Natalia da Luz, Por dentro da África
Rio – Eles vivem entre a Namíbia, Angola e Botswana, localizados no sul do continente africano, há mais de 2.500 anos. Um dos grupos étnicos mais antigos da humanidade, os hereros, formam uma sociedade surpreendentemente evoluída, fascinante, que mesmo tão próxima dos sinais de tecnologia e desenvolvimento, conserva uma cultura tradicional, que certamente tem muito a ensinar. Toda essa riqueza que preenche o dia a dia dos hereros é retratada no trabalho de um brasileiro, que há cinco anos acompanha uma comunidade na Namíbe, em Angola.
– Eu pensei como que uma cultura que está tão perto da sociedade moderna poderia sobreviver, permanecer tão firme nos dias de hoje. Comecei então a planejar a possibilidade de descobrir e de compreender melhor a vida deles – explica, em entrevista exclusiva ao Por dentro da África, Sérgio Guerra, o fotógrafo e produtor cultural responsável por “Hereros”, exposição que já rodou o Brasil e a Europa (agora está em exibição no Centro Cultural Conde Duque, em Madrid, com a curadoria de Emanoel Araujo).
Durante os últimos cinco anos ele investigou, acompanhou, vivenciou a cultura dos hereros. A convite do governo de Angola, ele desembarcou no país e, escalado para acompanhar uma gravação do programa “Nação Coragem”, da TV estatal, o pernambucano visitou as regiões de Huila e Namibe, onde fez as primeiras imagens dos mukubais, um dos subgrupos dos hereros. Aquele primeiro contato, no ano de 1997, foi uma porta que se abrira para um novo sentido na vida de Sérgio, que também produziu um documentário de longa-metragem sobre a vida dos hereros.
Sete anos depois, ele retornou descobrindo os muhimbas, muhakaonas, mudimbas, muchavicuas, cada um com suas particularidades, rituais, maneiras de se comportar. E mais uma vez ele percebera que a história dos hereros precisava ser contada ao mundo. Acompanhado do intérprete Martins (que fala não apenas o herero, mas os dialetos mukubla e hakaona, por exemplo), ele mergulhou, em junho de 2009, no cotidiano da comunidade em uma temporada de 60 dias com uma caravana de 17 pessoas.
– Eu aprendi a conviver com uma cultura única. Eles não devem ser subestimados, não podem ser julgados a partir dos valores que estão enraizados em nossa cultura. Eles cultivam a solidariedade, praticam economia familiar, onde o maior beneficiário é o coletivo. Isso sim é um exemplo para a sociedade – conta o fotógrafo, com brilho nos olhos, que assina a exposição vista por mais de 200 mil pessoas.
O país que passou por uma violenta guerra civil (de 1975 a 2002) que poupou poucas regiões, como a capital Luanda, selou a paz entre os povos e mantém, hoje, os hereros em uma região, apesar de não existir uma demarcação oficial de terras para eles. Sérgio conta que o governo permite que eles fiquem dentro do Parque Nacional do Iona (em Namibe) e em outras áreas que agora começam a ser ocupadas por grandes fazendeiros.
Genocídio na vizinha Namíbia
Durante a partilha da África Negra, entre 1904 e 1907, os hereros sofreram um dos maiores genocídios do século XX, segundo a ONU. Em 12 de janeiro de 1904, eles organizaram uma revolta contra o domínio alemão na Namíbia e foram brutalmente reprimidos sob ordem do general Lothar Von Trotha. Cerca de 60 mil hereros (70% da população da época) e 10 mil namaquas (50% da população) morreram, principalmente, de inanição e envenenamento por parte das tropas alemãs.
Em 1985, a ONU reconheceu o caso como uma das primeiras tentativas de genocídio no século XX. Em 2004, no 100º aniversário do conflito, Heidemarie Wieczorek-Zeul, ministra do desenvolvimento da Alemanha, se desculpou oficialmente pela primeira vez e manifestou pesar sobre o genocídio cometido pelos alemães, declarando: “Nós, alemães, aceitamos a nossa responsabilidade moral e histórica e a culpa pelos atos realizados pelos alemães na época.”
Na Namíbia, Sérgio explica que os hereros são identificados como os que usam vestimentas tradicionais, já os subgrupos são chamados pelo nome, como os himbas. Em Angola, apesar de se tratarem como subgrupos (mukubais, muhimbas, muhakaonas…), poucos se referem à etnia herero por falta de conhecimento sobre suas origens.
