Por Fabiana Gelard, Por dentro da África
Certa vez, Rubem Alves, psicanalista e educador brasileiro, escreveu um texto chamado “Ostra feliz não faz pérola”, onde ele contava que, no fundo do mar, viviam muitas ostras felizes e sabia-se que assim elas estavam porque saía de suas conchas lindas músicas. Mas, havia uma única ostra entre elas que não era feliz. A ostra triste emitia um som triste e melancólico, vivia isolada das demais, sofrendo sozinha.
Todas as ostras felizes zombavam dela, dizendo que o que ela tinha era depressão, não sabiam que, na verdade, a triste ostra sofria de dor, um grão de areia cortava sua carne, provocando imensa dor. Como não podia expelir o minúsculo grão, a triste ostra produzia uma substância lisa, brilhante e redonda: uma pérola. Assim era a vida de Nina Simone: cheia de pequenos grãos que a fazia produzir magníficas pérolas.
O documentário “What happened, Miss Simone?”, produzido pela experiente Liz Garbus, teve sua estreia mundial em 22/01/2015. Atualmente, é exibido no Brasil pela Netflix. Em aproximadamente 100 minutos, temos uma noção do que foi a vida da militante do movimento negro americano e percussora do jazz e do blues. Não se pode pensar em Nina Simone separada de sua ação política, sua música foi, e continua sendo, a expressão política do povo negro americano.
Nina nasceu Eunice Waymon, em 21 de Fevereiro de 1933, na cidade de Tryon, Carolina do Norte. Sonhava em ser a primeira pianista clássica negra dos Estados Unidos. Para tanto, chegava a estudar piano cerca de 8 horas por dia. Aos 20 anos, após cursar a Julliard School e não conseguir dar continuidade aos estudos começou a trabalhar e adotou, pela primeira vez, o nome Nina Simone.
A carreira de Simone no jazz a distanciou do seu sonho inicial. Por várias vezes ao longo do filme vemos citações dela sobre a sua frustração por não mais tocar piano clássico. No jazz e no blues, sua carreia crescia a cada dia e com a música “I Loves you Porgy”, ela passou a ser disputada por casas de shows e programas de televisão. Sua música sempre refletiu sua realidade de afro-americana, mas somente após o massacre de 1963, no Alabama, onde quatro crianças foram assassinadas e após o assassinato do ativista Medgard Ever, Nina se tornou efetivamente uma ativista pelos direitos civis dos negros americanos.
Ao escrever “Mississippi Goddam”, ela se enveredou pelas lutas políticas juntamente com os militantes Martin Luther King, Malcon X, Lorraine Hasberry. Nina transformou sua música em sua arma política de enfrentamento do racismo presente no território americano. Defendia a luta armada, dizendo que se fosse necessário deveria se pagar violência com violência, “escopeta com escopeta”, o que ia de encontro com o que era defendido por seu amigo King. Sua carreira passou a ser boicotada, tendo seus concertos e apresentações reduzidos sob a desculpa de suas músicas serem políticas demais.
Guerreira nas ruas, em casa, Nina era constantemente agredida por seu marido Andy. Andrew Stroud foi um ex-policial da divisão de narcóticos que ao se casar com Nina passou a administrar sua carreia e sua vida. Segundo alguns amigos, Andy fez muito bem a carreira de Simone, chegando a pagar para que ela tocasse no Carnegie Hall, importante casa de espetáculo que Nina sonhava em entrar para tocar seu piano clássico.
Por vezes, ela chegou a escrever que Andy a fazia trabalhar demais, comparando-se com um cavalo de corridas. As constantes agressões físicas eram descritas em seus diários com naturalidade. Ela dizia que não ia se separar do marido por amá-lo e por acreditar no seu amor.
Outro grande golpe, ou como diria nosso já citado Rubem Alves, um outro grão de areia, para Miss Simone foi o assassinato de Martin Luther King, em 1968. Nina Simone recorreu mais uma vez à música para expressar sua dor e compôs “Why? The King of Love is Dead”, cantando-a de maneira emocionada no enterro do amigo.
A morte de King foi o estopim para a cantora largar sua filha, seu marido, sua carreira e sua luta, indo morar na Libéria – país africano fundado por ex-escravos afro-americanos. Lá, ela disse ter conhecido Deus e, enfim, viver a liberdade que sempre procurou. Após, foi viver na França, onde foi diagnosticada com transtorno de bipolaridade, tomando forte medicação para controlar seus desníveis de humor que, segundo a filha, à longo prazo deixou-a com sequelas.
O filme biográfico relata vários momentos de extrema violência relatados pela filha e pelos amigos. Segundo Lisa, quando foi morar com sua mãe na Libéria, sua mãe batia nela violentamente. Seus amigos relatavam que Nina recusava-se a continuar seus shows caso ouvisse a voz de alguém na plateia.
As marcas da dominação e do racismo sofridas por todos os negros e negras americanos imprimem no corpo simbólico ( Liane Zink, 2008) de Nina uma absurda violência, o que não justifica, mas explica, a aceitação quanto às agressões vividas pelo marido, assim como, as praticadas contra sua filha e algumas outras pessoas.
“What happened, miss Simone?”, deixou-me como um sentimento de indignação e impotência, assim como, com muitos questionamentos. Ao longo de sua vida, Nina Simone, abandonou sonhos, tornou-se outra pessoa, lutou, perdeu amigos, não viu êxito na sua luta! E ela era Nina Simone…
Quantos negros e negros sofrem todos os dias, são agredidos, são diminuídos, vêem esvaírem-se suas lutas, vêem-se dominados por um sistema que minimiza qualquer possibilidade de ascensão negra? No Brasil, ou nos Estados Unidos de Nina, a maior parte dos assassinatos cometidos pela polícia extermina jovens negros; a saúde e a educação; a segurança; o padrão estético, privilegiam um grupo especifico de pessoas no qual os negros e negras não estão incluídos.
Jamais poderei compreender com exatidão o que Nina passou, mas perceber os efeitos psicológicos devastadores do racismo na vida de negros e negras de qualquer parte do mundo deveria ser para qualquer pessoa um soco no estômago.
Numa época onde o Oscar mais uma vez reflete um padrão de branquitude, o filme sobre a vida de Nina Simone, que concorre ao Oscar 2016 na categoria Documentário é negligenciado pela mídia, antes mesmo do resultado final do Oscar, em detrimento do filme sobre a vida de outra cantora mais jovem e sem relevância política e comprometimento como os processos sociais.
Ainda usando Rubem Alves, Nina nos deu muitas pérolas a partir das dores provocadas pelos grãos de areia que cortavam sua carne. Recomendo “What happened, Miss Simone?” não somente como um documentário bem produzido, mas como um excelente material a ser trabalhado em sala de aula por todas educadoras e todos educadores comprometidos com a superação do racismo e com uma educação que supere as barreiras raciais.
FONTES:
What, Happened, Miss Nina?
ZINK,Liane in Os efeitos psicossociais do racismo /[Edição e entrevistas de Fernanda Pompeu] – São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: Instituto AMMA Psique e Negritude, 2008.
http://www.afreaka.com.br/notas/nina-simone-e-musica-como-expressao-dos-direitos-civis/
ALVES, Rubem. Ostra feliz não faz pérola. São Paulo : Editora Planeta do Brasil, 2008.
Fabiana Gelard é aluna da UNILAB, campus do Malês (São Francisco do Conde)