Natalia da Luz, Por dentro da África
Rio – Há cinco meses, Moçambique sancionou a legalização do aborto, tornando-se o quarto país do continente africano a permitir que as mulheres façam o aborto até a 12ª semana de gestação. A decisão ocorreu após longo debate entre organizações feministas na busca por reduzir a mortalidade das mulheres. Por ano, pelo menos, 11% das mulheres que se submetem ao aborto morrem devido às complicações
– Precisamos popularizar o código penal e a questão dos direitos sexuais e reprodutivos como direitos humanos. Há um longo caminho para atingir essa fase – disse a ativista Rosalina Nhachote em entrevista exclusiva ao Por dentro da África, lembrando que as estatísticas de aborto no país são variadas, já que o aborto clandestino não tem como ser mapeado, embora muitas pessoas conheçam alguém que já tenha feito.
O ex-presidente Armando Guebuza promulgou, em dezembro, o novo Código Penal do país, que libera a interrupção voluntária da gravidez. A legalização foi fruto da parceria entre o movimento feminista e médicos como Mário Machungo (como diretor do hospital central, ele redigiu um regulamento permitindo a interrupção voluntária da gravidez até 12ª semana) e Fernanda Machungo, que escreveu vários estudos sobre o aborto clandestino e seus efeitos para a saúde das moçambicanas. O percentual de mortalidade em 11%, inclusive, parte desses estudos.
Essas pesquisas foram aliadas fortes para que o movimento de mulheres tivesse conhecimento de causa. Rosalina, vice-presidente do Movimento Feminista Jovem de Moçambique e comunicadora da Marcha Mundial das Mulheres em Moçambique, conta que a maioria da população ainda recorre aos hospitais de referência para ter acesso ao aborto seguro dentro das 12 semanas.
– Este Código Penal é bastante recente. Foi um passo iniciado há vários anos, mas que ainda carece de trabalho para que possa proporcionar um acesso mais fácil e seguro por parte das mulheres. Em Moçambique, é importante realçar o papel desempenhado pela rede de direitos sexuais e reprodutivos nesta luta, que inclui organizações da sociedade civil. Esta rede trabalhou bastante para influenciar mudanças no Código Penal – contou a ativista, lembrando que Cabo Verde, África do Sul e Tunísia são os outros países africanos a legalizarem o aborto.
Em 2006, os Estados-membros da União Africana adotaram o plano de ação de Maputo a fim de implementar o mecanismo de política de direitos e saúde sexual e se comprometeram a reduzir a incidência do aborto inseguro. Rosalina destaca que o artigo 14 do Protocolo de Maputo diz que os Estados tomarão medidas apropriadas para: proteger os direitos reprodutivos das mulheres, autorizando os abortos médicos em casos de violência sexual, incesto e quando a continuidade da gravidez ameaçar a saúde física e mental da mãe, da vida da mãe ou do feto.
– Muitos países africanos, com destaque para o Quênia, buscam o exemplo de Moçambique, reforçada no Protocolo de Maputo, que prevê o aborto seguro como responsabilidade do Estado. A questão principal é como pressionar os estados a implementarem este protocolo – lembrou a ativista.
O aborto e seus tabus
Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), cerca de 19 milhões dos abortos são realizados anualmente de forma insegura, resultando na morte de 70 mil mulheres. De acordo com a ONU (Organização das Nações Unidas), leis mais restritivas contribuem para aumentar a mortalidade por abortos inseguros.
A moçambicana conta que o termo aborto ainda não é bem debatido no país. A influência da religião influencia o debate. Para ela, a sexualidade está no campo da saúde e não dos direitos.
– Ainda é tabu, uma vez que o Código Penal ainda não foi popularizado e a população das zonas rurais, majoritariamente analfabeta, recorre aOS meios inseguros com base em conhecimentos locais (plantas, raízes e outros produtos). Com certeza, essa nova lei pode influenciar, tendo em conta os direitos sexuais e reprodutivos – disse Rosalina.