– É por essa identificação que eles toleram os casamentos entre os diferentes subgrupos e se reconhecem como família – ressalta o brasileiro.
Patrimônio
Os hereros desconhecem a importância do dinheiro que circula no país. O kwanza (moeda de Angola) não é usado em seus negócios, diferentemente do gado que representa o maior patrimônio para eles. Quanto mais gado, mais rico o homem é. E essa riqueza ele distribui entre a família para que todos cuidem dela.
– Eles se ajudam emprestando os animais entre si, mas a venda do gado deve ser uma decisão mais familiar. Há muito pouco contato com o dinheiro, mas isso está aumentando nos dias atuais. Antes, entre os himbas, só se falava em rands namibiano e agora eles já usam o kwanza. Os comerciantes preferem fazer tudo a partir da troca, o que é muito mais lucrativo para eles – explica o brasileiro.
O povo usa o leite da vaca para produzir o óleo que passa sobre o corpo. A mistura que também contém ocre e plantas é uma espécie de banho para os hereros, um importante traço da cultura deles e uma maneira de manter o corpo limpo e protegê-lo do sol.
Relações conjugais
Entre os hereros, Sérgio destaca a relação predominantemente patriarcal, com deveres bem claros para cada um dos membros da família: os homens cuidam dos bois (o maior patrimônio para um herero); as crianças, dos cabritos e as mulheres cozinham, tiram o leite das vacas e cuidam da horta e das crianças.
A poligamia é um aspecto que também caracteriza os hereros, mas ela não é permitida apenas para os homens. A mulher pode ter namorados, mas, se por acaso, o marido não gostar de algum, rapidamente ela se afasta para não gerar conflito na família. Oferecer a mulher (ou uma delas) para dormir com um amigo ou convidado é sinal de gentileza entre eles.
– A mulher tem os seus deveres, mas também tem os seus direitos. Ela é respeitada e se não quiser praticar sexo, ela não o fará nem mesmo à força. Quando a mulher fica grávida, o filho será de responsabilidade do marido (independentemente se ele for o pai) – afirma Sérgio, que acompanhou não apenas a relação familiar, mas todos os rituais que compõem a vida dos hereros, desde o nascimento até a morte.
O casamento na infância
Os hereros podem se casar aos 3, 4, aos 10 anos a partir de uma negociação feita entre os pais do pretendente e da noiva. De acordo com Sérgio, o pretendente vai até à família da noiva e propõe o casamento. Se aceito pelos pais da noiva, ele passará a ser o provedor da futura esposa, que viverá com os pais até estar preparada para o casamento (o que acontece após a primeira menstruação e sua iniciação sexual).
– O marido será responsável por alimentar e cuidar dessa mulher. Após a primeira menstruação, ela passa por uma iniciação sexual realizada com os primos. Após um período (que pode durar alguns meses), ela vai para a casa do marido e se, por acaso, ela não gostar dele, ela não será obrigada a ficar. Mas uma coisa é importante: no futuro, os filhos dela com outro homem serão deste marido, a menos que um segundo pretendente negocie com o primeiro pretendente e arque com suas dívidas – explica.
Considerado da família, Sérgio, que vive em Angola e visita os hereros com frequência, tinha liberdade para acompanhar o cotidiano do povo, inclusive seus momentos mais importantes como nascimento, batismo, casamento e funeral. Desta relação, o pernambucano ganhou um nome de batismo em herero: Twamunacó, que significa “alguém que confiamos”. Os hereros também entenderam que tinham a possibilidade de se tornarem protagonistas de sua própria história e de serem beneficiados com esse trabalho tão especial do brasileiro que mantém com eles uma relação de amizade que emociona quem assiste. O documentário “Hereros Angola” tem estreia prevista para o Festival Jan Rouch, na França.
– A expectativa é que consigamos que estas populações possam ter mais acesso à saúde e educação sem comprometer a cultura e a forma de viver. Existe um exercício de aceitar e respeitar uma cultura que não é sua. Quando você decide se abrir e aceitar as pessoas da maneira como elas são, isso muda você”
Confira a exposição virtual aqui e o trailler do documentário abaixo
Por dentro da África