Gerson Brandão, Por dentro da África
No dia 26 de fevereiro de 1885, após três meses de debates, terminou a Conferência de Berlim, um encontro entre países europeus (França, Alemanha, Grã-Bretanha, Espanha, Portugal, Bélgica e Itália) com o propósito de definir fronteiras que não existiam antes. O ‘encontro’ decidiu o futuro da África partilhando o continente em mais de 50 países, em um processo que ignorou completamente os africanos, que não foram convidados para a conferência.
Um mapa com 50 países sobrepostos a mais de 1.000 povos, culturas e regiões do continente; algo como uma colcha de retalhos costurada sem qualquer apreço e respeito pela geografia, línguas, dialetos, culturas ou outros fatores unificadores que existiam no século XX, foi desenhado na capital da Alemanha.
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Provavelmente para mascarar a crueldade do colonialismo, para os alemães, o evento foi chamado de Conferência do Congo (Kongokonferenz), um encontro para dirimir tensões entre países vizinhos, nomeadamente a França e a Bélgica, mas também Portugal, que travavam uma guerra de bastidores sobre o controle da região conhecida como bacia do Congo, área onde atualmente se encontram o Gabão, a República Centro-Africana, a República do Congo (ex-Congo Francês), a província de Cabinda, em Angola, e, a joia da coroa, a República Democrática do Congo (ex-Congo Belga, ou ainda Zaire), já naquela época, um país conhecido pela riqueza hídrica e abundância em recursos minerais.
O chanceler alemão Otto von Bismarck (1815-1898), também interessado em proteger os interesses comerciais da Alemanha na África, sentiu-se compelido a organizar essa conferência, e pôr ordem nas inúmeras reivindicações de terras africanas que vinham sendo feitas por diferentes países.
Ao final da conferência, ficou acordado que um indivíduo, o rei Leopoldo II da Bélgica (1835-1909), se tornaria proprietário de 2,5 milhões de quilômetros quadrados (90 vezes o tamanho da Bélgica), assim como todos os habitantes, e a força de trabalho viraram um bem particular. Foi então que Berlim abençoou o início de um reino descrito por historiadores e habitantes do antigo Congo Belga como explorador voraz de pessoas e de recursos naturais.
135 anos depois, no dia 26 de fevereiro de 2020, o governo congolês e a comunidade internacional lançaram o ‘plano de resposta humanitária’, pedindo 1,7 bilhão de dólares americanos, para atender às pessoas que mais precisam de assistência no país.
Uma coincidência de datas e também de valores, se levarmos em contas as estimativas do diplomata Belga e historiador, Jules Marchal, que estimou, em 1998, em mais de 1 bilhão de dólares americanos os ganhos do Rei Leopoldo II, durante o reinado de 23 anos no Congo (entre 1885 e 1908).
Apesar dos conflitos em lugares como a Síria, Iêmen ou Iraque, a República Democrática do Congo continua sendo uma das crises humanitárias mais complexas do mundo. No final de 2019, a ONU reportou quase 1 milhão de congoleses vivendo nos países vizinhos, fugindo da guerra no país deles. Os conflitos armados sobretudo na parte leste do país, continuam a causar deslocamento interno das populações, perda de vidas e destruição de aldeias e cidades.
Além de ter quase 1 milhão de cidadãos dependente de ajuda nos países vizinhos, dentro da República Democrática do Congo, pelo menos, 13 milhões de pessoas precisam de ajuda humanitária para suprir as necessidades mais básicas, incluindo mais de 1,3 milhão de crianças menores de 5 anos que sofrem de desnutrição aguda grave e surtos de doenças variadas como o cólera ou sarampo.
A divisão do continente africano foi feita, na Conferência de Berlim, sem os maiores interessados, os africanos, e sem levar em conta as estruturas políticas, sociais e econômicas existentes, o que causou danos irreparáveis na época como a separação de famílias e morte de seres humanos, tratados como objetos, vítimas da exploração voraz dos poderes coloniais.
Entretanto, alguns países sofrem da falta de investimento e avidez dos antigos colonos até hoje. É lamentável e surpreendente saber que um país com os recursos naturais da República Democrática do Congo não possa prover o mínimo à sua população, e que mais de 135 anos depois da ‘Kongokonferenz’, ainda existam tantos africanos excluídos da riqueza do seu próprio continente.
Gerson Brandão, mestre em Direitos Humanos pela Universidade de Estrasburgo, atualmente pesquisa “sobre o papel das empresas privadas na proteção de civis na Republica Democrática do Congo”.