Natalia da Luz, Por dentro da África
Rio – Conceitos de igualdade e respeito deveriam ser pré-requisitos em todas as crenças e em filosofias desprovidas de credo, mas a intolerância por parte de alguns praticantes parece reprimi-los. Em resistência, um ato de solidariedade às religiões de matrizes africanas levou representantes de mais de 15 religiões diferentes a se erguerem contra o preconceito e a violação da liberdade.
O motivo do encontro realizado no Rio de Janeiro foi a decisão do juiz Eugênio Rosa de Araújo que, na semana passada, afirmou judicialmente que umbanda e candomblé não poderiam ser consideradas religiões. Apesar de o magistrado ter se retratado nesta terça-feira, reconhecendo as duas manifestações religiosas, o ato, agendado na segunda-feira, permaneceu para reforçar a luta contra a discriminação e para pedir a retirada dos vídeos do Youtube que ofendem as religiões de matrizes africanas.
– Esse encontro foi inédito. Nunca havíamos presenciado esse movimento de tantas crenças com um objetivo único. Foi uma mobilização que só se tornou importante porque o povo teve essa consciência. Tivemos uma repercussão imensa entre judeus, evangélicos, muçulmanos… E a sociedade civil de boa fé se uniu – contou ao Por dentro da África Márcio de Jagun, autor da denúncia que pedia a retirada dos vídeos.
Para Márcio, que também é advogado, o juiz reconheceu aquilo que não cabia a ele julgar, mas manteve a sentença em relação aos vídeos (não determinando sua retirada). Márcio selecionou 17 vídeos veiculados no Youtube e, em fevereiro, redigiu uma denúncia formal ao Ministério Público (MP) solicitando a retirada imediata dos vídeos. O órgão acatou a denúncia e intimou o Google (administrador do Youtube) a retirar os vídeos em 48hs. Como o Google relutou, alegando que não tinha responsabilidade sobre o conteúdo das mensagens, o Procurador ajuizou ação perante a Justiça Federal do Rio. Relembre o caso aqui
Durante o evento organizado pela Associação Nacional de Mídia Afro, na Associação Brasileira de Imprensa, alguns dos vídeos que motivaram o processo foram exibidos. Em resposta, vozes das muitas manifestações religiosas como o judaísmo, islamismo, protestantismo, Hare krishna, seguidores da fé Bahái, das religiões indígenas e ateísmo selaram, de forma inédita, um compromisso a favor da liberdade.
Pedido de retirada dos vídeos
– Nossa religiosidade foi gravemente ofendida com um discurso de ódio. Nós estamos falando de uma sociedade brasileira que é conhecida como fraterna, que convive com diversas religiões, e esses vídeos contrapõem tudo aquilo que parece fazer parte de nossa brasilidade – relembrou Marcio, citando que os vídeos ainda continuam na internet, mas que o encontro fortalecerá o processo.
Diretora cultural da ANMA (Associação Nacional de Mídia Afro), Inês Teixeira (Mãe Inês de Iansã) contou ao Por dentro da África que a luta é diária e que todas as vezes que ela usa o seu torso (parte da vestimenta do candomblé), ela sente o preconceito e que, por isso, a retirada dos vídeos é um ato importante, seja para os candomblecistas, seja para os umbandistas.
– Nós não pedimos para o juiz julgar se é ou não religião. Ele que tomou essa liberdade. Nós, da umbanda e do candomblé, voltamos ao foco inicial porque não querem saber se somos de umbanda, Gege, Angola, Keto… Juntam tudo e colocam no mesmo pacote. Deus não deu nenhuma procuração para um religioso agir em nome Dele. Ele permitiu que criassem religiões que levassem a Ele. É um direitos de todos, inclusive daqueles que não acreditam em Deus – destaca a também superintendente de Promoção da Igualdade Racial do município de Nilópolis.
Na mesa de abertura, Márcio afirmou que o que está em jogo é o princípio da democracia e que por isso é tão importante ter a mobilização de tantas matrizes religiosas.
– Essa é uma união que o povo precisa praticar. Não podemos permitir que o patrimônio da liberdade seja desprestigiado pelo Judiciário – completou o apresentador do Programa Ori.
Um dos líderes do candomblé no Brasil, o babalawo (nome dado aos sacerdotes exclusivos de Orunmilá-Ifá do Culto de Ifá na religião yoruba) Ivanir dos Santos, explicou que a ideia inicial desse encontro era ser solidário à religião e encontrar um caminho para agir.
