Por Marcos Augusto Ferreira, Por dentro da África
Santos – Desde agosto, Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos passeava incógnito pela cidade de Santos, no litoral paulista, ao lado da mulher Filomena. Ao contrário dos tempos da luta armada pela independência de Angola, embrenhado na floresta, desta vez era o nome próprio que o mantinha ´escondido` entre a população. E foi justamente o codinome de guerrilheiro que revelou seu paradeiro, ao menos para os interessados em literatura.
Pepetela participou, dia 23 de setembro, da 8ª Tarrafa Literária, evento promovido pela editora santista Realejo Livros. Dividiu o palco com o paulista Julián Fucks, em um debate intitulado ´Dois países, uma mesma língua`, mediado pelo jornalista Rodrigo Savazoni. No palco, logo após ser apresentado, ironizou, ao ver revelado seu plano de permanecer em Santos até dezembro: “Agora, já não sei mais, porque já não estou clandestino”.
Conversou sobre política, literatura, leu trecho do livro ´Mayombe` e confessou a tentativa de, aos 14 anos, escrever um romance policial: “Era sobre uma atriz de cinema assassinada. Não terminei. Faltou a última página, de modo que não sei quem é o assassino”. Provocou risos na plateia que lotava o Teatro Guarany, patrimônio restaurado (é de 1882), no centro da cidade.
Ainda bem que não desistiu da literatura e, desde o início dos anos 1970, já são mais de duas dezenas de livros – Pepetela completa 75 anos, dia 29 de outubro (nasceu em Benguela, litoral angolano), e tem suas obras lançadas e relançadas no Brasil pela LeYa.
Não é a primeira visita que o casal faz ao país. Porém, desta vez, decidiram passar uma temporada em Santos. O motivo, diz ele, é a neta, Lwini, de cinco anos, que mora na capital paulista com a mãe, Lueji (nome de rainha, Lweji, que também dá título a um de seus livros, ´Lueji, O nascimento de um Império`).
Nos bastidores da Tarrafa Literária, Filomena me conta que não quiseram ficar em São Paulo, porque “parece com Luanda, demora-se muito para andar poucos quilômetros”. Em Santos, estão próximos (cerca de 70 Km), podem curtir a praia com Lwini ou subir a serra para, em cerca de uma hora e meia (em ônibus e metrô), encontrá-la na Vila Mariana.
Filomena diz, ainda, que está estranhando o tempo “um pouco frio” e chuvoso.
Mesmo assim, “aqui parece melhor”, pois Luanda é “muito quente e úmida, um calor que gruda na gente”. Informo que o calor santista é semelhante, muito forte e úmido, grudento. Deram sorte de pegar um período mais ameno, inclusive, com chuvas extemporâneas e ressacas que fazem o mar avançar pela avenida da orla. “Vamos ficar até dezembro, vamos ver esse calor”, garante ela.
Antes de conversar com o público, o escritor angolano me concedeu uns minutos de prosa, cujos principais trechos seguem abaixo. Dias depois, o reencontrei na livraria Realejo, ao lado do editor José Luiz Tahan e do Savazoni. O tema da conversa girou em torno de tudo um pouco, papo de boteco, entre cervejas e livros.
Falamos sobre futebol e Pepetela contou que jogou muito, inclusive ao lado do companheiro de luta no Movimento Popular pela Libertação de Angola (MPLA) e atual presidente (está há 36 anos no poder) angolano, José Eduardo Santos: “Acontecia de nos juntarmos num lugar calmo, que não havia problema, e o terreno era mais plano. Depois da independência, jogamos futsal. Havia duas equipes das forças armadas, até que veio a tentativa de golpe de estado e não houve mais clima”.
Nos contou, também, sobre um dos divertidos encontros com João Ubaldo. Foi em Paris, quando os dois pararam junto a uma livraria – “ideia do Ubaldo” – e ali ficaram por alguns minutos, até que o baiano decretou: “Você já viu, dois grandes escritores de língua portuguesa aqui parados e ninguém vem pedir autógrafo? Esses franceses são uns incultos, mesmo.”
Pepetela e Filomena continuam a transitar tranquilamente pelas ruas de Santos, onde ficam até dezembro. Além de idas ao encontro de Lwini, na capital, pretendem passar uns dias no Rio de Janeiro.
O senhor participa de um debate literário, cujo tema é ‘Dois autores, uma mesma língua’. Há uma mesma língua portuguesa, apesar das semelhanças?