Antes da aprovação, houve um feito importante alcançado por conta da pressão exercida pela Marcha contra as violações dos direitos humanos. No Código Penal moçambicano, o artigo 223 dizia que o homem que violasse uma mulher, desde que se casasse com a vítima, ficaria livre de pena ou sanção. Agora, com a retirada do artigo, lugar de violador é na cadeia.
Exemplo da África do Sul
Considerada a constituição mais avançada da África, a Constituição da África do Sul (de 1996) permite que mulheres façam abortos. O procedimento é gratuito para as gestantes que não têm condições de pagá-lo. Para as que podem financiar um serviço mais rápido e confortável, existem centenas de clínicas privadas.
Neste caminho, há uma organização não-governamental que oferece serviços e informações relacionados à
Marie Charlotte Stopes (1880 / 1958) foi uma escritora britânica, ativista pelos direitos das mulheres e pioneira no campo de controle de natalidade. Ela foi a primeira acadêmica do sexo feminino no corpo docente da Universidade de Manchester.
A partir de 1996, a lei (Choice on Termination of Pregnancy – número 92 de 12 de novembro de 1996) deu às mulheres sul-africanas o direito de escolher pela interrupção da gravidez. Ela ratifica os direitos de cada um sobre decisões reprodutivas e determina que homens e mulheres devem ter acesso a procedimentos seguros e eficazes.
Após a entrada da lei em vigor, o número de abortos cresceu, segundo dados do governo. A maior diferença foi na província de Gauteng, onde fica Jonhanesburgo. Em 1996, o número de abortos foi de 13.505. Em 2004, segundo as estatísticas do governo, chegaram a 36.845, um crescimento de mais de 200%.
A África do Sul está no grupo dos países com as leis mais liberais sobre o tema, ao lado da França, Alemanha, Grécia, Bélgica, Itália, Espanha, Inglaterra, Estados Unidos, México, Canadá e Austrália. O Brasil está no grupo das legislações mais conservadoras, ao lado de Senegal, Iraque, Palestina, Iêmen e El Salvador. No Brasil, o Código Penal prevê duas hipóteses em que o aborto poderá ser realizado por médico (“aborto legal”): (i) quando a gravidez significar risco à vida da gestante; ou (ii) quando a gravidez resultar de estupro e o aborto for precedido de consentimento da gestante, ou, se incapaz, por seu representante legal – de acordo com o Instituto Saúde e Sustentabilidade.
Andrea lembra que as mulheres ainda estão morrendo desnecessariamente de abortos inseguros no país. Nas áreas rurais, métodos de auto-indução são comuns, enquanto nos centros urbanos, muitas vezes, as mulheres se voltam para os abortos que usam métodos perigosos.
– Apesar de uma das leis de aborto mais progressistas do mundo, a interrupção voluntária da gravidez ainda é cercada por estigmas na África do Sul. Um estudo do Centro Pew descobriu que 61% dos sul-africanos ainda consideram o aborto “inaceitável” e que 8% de todas as gestações na África do Sul são encerradas – disse Andrea, lembrando que muitas mulheres ainda atravessam as fronteiras dos países vizinhos para realizar um aborto na África do Sul.
De acordo com Andrea, na Marie Stopes, aborto e planejamento familiar estão intimamente ligados com a contracepção. Todas as prestadores são orientadas a aconselhar as mulheres sobre a importância do planejamento familiar pós-aborto.
– Na África do Sul, somos gratos por uma lei de aborto com visão de futuro, mas, infelizmente, enfrentamos diariamente as lacunas significativas entre política e prática. Temos um longo caminho a percorrer para garantir a justiça reprodutiva para todos.
Com a nova lei em seu país, a ativista moçambicana considera que é uma vitória não só pelos direitos humanos, mas porque a legalização irá influenciar as novas gerações
Por dentro da África