– Nós usaremos o recurso “amicus curiae” (amigos da corte) para não parecer que é uma briga apenas do candomblé ou da umbanda. O juiz jamais tomaria uma atitude dessa se o pedido fosse da Associação Israelita – disse, explicando que a ação diz respeito a um terceiro que intervém no processo para oferecer à Corte sua perspectiva acerca da questão constitucional controvertida.
Aplaudida de pé durante o seu discurso, Mãe Beata de Yemanjá, uma das Iyalorixá (sacerdotisa e chefe de um terreiro de Candomblé Ketu) mais respeitadas do Brasil, contou histórias e deu uma aula de ancestralidade, dizendo que as religiões estavam precisando se unir.
– Por que estamos aqui? Por causa do juiz, discutindo a nossa ancestralidade, nos amando. Somos todos argamassa dessa criação. Vamos dar amor a esse juiz, é o que ele está precisando. Vamos mostrar a ele que sabemos de onde viemos e para onde vamos. Eu dou a minha vida pela minha fé. A Terra é a nossa mãe. Somos sangue do mesmo sangue, filho do mesmo pai – falou a religiosa de 83 anos.
Por dentro da África, que esteve presente na cerimônia, listou alguns trechos dos representantes que fizeram parte do Ato.Ilustramos com algumas fotos do Ccir – Liberdade Religiosa.
Jayme Salomão – Federação Israelita – Há tempos nos mobilizamos contra atividades de intolerância religiosa. Temos que mostrar que há exemplos positivos da força das minorias. Precisamos ter ações inovadoras e manifestamos aqui o nosso apoio.
Samir Ahmed – Representante da Sociedade brasileira dos Muçulmanos – Diariamente, são vinculados vídeos que também depreciam a nossa religião. Tentamos ações, e diziam que isso não poderia ser feito. Quando surge uma situação dessa para unirmos forças, é importante que estejamos unidos. Hoje, o sagrado é o foco, desmerecer todas as pessoas que praticam suas religiões. Temos que estar mais unidos, para que isso não aconteça com nenhum segmento religioso.
Dom Filadelfo – Representante da Igreja Anglicana – Estamos cansados de ver pessoas cometendo absurdos em nome do sagrado. Em nome do sagrado, o apartheid foi defendido, as igrejas, durante muito tempo, defenderam a segregação racial nos Estados Unidos. Quando a gente entra no memorial de Martin Luter King só não chora quem não tem coração. Temos uma maneira diferente de professar a fé, mas ela não nos dá direito de discriminar. Deus não diz “ame apenas o seu semelhante, ame o que é diferente de você”. Em nome da comunhão anglicana que está ao redor do mundo, eu me solidarizo com vocês.
Raga Bhume – Representante do Hare khrisna – Eu vejo essa situação partindo de um judiciário como algo positivo porque podemos trazer à tona a nossa fé, a nossa crença e mesmo a existência de ateus e agnósticos que a sociedade desconhece. É uma oportunidade de mostrar a sociedade e ao judiciário o valor da fé que sustenta cada tradição religiosa. Também somos alvo de vídeos que deturpam a nossa fé e estamos aqui, com vocês, juntos.
Coronel Ubiratan – Representante da Maçonaria – Me ensinaram que toda e qualquer decisão de foro judiciário se discute lá. A minha vida me ensinou que qualquer injustiça social se combate com a força do povo. Na minha vida de maçom, me ensinaram que se combate com a estratégia. Uma das características da maçonaria (que não é religião), é o compromisso com o combate às injustiças sociais. É um dever maçônico de igualdade social.
Marcos Amaral – Representante da Igreja Presbiteriana – Para mim, é desafiador, sendo eu evangélico diante de um movimento que os evangélicos polarizam. Quando ele diz que não reconhece uma expressão histórica como religião não me parece que ele conhece a história do Brasil. A igualdade precisa ser absolutamente solidária. Antes de religiosos, somos cidadãos. O país não pode ser democrático sem esse respeito. Nos levantemos sempre quando a injustiça aparecer a despeito desse ou daquele credo. Somos seres divinizados, vistamos calça, turbante, terno… Somos alvo do amor de Deus. Onde houver ações que agridam o amor, estaremos lá.
Diácomo Nelson – Representante do Catolicismo – Em julho de 2013, pisou na cidade um homem (Papa Francisco) que veio pregar a paz. Não trouxe nem ouro nem prata, apenas a sua pessoa, e o único religioso que ele abraçou nessa cidade foi o babalaow Ivanir dos Santos. Somos diferentes? Somos. Mas devemos nos amar, nos abraçar. A diferença é uma riqueza que Deus nos deu. Ele se apresenta a nós de diversas maneiras. Isso é uma riqueza muito grande no mundo espiritual. O juiz reconheceu e foi nobre, mas deveria ter avançado, deveria ter retirado esses vídeos, não só para religiosos, mas para pessoas do bem. Esse ato não é contra o juiz, mas a favor de nós.