Bem, eu creio que a língua é uma, embora haja mudanças consideráveis, sobretudo a língua falada aqui no Brasil e em Portugal. Mas ainda não há uma segunda língua chamada brasileira. Pode estar a caminho, mas por enquanto ainda é a mesma.
A reforma ortográfica ajuda, então, nesse sentido?
Nem gosto de falar desse assunto, porque descobri que não sabia escrever em português. Depois de muitos livros, agora corrigem tudo o que escrevo, tenho que corrigir, de maneira que ficou complicado.
Nem o corretor automático auxilia?
Pois é, o corretor automático não é assim tão seguro e aí, pode haver problemas, no Brasil ou em outros países, porque apesar de ser a língua portuguesa, há diferenças.
No continente africano, há uma diversidade linguística enorme: línguas europeias (português, inglês e francês), árabe, suaíli, kikuyu, entre tantas outras. De alguma forma, essa diversidade se relaciona por intermédio da literatura? É possível falar em literatura africana?
Há várias literaturas africanas, evidentemente, e esse relacionamento se faz, sobretudo, entre os escritores da mesma língua ou que usam a mesma língua. Continua a haver diferenciação entre os anglófonos, os francófonos… e nós, que somos poucos, lá pelo meio.
Ultimamente, eu não tenho seguido muito, mas havia regularmente reunião de escritores africanos, nas diferentes áreas: na África do Norte, onde podem escrever tanto em árabe quanto em francês, e os que escrevem em francês, inglês, português. Isso dependia de pessoas que estavam em um ou outro cargo importante. Por exemplo, lembro, num momento dado, havia um escritor congolês, Hanri Lopès, que era diretor geral adjunto da Unesco. Ele aproveitava essa posição para promover encontros de escritores africanos. Eu creio que havia mais encontros de escritores africanos 20 anos atrás do que há hoje. Acho que está cada vez mais relativo à língua que se fala.
Uma espécie de bloco regional literário?
Em termos linguísticos, na literatura, sim. O que acontece, também, é que, para serem editados, os escritores africanos são publicados nas antigas capitais coloniais, Paris, Londres ou Lisboa. Há muitos países africanos que sequer têm capacidade de edição. Isso faz com que os escritores fiquem bastante ligados à antiga metrópole colonial. Isso é um problema que existe em África, até mesmo acontece com as comunicações: muitas vezes, para ir de um país a outro, por avião, é preciso ir para a Europa, para depois voltar ao país que se deseja em África. A África continua um pouco retalhada pela antiga colonização.
Por falar em colonização, o senhor foi guerrilheiro pelo MPLA (Movimento Popular pela Libertação de Angola) e assumiu cargo no governo do MPLA, após a independência. Como vê o fato de o presidente José Eduardo dos Santos, também do MPLA, ser um dos governantes africanos que estão há mais de 30 anos no poder (está há 36 anos)?
Realmente, as situações são diferentes de país para país, cada um tem a sua história, portanto, a explicação para certos fatos não é única. No caso de Angola, é preciso ver que teve uma guerra civil que durou muito tempo. O país estava todo dividido, em guerra, não havia possibilidade de ter uma rotatividade que há em outros países. Só depois do fim da guerra civil é que se pode falar no estabelecimento, digamos, de um regime democrático, que ainda está muito tropeçante, com muitas dificuldades. Uma delas, por exemplo, é essa da substituição normal dos políticos e das lideranças, não só ao nível do presidente da República, mas dos organismos de governo etc.
A passagem de geração para geração ainda traz algumas dificuldades, exatamente que vêm desse passado. Aí, é claro, o presidente, ele próprio diz que vai deixar de ser candidato, então, vamos a ver, quando se faz eleição, se vai haver essa renovação. (Observação: a guerra começou logo após a independência, em 1975, e prosseguiu até 2002, com pequenos intervalos.) – Pepetela, assim como dezenas de intelectuais angolanos, escreveu ao presidente pedindo libertação dos ativistas que ficaram um ano na prisão acusados de golpe de Estado. Saiba mais do caso aqui
Do ponto de vista da literatura, há algum movimento novo em Angola, que atue também dentro desse processo político que o senhor acaba de descrever?
Hoje em dia, não sei bem. Há novos escritores e algumas outras vozes diferentes. Mas ainda há remanescentes de uma geração anterior. Depois, uma faixa intermediária, de escritores que já têm 40/50 anos, como Lupito Feijó, que está em São Paulo; uma geração, sobretudo, de poetas, como Joares Mendonça. E depois, uma geração mais nova ainda, jovens com 30/40 anos e que o nome mais conhecido é Ondjak, que vive mais aqui no Brasil que em Angola. Mas houve, em Angola, uma certa despolitização da literatura, sim.
