Por Ulrich Schiefer, Por dentro da África
(Artigo produzido em parceria com o Instituto Universitário de Lisboa)
Lisboa – Porque falamos de Sociedades Agrárias Africanas, e não de sociedades camponesas, de sociedades rurais, ou simplesmente do camponês africano ou, ainda, da agricultura africana? Porque são todas realidades diferentes, e vamos tratá-las cada uma no seu lugar.
As sociedades agrárias são aqui tratadas com tipos ideais (Weber), portanto de forma abstrata; numa segunda fase vamos olhar para as mudanças concretas que sofreram ao longo da sua história. Um olhar muito abreviado (e muito simplificado) sobre a história humana pode ajudar-nos um pouco na compreensão das sociedades contemporâneas.
As teorias sobre a origem do ser humano são muito pouco sólidas – cada nova descoberta de alguns ossos obriga os paleontólogos a fazer uma revisão completa das suas teorias. E a história está a ser escrita, como sempre, pelo vencedor, o homo sapiens.
Ninguém sabe quando começou a história do ser humano. Mas o que parece relativamente claro é que a natureza fez, nos últimos 3 milhões de anos, várias tentativas de produzir seres que são classificados como antecessores da espécie humana e, vagamente, parecidos com o homo sapiens. Mas só nos últimos 500.000 anos surgiram, no continente africano, alguns tipos que se espalharam por muitos continentes. Estes já eram fisicamente parecidos com o homo sapiens e tinham o que distingue o ser humano, um cérebro relativamente grande.
E houve várias tentativas de sair de África e ocupar outros continentes, como por exemplo o homo Heidelbergensis, o Neanderthalensis, o Denisova e outros. Contudo, todos estes perderam contra o homo sapiens, que saiu da África há cerca de 70 000 anos para conquistar a Europa e o resto do mundo.
Distinguimos sociedades humanas das dos outros animais que vivem em sociedades – e há muitos: desde a formiga ao elefante – pelo cérebro grande, pelo uso da língua, do fogo e pelo culto dos mortos. Sociedades deste tipo já existem há algumas centenas de milhares de anos. As primeiras eram sociedades de caçadores-coletores que viviam, como o nome diz, da caça e da coleta. Deste tipo de sociedades ainda se encontram alguns resíduos, já muito diminuídos, nos sobreviventes, como por exemplo, os Khoisan, os Twa, os esquimós, os aborígenes da Austrália, entre outros.
O homo sapiens é, em termos meramente biológicos, muito parecido com outros hominídeos: do chimpanzé separam-nos somente 1,4 % do ADN. Por outro lado, partilhamos 50% do nosso ADN com a banana, portanto, o ADN não explica tudo.
O que faz do ser humano um animal especial é o cérebro que tem três vezes o tamanho do cérebro do chimpanzé. O cérebro humano não é um órgão individual mas, sim, um órgão social. (Atenção: nem todos os neurônios estão concentrados no cérebro; na barriga de um ser humano também existem neurônios – quase tantos como no cérebro de um cão).
O “investimento” no cérebro humano é espantoso. No primeiro ano de vida 80% da energia que o bebé consome vão para o crescimento do cérebro; numa criança com quatro anos ainda são 45%. A natureza aqui também tomou providências. Para garantir que o cérebro encontre sempre alimentação suficiente, criou reservas no corpo humano. Um bebê humano nasce com 15% de gordura, um bebê chimpanzé somente com 3%.
As implicações são evidentes: sociedades que não conseguem alimentar bem as suas crianças correm o risco de produzir gerações que não conseguem realizar todo o seu potencial de inteligência quando adultos. No nosso dia-a-dia, num estado normal, o cérebro consome 20% da nossa energia, num estado de alta concentração até 40%. Pensar faz fome. O cérebro humano, o órgão social por excelência, é a sede de uma grande parte da inteligência que permite uma comunicação extremamente elaborada e complexa. Esta é a base de uma grande flexibilidade e adaptabilidade, tanto na produção de capacidades individuais, como sociais.
Há, igualmente, quem afirme que foi a pesca e o consumo de proteínas que deu um impulso forte à evolução humana. O que parece claro é que sem o uso de fogo, para se defender contra predadores, por um lado, e para a preparação de proteínas animais e outros alimentos, por outro, o cérebro do ser humano provavelmente não teria tido o seu desenvolvimento.
O que fez o homo sapiens vencer foi a dimensão de auto-organização flexível que lhe permitiu lidar com as condições e exigências de ambientes muito diversos. Em termos biológicos, o ser humano está completo há talvez 200 000 anos. O que veio depois foi a evolução das sociedades, através de comunicação, de (auto-) organização, de cultura e de tecnologia.
