Por Gabriela Vallim, Por dentro da África
Gabriela Valim é articuladora cultural no Coletivo Fayola Odara
São Paulo – Segundo matéria publicada no Blog do Planalto, Dilma Rousseff se declarou “consternada” com a execução do brasileiro Marco Archer, condenado à morte por tráfico de drogas na Indonésia. A presidenta da República convocou o embaixador do Brasil em Jacarta para consultas, pois segundo ela, a inflexibilidade do governo indonésio em não se sensibilizar ao seu apelo para clemência do réu, e a adoção mundial desse modelo de pena, pode afetar a diplomacia entre os países.
Contudo, diariamente são mortos tantos jovens negros no Brasil a ponto de podermos nomear como genocídio-extermínio deliberado de indivíduos por intolerância a diferenças. Poucas vezes, o governo se mostrou “consternado”, ou se pronunciou para o conforto dos pais que tiveram seus filhos dizimados por essa violência, em grande parte estatal.
O Racismo Institucional, um sistema de desigualdade baseado em etnias, estruturado dentro de empresas como órgãos públicos, é uma das maiores causas do silenciamento sobre a pena de morte destinada apenas aos jovens negros, essa sentença, embora não seja lei, está aplicada no massacre da juventude negra, pauta principal de grupos organizados como o Mães de Maio.
”A polícia hoje virou um monstro que os próprios governos têm medo de enfrentar. Enquanto isso, morrem 83 jovens negros todos os dias”, afirma Gilza Marques, fonoaudióloga e analista de políticas sociais no Ministério da Saúde. Segundo o Mapa da Violência de 2014, houve queda no número de homicídios da população branca e aumento no número de vítimas na população negra. Como insistentemente alguns indivíduos afirmam que para além da cor da pele, SOMOS TODOS HUMANOS, durante 388 anos do período da escravidão, a população africana aqui residente não passava de uma massa de produtos para uso e posse das elites eurodescendentes.
A coroa portuguesa no Brasil foi a última a abolir a escravidão porque, se assim não fizesse, teria a sua economia significativamente afetada. Durante cerca de 515 anos, o país teve suas estruturas sociais solidificadas sobre o modelo escravocrata europeu de acumulação de riquezas.
Há pouco mais de cem anos (1888) foi decretada a Lei Áurea, mas a mentalidade escravista colonial ainda persiste. Muitos que sustentam um discurso de igualdade são os mesmos a pedir o Impeachment, um retrocesso nas conquistas democráticas de um povo. Sofrem com a perda da memória histórica ao ponto de não perceberem que a Polícia Militar mata hoje mais do que durante a ditadura.
O ódio à democracia se manifesta de muitas formas, como durante o panelaço endereçado à Dilma em seu pronunciamento no Dia Internacional da Mulher. Parte do incômodo parece ocorrer por conta da ampliação do acesso às políticas públicas que significam a democratização aos direitos antes reservados para uma minoria. Enquanto a maioria das mulheres presentes era de cor branca batendo panelas na Avenida Paulista, as negras tinham a possibilidade de estarem em suas casas e não mais nas senzalas, cozinhando para suas próprias famílias.
Quantitativamente, entre os brancos, o número de vítimas diminui de 19.846 em 2002 para 14.928 em 2012, o que significa uma queda de 24,8%. Entre os negros, as vítimas aumentaram de 29.656 para 41.127. Os dados não abrem margem para as falaciosas afirmações de que o tratamento destinado aos negros e não negros no Brasil é igual, não está relacionado às oportunidades ou esforços, mas a um sistema estruturado que impõe diferentes realidades a esses dois grupos, mesmo os pertencentes a mesma classe social.
Dois fatos evidenciam esse contexto:
• Número e taxas de homicídio de brancos decaem substancialmente.
• Número e taxas de homicídio de negros aumentam nesse intervalo.
A violência contra a juventude negra, no período de 2002 a 2012, cresceu significativamente, mais que duplicou: 100,7%. Desta forma, fica evidente porque as mortes da juventude negra por forças de Estado não têm tanto valor quanto a de um jovem branco condenado à morte no exterior.
A normatividade branca oculta as desigualdades. Não há espanto em nunca ter acontecido na história do Brasil uma mulher negra na presidência, apesar de, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia Estatística), a porcentagem de negros e pardos representarem 51% do total da população. A pirâmide social está hierarquizada: homem branco no topo, mulher branca, homem negro e por último mulher negra.
Para que seja possível essa utópica igualdade racial, é urgente e necessário uma igual distribuição de renda, oportunidades e representatividade, além de medidas reparatórias que equalizem nosso passado. Como disse Carolina Maria de Jesus em 1955, no seu livro Quarto de Despejo: “E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual –a fome!”.
A imprensa contribuiu para o silenciamento da fome que Carolina passou e ainda hoje trabalha para a invisibilidade negra na televisão, ela promove a massificação de pautas estereotipadas que reforçam a visão errônea que se tem da relação com África, continente constituído atualmente por 54 países. A identidade histórica dos povos africanos, incluindo os hoje intitulados brasileiros, por terem nascidos no Brasil, deriva de processos calamitosos e exploratórios, trocas desiguais entre África e outros continentes.
A mídia com papel fundamental na sociedade contemporânea é responsável pela maior fonte de informação do brasileiro, mais especificamente a televisão, como afirma diversas teses. Quando não estão trabalhando, a maior parte das pessoas têm a TV como principal meio de informação. Logo, o que é veiculado tem muito peso por influenciar a opinião pública, incentivar comportamentos e induzir práticas.
Em entrevista, Edson França, presidente nacional da UNEGRO (União de Negros pela Igualdade) e conselheiro suplente do CNDH (Conselho Nacional dos Direitos Humanos), expõe a mancha histórica de que negros são assassinados e violentados desde quando o primeiro navio negreiro desembarcou no país, aproximadamente em 1504, está naturalizado no consciente coletivo.
“O racismo está enraizado na mente e na cultura da sociedade brasileira de maneira tão perversa que nem a esquerda se manifesta nesse tipo de situação, é longa a nossa luta”, comenta entristecido sobre a conjuntura política atual.
A afirmação de um grupo historicamente privado de direitos não deslegitima um outro historicamente estabelecido e constituído culturalmente de maneira positiva e hegemônica. Molefi Kete Asante, historiador, filósofo e presidente do Molefi Kete Asante Institute for Afrocentric Studies, em seu livro Afrocentricidade: Teoria da Mudança Social, de 1980, pontua que um povo que desconhece suas próprias experiências históricas e o valor delas está destinado a criar o caos.
Luto pelos 83 jovens negros mortos diariamente no Brasil.
Luto pelas mortes violentas em Baltimore nos EUA.
Luto pelos universitários negros mortos no Quênia.
Luto pela chacina no morro do Cabula em Salvador.
Luto pelos imigrantes africanos mortos no mar da Inglaterra.
Luto pelo assassinato de Amarildo, Claudia, Malcolm X, e Zumbi.
Luto por Marco Archer.