Há uma necessidade de sair do país para se afirmar em um cenário literário?
Não, não forçosamente. São opções mais pessoais. Mas o grande problema não é estar a sair do país. O grande problema é sair da língua portuguesa, ser traduzido.
Por que a língua portuguesa é difícil para tradução ou porque não tem o peso no mercado como a língua inglesa, por exemplo?
Exatamente porque não tem esse peso no mercado. É preciso sempre procurar a tradução, aí sim, quem está fora talvez tenha mais facilidade do que quem está dentro. Agora, para ser publicado, já é possível publicar sem sair do país. Há gráficas e editoras. Mas houve um período em que era preciso ser editado fora, primeiro.
O senhor vive em Luanda, atualmente. Mas viveu muitos anos na Europa e na Argélia, África do Norte, por exemplo. Mesmo assim, Luanda e Angola de uma maneira geral, são cenários para sua literatura, mesmo quando esteva fora…
Angola, sim, mas Luanda propriamente, não. Luanda eu só conheci mais tarde. Nos primeiros livros, eu não tinha referências de Luanda. Só conheci Luanda em 1974, quando terminou a luta pela independência.
A vida em Luanda tem dado base para algum novo livro?
Cada vez mais ela pesa, cada vez mais os meus livros são centrados em Luanda, fatalmente, porque é onde se vive, é a realidade que se conhece, está todos os dias ali na porta.
Após vários romances ou ficção, como queira, no ano passado, o senhor lançou um livro de crônicas (´Crônicas maldispostas` – 2015). Foi um exercício novo estimulado por essa realidade de Luanda ou já havia experiência nesse segmento?
Não é relativamente recente. Eu já tinha um livro de crônicas, com crônicas que tinham sido publicadas em um jornal português, nos anos 90. Aí, sim, foi a primeira vez que eu estava tentando escrever crônicas. Embora, eu não sei bem se eu escrevo crônicas. Esse a que se refere é mais recente, são crônicas escritas para uma revista angolana e, portanto, há uma diferença entre um livro e outro. O primeiro livro é escrito para um público estrangeiro, não forçosamente que conhecia Angola, porque era um jornal português, então, a descrição da realidade é completamente diferente. Esse, agora, o meu publico alvo é o angolano, porque é uma revista de Angola, embora seja distribuída para outros países de língua portuguesa. Aí, já não tenho essa preocupação de escrever para estrangeiros.
Há uma particularidade na sua escrita. Em livros como ‘Parábola do Cágado Velho’ e ‘Mayombe’, por exemplo, nos quais personagens não têm nome próprio. Em ‘Mayombe’, há o Comandante, o Teoria, que é professor, Verdade, Lutamos e Comissário de Operações, entre outros. Em ‘Cágado Velho’, o personagem principal chama-se Ulume, que é homem na língua quimbundo. Que espécie de artifício literário é esse?
No caso do ‘Mayombe’, como era um grupo de guerrilheiros, os guerrilheiros têm nome de guerra, assim como tenho Pepetela, que não é meu nome…
Pepetela significa pestana em quimbundo, certo? E o senhor tem Pestana no nome…
Sim, é uma tradução. Mas os guerrilheiros têm os nomes de guerras e são assim que os conhecemos, por isso o ‘Mayombe’ tem isso. No caso do ‘Cágado Velho’, com o nome dos personagens, eu tentei fazer um percurso pelo país. Cada um tem o nome de uma das regiões do país. Era uma invocação. Esse livro é uma invocação à procura de uma paz, que só veio seis anos depois, mas o feitiço funcionou. Era uma espécie de feitiço.(Nota: o livro foi escrito em 1996.)
Saiba mais: Angolanidade e construção das identidades angolanas
Há, ali, também, um conflito entre tradição e modernidade. O senhor ainda sente esse conflito em Luanda, por exemplo?
Em Luanda, não, cada vez menos, porque está se tornando uma metrópole internacional. Mas eu acho que existe na sociedade angolana esse problema entre a tradição e a modernidade que nunca foi resolvido. Nem sequer é debatido. Por isso que, em alguns livros, eu insisto um pouco nisso, para chamar a atenção. Não busco, necessariamente, dar solução, mas apontar problemas.