Se olharmos para a evolução humana encontramos dentro do cérebro as camadas mais antigas e à volta delas as camadas mais recentes, onde os cientistas localizam as funções cerebrais mais evoluídas. Se olharmos para a capacidade de organização descobrimos que dentro das sociedades também existem padrões mais antigos, que em certas circunstâncias (colapso de ordem) reaparecem mesmo em sociedades mais modernas – por exemplo a organização espontânea de jovens homens em grupos violentos que vão à caça de presa, ou o grupo de mulheres que cuidam em conjunto da cria e andam à procura da comida.
Portanto, debaixo dos comportamentos ensinados pela educação, cultura e civilização ainda existem padrões mais antigos. A transição das sociedades caçadores-coletores para as nômades-pastores não está muito clara. Por um lado, podem ter sido caçadores-coletores que iniciaram a criação de gado, por outro, a descoberta da agricultura há cerca de 10.000 anos pode ter coincidido com a criação de gado. E ainda há um grande número de produtores agrários que combinam a criação de gado com a agricultura. Também existe uma certa especialização e troca dos respectivos produtos entre diferentes sociedades de agricultores e nômades-pastores que ainda hoje podemos observar frequentemente.
Em todo o caso, o que transformou as sociedades humanas profundamente foi a descoberta da agricultura que – em poucos milênios – conquistou imenso espaço e criou sociedades agrárias que se sobrepõem à herança das sociedades mais antigas (em termos genéticos, de estruturas, de uso de recursos, de comportamentos, entre outros). Portanto, desde a revolução neolítica a agricultura ganhou cada vez mais espaço e tornou-se o modo dominante de vida em muitos sítios, continuando, porém, a existir muitas sociedades nômades-pastores e, cada vez menos, sociedades caçadores-coletores.
Não se trata, porém, de uma história linear da evolução humana: muitas tentativas, muitos fracassos, muitas invenções feitas muitas vezes em terras muito distantes. E muito desapareceu sem deixar grande rasto. Portanto, a história da humanidade não corresponde, nem se explica pela evolução biológica do ser humano (“da amiba ao administrador do banco”), mas antes como um jogo complexo de interação entre vários tipos de sociedades humanas.
O destino das sociedades humanas sofreu uma grande aceleração com a revolução industrial, cujos precursores já se podem observar nos últimos dois milénios da história na China – que, por razões que ainda não compreendemos por completo, no século XVI, de repente, parou com o progresso tecnológico e a expansão marítima, que só retomaria nos finais do século XX.
O que deixou espaço para o continente europeu se tornar o berço da revolução industrial. Em cerca de três séculos esta atingiu o globo, que foi submetido a várias formas de exploração para a alimentar. Esta revolução que veio dominar o mundo todo, hoje se apresenta como processo acelerado de industrialização, que produz as imensas riquezas e o bem-estar para muita gente, e a pobreza e a miséria para muitos mais, foi e continua a ser um processo muito violento que a humanidade pagou e paga com muito sangue e sofrimento. Sensivelmente desde meados do século XX, portanto desde o fim da II
Guerra Mundial, de uma ou de outra forma, atingiu todo o globo. Além de aumentar exponencialmente a capacidade produtiva, aumentou ainda mais a capacidade destrutiva. Por um lado, já eliminou mais do que um quarto dos vertebrados, por outro, detém um arsenal global com um poder destrutivo como nunca existiu, encontrando-se distribuídas e acessíveis como nunca armas destrutivas – desde a kalashnikov até a bomba atômica.
A revolução industrial teve efeitos muito fortes, tanto diretos como indiretos, sobre a agricultura mundial. Em muitas partes do globo esta foi igualmente industrializada. Nos países industrializados menos do que 2% da população vivem da agricultura e, ainda assim, conseguem alimentar a população toda.
Observamos uma expansão do modelo industrializado da agricultura que em muitos países não industrializados aparece sob a forma de agricultura moderna, ou em formato de plantação intensiva, e que entra em concorrência direta com as sociedades agrárias tradicionais, porque compete pelos mesmos recursos. Mesmo sociedades que não industrializaram ou modernizaram as suas agriculturas sofreram com a industrialização da agricultura mundial, em parte porque foram obrigados a produzir para a economia global, em parte porque foram e são submetidas e restringidas pela produção dominante, ou simplesmente eliminadas. É notável que África, há 50 anos, tenha sido o continente que mais matéria-prima exportava.
Contudo, nem todas as sociedades foram industrializadas. Não obstante, poucas são as que não sofrem, de uma ou outra forma, as consequências do processo global de industrialização. Podemos, resumindo, distinguir diferentes tipos de sociedades humanas: as sociedades caçadores-coletores, as sociedades nômades-pastores, as sociedades agrárias tradicionais, as sociedades industriais, e as sociedades agrárias industrializadas.
As sociedades agrárias foram durante milhares de anos um modelo de sucesso; se as sociedades industrializadas vão ter o mesmo sucesso e a mesma durabilidade ainda não sabemos.
Artigo desenvolvido pelo Curso de Estudos Africanos, do Instituto Universitário de Lisboa, para a parceria com o Por dentro da África. Saiba mais sobre o curso e a instituição aqui