Ademir Barros dos Santos, Por dentro da África
Sorocaba – Corria 1444 quando a África sofreu o primeiro e frágil ataque: é quando Portugal envia frágeis caravelas à foz do rio Senegal e, de lá, extrai pouco mais de duzentos homens livres, condenando-os, sem culpa ou julgamento, à escravidão perpétua.
Afasta-os de sua querida natureza, com a qual estão perfeitamente integrados, em harmonia e respeito; também os afasta da própria vida, que os portugueses não respeitam, pois lhes arrancam toda e qualquer referência, bem como a individualidade e a dignidade.
Pequenos ataques, persistentes como pernilongos, nem sempre esporádicos, continuam por dez anos; então o Papa, do alto das Sandálias Pedro, que julga calçar, coberto pelo manto da onipotência que, acredita, Deus lhe confere, confirma e aprova o ato e, como representante de Deus na Terra, edita a bula que concede ao Infante D. Henrique, o Navegador – católico fervoroso que se cobre com o manto de Cristo, de quem simula as dores com o uso do cilício envolto no ventre e nas coxas – o direito de posse e propriedade sobre todas as terras e povos novos que pudesse alcançar.
Assim o Papa, dono da Terra, concede a África ao dono do sonho; ao piedoso infante, à época em que o Novo Mundo ainda não havia sido descoberto, resta dominar a África, à qual não se permite um ai que não ecoe a pancada da chibata!
Chibata esta que se constitui no único pagamento devido à farta e forte mão-de-obra que a África, embora ferida, produz e dispõe; à África, tão grande, o ferimento, tão leve, não incomoda: sequer reage.
Por este tempo, descobre-se a América: Portugal chega às férteis terras do Brasil. Férteis, se plantadas.
Mas quem plantará? Portugueses, por certo, não. Portugal não dispunha de mão-de-obra, visto que vinha de ser assolado por diversos e seguidos surtos de peste: sua combalida população de jovens, se não embarca na aventura das Grandes Navegações, espera a peste que, por certo, a levará.
Quem plantará? Decerto a mesma mão-de-obra forte e farta que a África produz: afinal, basta colhê-los e chibatá-los; afinal, é fácil mantê-los: mal passados cem anos da primeira colheita, e dez por cento da população de Lisboa é formada por escravos…!!!
A África, novamente, não reage: talvez só quisesse socorrer ao combalido Portugal, com um pouco do muito que produz; quem sabe Portugal, agora dono de tão fartas e férteis terras, logo se acostume ao trabalho e ao gosto pelo trato delas, e não mais colete seus filhos, que para lá vão, imigrantes involuntários, mas carregam consigo sua cultura, escondida em sua religiosidade? Quem sabe seus filhos ensinem aos portugueses o prazer que a Natureza, onde moram seus orixás, gratuitamente dá?
Não sabia, a África generosa, que outros povos, irmãos de Portugal, já agora lhe cobiçavam a seara, de onde se coletam negros fortes, a quem só se deve, como pagamento, o rangido da chibata; irmãos que, de imediato, buscam coletar a sua parte e, juntos, retiram dez milhões de negros das mesmas fontes.
Mas, os negros transplantados não compartilham das ilusões de sua mãe do outro lado do oceano, e não estão felizes: já no início da escravidão brasileira, fogem, e fundam Palmares – pequena África do Nordeste – que durará por quase cem anos…!
Não estariam ali, ao repetir sua organização primeira e seu amor à terra, tentando ensinar aos portugueses aquilo que a Mãe lhes ensinara? Afinal, sabiam eles, basta acarinhar a Natureza, e ela tudo dá!
Mas, não: ao colonizador, bem melhor a escravidão, com seu salário de violência e morte. Afinal, submissos são os negros que, se fogem, logo são mortos ou substituídos por outros, que a África produz em profusão: por que mudar?
Lá, do outro lado do Atlântico, o ferimento de 1444 aumenta: a África, agredida, invadida, enfraquecida, já agora não consegue mais se defender… anticorpos combalidos, e o verme da escravidão lhe consome as entranhas, roendo-a a partir do Atlântico, e espalhando cancros pelo corpo, ao formar fortalezas para a exportação de escravos.
A cultura está aviltada; a sociedade está em guerra.