Lusmarina Costa – Representante do Conselho de Igrejas Cristãs do Rio de Janeiro – Junto dos irmãos do candomblé e da umbanda, cabe a nós expressar a nossa contrariedade à sentença do juiz Eugênio Rosa de Araújo. Causou-nos surpresa os critérios utilizados pelo magistrado para definir o que ele considera religião. A decisão arrisca a jurisprudência brasileira a abrir precedente favorável ao crime de ódio religioso e ao racismo. A decisão também fere a Lei da Igualdade Racial de 2010. A perseguição sofrida pelos praticantes das religiões de matrizes africanas perpassa a história do nosso país. Não aceitamos a utilização das religiões como bandeira para incitar a discórdia. Somos pessoas da fé protestante que entendem que todos nós somos filhos de Deus, independente do nome pelo qual o chamamos.
Inaé Estrela – Representante dos seguidores da fé Bahá`í – Como advogada, fiquei perplexa com essa sentença, que fere os direitos constitucionais. Temos a nossa Constituição como base e temos que fazer com o que cada pessoa possa ter a liberdade de expressar a sua crença. A minha comunidade sofre perseguição em seu país natal (Irã). Há hoje 6 pessoas presas pela nossa fé. Sabemos que a perseguição pode ser nociva. Temos que falar sobre a nossa religiosidade, a nossa espiritualidade. Isso toca a comunidade no mundo. Temos Bahá’ís em Salvador, Brasília e São Paulo apoiando a causa.
Os Bahá’ís continuam sendo perseguidos em diversos países islâmicos, principalmente no Irã, onde cerca de 200 bahá’ís foram mortos entre 1978 e1998, em reflexo ao histórico genocídio de 20.000 babís e bahá’ís entre 1850 e 1863, onde tanto governo como civis compactuaram com o crime.
Papion Cristiane Karipuna – Representantes dos Indígenas – Nos grandes eventos, foram vocês (da umbanda e do candomblé) que nos acolheram e que nos alimentaram. Muitos de outras religiões invadem as nossas aldeias, tacam fogo e tiram o nosso pertence, o nosso direito de expressar a nossa fé. Quem nos cuida são os irmãos da umbanda e do candomblé. No Rio, isso vem ficando cada vez mais forte, e a comunidade indígena está aqui apoiando vocês. Nós estamos aqui, “não saímos do meio da mata” para prestar solidariedade a vocês.
João Caetano – Representante da Associacão Racionalista de Céticos e Ateus – O nosso país é de uma diversidade cultural muito grande, inclusive, dentro dos ateus há algumas vertentes. Não cabe a mim julgar a posição de qualquer um. Quando a gente diz que o Estado é laico, ele não é nem religioso nem ateu. Não cabe a um juiz esse julgamento. A religião é fé. Nós estamos dando o nosso apoio contra a intolerância do juiz porque me preocupa ter alguém tão desinformado tomando decisões no Brasil
Representando a umbanda, Pai Miranda afirmou que, diferentemente dos vídeos que menosprezam a religião, Exu não é diabo, não é capeta, é uma forma de apresentação, uma luz sagrada, uma luz divina.
– A vida é a benção de Deus. Aqui estamos em nome de Zambi, Olorun, Alá, Geová… Deus tem muitos nomes, mas é um só. Fomos criados por amor, somos todos irmãos. Cultuamos as matas, as pedreiras, as águas, em uma perfeita associação de força, vibração e luz espiritual. A umbanda canta para Jesus e seguimos para o seu sagrado mandamento: amai-vos uns aos outros tanto quanto eu os amei.
O reflexo da história do Brasil
Iedo Ferreira, um dos fundadores do Movimento Negro Unificado, disse que o pensamento do juiz não reflete o povo que tem, mostra que ele não conhece religião, tampouco a nação brasileira.
Durante os três séculos de escravidão, os africanos trouxeram suas culturas originais e, junto a elas, todo um corpo de crenças e rituais religiosos. Atualmente, as religiões africanas afirmam sua sobrevivência do norte até o sul do país.
Tais religiões sobrevivem graças ao sincretismo entre elas próprias, entre o catolicismo (religião dominante) e o espiritismo. Esta mistura de crenças e rituais é tão evidente que são consideradas”afro-brasileiras”.
– O Estado é o reflexo da nação. Quando ele reflete, ele jamais exclui qualquer categoria. Não podemos ter uma nação de cultura europeia. A religião da nação representa todos nós – afirmou Iedo.
Por dentro da África