fazer uma reflexão a respeito das cores. Desde a idade tenra, Dalni acreditava que em todos os lugares as crianças aprendiam bem cedo que, por exemplo, verde claro e verde escuro são todos verdes apesar da diferença de tom entre eles, que a cor amarela pode ser clara ou escura. Isso vale para a cor azul, branca, marrom, preta, roxa, rosa, vermelha, dentre outras.
Descobriu que a monocromia normalmente junta tons do mais claro ao mais escuro de uma mesma cor, diferentemente da policromia. Sendo assim, ficou fácil para ela, com vinte e sete anos de idade, a dissociação da cor preta com o escuro que podia ser encontrado em todas as cores. Portanto, ela defendia que a pessoa de cor preta não era uma de cor branca nem amarela escurecidas. Salientava consequentemente que o preto não se deve confundir com o branco ou amarelo escuro. Segundo a teoria evolucionista, não poder-se-ia dizer que todas as demais raças são por essência negras? Perguntou-se.
Hoje, ela conta que aprendeu erroneamente, quando criança, que branco e preto eram cores. Quando adulto, se deu conta que a maioria dos adultos seguia cometendo o mesmo erro, se é que era mesmo um erro. Ficava meio confusa com este abismo de sentidos entre a definição acadêmica, oficial e a definição social do que vinha a ser “branco” e “preto”. Para a sociedade na qual evoluiu, branco e preto eram de fato cores nos objetos. No entanto, em determinados casos, a mesma sociedade enquadrava “preto” e “branco” na definição dos dicionários. As telas de televisões que só deixavam aparecer imagens nestas duas cores não eram, na ótica dos nossos compatriotas, de televisões coloridas. Mas, quando se tratava da cor branca e preta na pele das pessoas ou da ausência de cor nas coisas, a história muda completamente.
Depois de centenas de anos de convívio das três raças, nós ainda dizíamos, sob a força da aprendizagem, que as pessoas brancas eram pessoas sem cor, ao passo que as demais, e principalmente os negros, eram pessoas de cor. Esta denominação era genérica, mas bastante confusa na cabeça da Dalni, justamente por não fazer sentido algum para ela. Por isso, ao mesmo tempo que ela se fazia a seguinte pergunta: Por que a cor branca, de repente, deixou de ser uma das cores que tem a pele de muitos dentre nós madeirinos? – também dizia que se conhecesse uma gestante sem cor pedir-lhe-ia para não fazer ecografia diante da evidência do sua “transparência”.
A afirmação da relação preto/escuro e branco/transparente estava tão difusa, tanto em Madeirâge quanto na Ilha dos Solitários, que a aguardente pura dos sossegados era apelidada de a branquinha. A Ilha dos Solitários fazia fronteira com Madeirâge no Mar da Paz. Tomar uma branquinha, para os sossegados, como eram conhecidos os habitantes da Ilha dos Solitários, portanto, era beber uma aguardente. Dalni, que até então não conheceu uma aguardente branca, continuou salientando que a aguardente era transparente, não amarela nem branca, nem preta, nem verde, nem azul.
No dia em que ela tiver uma destas cores, a esta será associada, afirmava. A menina tinha convicção de que a transparência da aguardente ou de qualquer outro líquido lhe permitiria adotar qualquer cor de outro líquido colorido com o qual viesse a ser misturada. Diante deste pensamento, ela afirmava que a cor branca sempre foi uma das cores. No entanto, salientou que ora inconsciente ora conscientemente, esta cor era associada à ausência de cor. Esta associação era reveladora de um grande desejo de conquistar, de forma ilusória, a pureza. Associar o escuro à cor preta e o transparente à cor branca se justifica aparentemente na base do famoso “é um modo de falar”. Este modo de falar não é tão ingênuo quanto se pensa, criticava a Dalni.
Portanto, Dalni dizia que não existe associação inocente. A aparente associação ingênua da cor preta ao escuro, independentemente do grau de tonalidade, é um desejo, provavelmente inconsciente e profundo, de invisibilizar os negros, em geral, considerados bem ou pouco escuros. Tal associação não passa de um delírio social entre os sossegados, pois na prática o escuro não é necessariamente preto. Os negros são negros dia e noite. Um verde escuro mantém a mesma cor dia e noite, o que não é da natureza dos ambientes considerados escuros, costumava ponderar a vendedora e pesquisadora Dalni.
Para concluir sua reflexão ela ainda lembrou que se falava muito na sua época que das cores não se discutia por causa da impossibilidade de garantir um consenso sobre a mais bela dentre elas. Convidou então para pensar a respeito da seguinte pergunta: Como explicar a subestima consensual, a desconfiança consensual e a discriminação para com os negros se das cores não se discute?