Enquanto isto, na nova margem do Oceano, mal descoberta, está formada a sociedade dos párias: não se pode ler, escrever, praticar a religião.
Mas, a religião africana é sua cultura e, se precisa esconder-se, esconde-se sob o manto dos santos da religião oficial… e ali permanece, disfarçada, escondida; mas forte, atuante, e não permite que se esqueça onde nasceu: na África.
Séculos se passam; criam-se quilombos; a resistência aumenta; o inconformismo percorre as veias da sociedade e da política brasileira, que se quer livrar do domínio europeu.
1822: livre de Portugal, o Brasil vê sua independência reconhecida, primeiramente, por muçulmanos de África, aqui chamados malês; mas quer e necessita do reconhecimento do novo estado político perante a Inglaterra: esta, maior potência econômica e política da época, exige que o Brasil encerre a coleta desbragada de africanos, o que é obtido com a promessa de extinção do tráfico, em 1830.
O Acordo é inevitável; mas só serve para inglês ver: o tráfico permanece firme e forte por mais vinte anos, e vai até 1850.
Trinta e cinco anos depois, as potências européias resolvem retalhar a África entre si: “se não é mais possível o tráfico, e não é mais possível trazer escravos, faça-mo-los escravos por lá”, decidem os europeus… e aquela ferida, aberta em 1444, corrói continuamente o resto do continente; e ainda não cicatrizou.
Veja mais: “Por que nós?” Uma pesquisa de Ademir Barros dos Santos
Aqui, no Brasil, revoltas: Cabanos, Balaiada, Alfaiates, Malês…
Final do século XIX: já por duas vezes o Brasil, último país americano a viver a sociedade escravagista, promulgou leis que prometem o fim da escravidão: Ventre Livre e Sexagenários, que de nada serviram; a escravidão prossegue.
Mas, aos negros brasileiros, já agora, só interessa a liberdade: Francisco José do Nascimento, negro pobre, navegante, lidera o boicote ao porto do Ceará que, por fim, se vê obrigado a abolir a escravidão: era 25 de março de 1884.
Por fim, 1888 traz consigo a Lei Áurea; dá-se fim à escravidão legal; inicia-se a escravidão social.
Negros, de quem se retirara até a dignidade; que aprenderam a ver, em sua religião, repositório de sua cultura, uma infâmia danosa ao corpo e à alma; negros sem referência e analfabetos, enfim são libertos, e atirados à sociedade hostil, sem nenhuma transição: então, vêem-se repentinamente livres, para ocupar o lugar reservado à escória da sociedade…
Logo após e no mesmo ano, diante de tanto negro livre e sem trabalho regular, à vista do volume da imigração estrangeira, que o substitui como mão de obra, a Lei de Vadiagem permite à polícia deter quem não comprove estar trabalhando!!!
Cem anos se passam: no Brasil, a escravidão física está extinta, mas a marginalização está implantada; se as cidades se formaram em torno das casas urbanas dos senhores escravistas, aos escravos restou a periferia, onde até hoje se amontoam.
Se a educação, ainda de cunho jesuítico, lhes foi negada nos primeiros tempos, por escravos, hoje o é por pobres.
Se a ascensão social, no princípio, lhes foi negada por coletados e importados com o fim único de se tornarem párias, hoje o é por descendentes de párias econômico-sociais.
Quanto à África, ainda doente, já convalesce: é certo que lá ainda estão as feridas e seqüelas que mais de quinhentos anos de exploração e de colheita desregrada de tudo o que por lá se produz, deixaram. Mas convalesce.
Começa a acordar da letargia que lhe foi imposta pelo jugo da chibata. Também acorda e convalesce o negro brasileiro, já não mais envergonhado de sua cor, marca de escravo que a Europa lhe colocou na pele.
Já podemos afirmar que a alma do negro é livre, tanto quanto sua energia, e que os escravodescendentes não buscam separação, integração ou reparação, mas, sim, simplesmente o reconhecimento e o respeito a que têm direito.
Isto porque, ao final, só resta uma certeza: durante toda esta estória, a negra consciência negra permaneceu, sempre, imaculadamente, limpa.
* Coordenador da Câmara de Preservação Cultural do
Núcleo de Cultura Afro-Brasileira – Nucab – da
Universidade de Sorocaba – Uniso.