História de ativista foi marco na luta contra a prática que afeta até 140 milhões de mulheres e meninas em todo o mundo
Natalia da Luz, Por dentro da África
Ela foi vítima de uma prática que viola o direito das mulheres e que ainda é comum em cerca de 30 países localizados, principalmente, na África. O seu ativismo contra a circuncisão feminina fez de Waris a embaixadora da causa em todo o mundo e, de sua história, um marco para lidar com um traço cultural que deve ser abolido.
– A Mutilação Genital Feminina (MGF) não pode ser enquadrada em nenhum aspecto cultural, tradicional, religioso. Ela é um crime que clama por justiça – disse a somali Waris Dirie, em entrevista exclusiva ao Por dentro da África.
Waris, uma ex-modelo internacionalmente famosa, foi submetida à circuncisão feminina aos cinco anos de idade. Mesmo muito criança, as lembranças daquele momento ainda permanecem em sua memória alimentando a sua luta.
De acordo com a ONU, a Mutilação Genital Feminina (MGF) afeta cerca de 140 milhões de mulheres e meninas em todo o mundo. A cada ano, estima-se que mais três milhões de meninas corram o risco de serem submetidas à prática. O que é chamado de tradição por alguns é, na verdade, uma violação de direitos humanos, já que o procedimento, além de todo o sofrimento, aumenta os riscos de contrair HIV, infecções para toda a vida e morte materna.
A mutilação genital consiste no corte de parte ou de toda a genitália externa da mulher. Há outra versão chamada de infibulação, que consishttp://www.pordentrodaafrica.com/default/circuncisao-feminina-se-a-cultura-fere-o-seu-corpo-por-que-manter-esse-costume-diz-ativista-fardhosa-mohamedte na costura dos lábios vaginais ou do clitóris. Todos esses procedimentos feitos, na maioria das vezes, sem anestesia (por objetos inapropriados como facas e lâminas), têm o objetivo de eliminar o prazer da mulher durante o sexo, o que causa danos físicos e psicológicos irreversíveis. Contra essa violação, em 1996, Waris foi indicada pelo então Secretário Geral da ONU, Kofi Annan, como embaixadora especial.
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– Nós recebemos muitos relatos de que as meninas fogem de suas casas ou escolas para escapar deste crime brutal. Podemos ver uma mudança, especialmente entre as mulheres jovens, mas ainda muito tímida com relação à atitude da geração mais velha. Esses são completamente ignorantes e querem continuar com esta loucura – destaca a ativista de 48 anos, mãe de dois filhos.
A história que virou bestseller
Apegada aos estudos, Waris não queria deixar a escola quando chegara a hora de casar, aos 13 anos de idade. Corajosa, ela fugiu de Galkayo, enfrentando perigos no meio do deserto, ao encontro de sua avó, que vivia na capital Mogadíscio.
Com a ajuda da avó, ela foi para Londres trabalhar na embaixada da Somália, onde ficou escondida até os 18 anos. Apesar de conhecer casos de mulheres que perderam a vida por conta da circuncisão, ela acreditava que a violação era necessária, já que era um requisito para o casamento. Isso porque, em muitas regiões, inclusive na sua cidade natal, as mulheres não-circuncisadas não casam e são isoladas do convívio social. Foi na Inglaterra, em contato com outra cultura, que fez-lhe enxergar a prática como um crime.
Aos 18 anos, enquanto trabalhava arrumando as mesas de uma lanchonete, ela foi descoberta por Terence Donovan, famoso fotógrafo de moda. Em pouco tempo, ganhou projeção internacional estampando as capas de editorias de moda.
Em vez de reduzir a sua história ao discurso de uma menina que fugiu em meio ao deserto para não se casar aos 13 anos, em vez de falar sobre a pobreza, a guerra e todas as dificuldades que, infelizmente, alimentam os estereótipos da África, Waris decidiu expor uma experiência muito íntima, mas que é compartilhada por milhões de meninas. A sua esperança em transformar essa realidade foi traduzida no título do livro e filme: Flor do Deserto.
Filme para conscientizar
O filme dirigido por Sherry Hormann tem sido muito divulgado em vários países africanos, como Djibuti, Gana, Quênia, Nigéria e Etiópia, mas ainda é um tabu em sua terra natal.
Na Somália, o filme nem sequer foi mostrado por causa do choque que os mais tradicionais viam em sua causa. O país, majoritariamente muçulmano, é um dos lugares mais difíceis para abordar o tema. Com cerca de 10 milhões de habitantes, aproximadamente 60% da sua população é de nômades ou seminômades.
– Recebemos muitas mensagens de famílias locais, que nos disseram que o filme teve um grande impacto. Os maridos e pais, às vezes, nem sabiam quanto sofrimento causava a prática. Devido ao filme, algumas famílias decidiram abolir a circuncisão – conta Waris otimista.
A Anistia Internacional, as Nações Unidas e dezenas de organizações ao redor da África trabalham reforçando a luta da ativista que, em 2002, abriu a Fundação Waris Dirie, com sede em Viena. Em 2010, ela foi renomeada de “Fundação Flor do Deserto”. Desde 2003, já recebeu mais de 80.000 emails e participou de centenas de congressos, conferências e campanhas sobre o tema.
– A melhor forma de combater é com educação. Além disso, você precisa de leis rigorosas, caso contrário isso não vai parar. Infelizmente, os governos não estão fazendo o suficiente para proteger as meninas – desabafa a autora de “Desert Dawn”(2004), “Desert Children”(2005) e “Letter to my mother”(2010).
Avanços
A Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou no ano passado, por unanimidade, uma resolução que proíbe a prática da Mutilação Genital Feminina. Este ato significativo foi assinado pelos 194 Estados membros da ONU, a fim de intensificar os esforços globais.
A resolução FGM estimula os países a condenar todas as práticas nocivas que afetam as mulheres e as meninas, em particular as mutilações genitais femininas, e tomar todas as medidas necessárias, incluindo a aplicação da legislação,e recursos para proteger as vítimas.
No dia 6 de fevereiro foi assinalado o Dia Internacional de Tolerância Zero à Mutilação Genital Feminina. Segundo a ONU, 30 milhões de meninas correm o risco de sofrer mutilação genital na próxima década. O documento “A Mutilação Genital Feminina/Excisão: Uma visão estatística e exploração da dinâmica de mudança”, lançado no mês passado, aponta que há um conflito entre a opinião das pessoas e o peso da tradição, acentuado pela desinformação.
– Quando eu comecei a fazer campanha, ninguém sabia sobre a prática. Hoje, muitas pessoas sabem sobre essa tortura cruel… Não havia leis contra o crime; hoje, a maioria dos países proíbe a FGM e incentiva a conscientização – afirma Waris, lembrando que essa prática não tem relação com a religião, já que ela pode ser encontrada em grupos muçulmanos, cristãos e animistas.
Ela permanece quase universal em países como Somália, Guiné, Djibuti e Egito, com mais de 90% das mulheres e meninas entre 15 e 49 anos sendo mutiladas. Por outro lado, a prática tem diminuído em Benin, Libéria, Nigéria, Quênia, República Centro-Africana e na Tanzânia.
De acordo com a ONU, desde 2008, cerca de 10 mil comunidades, em 15 países, pararam com a mutilação feminina. Além disso, cerca de 1.775 comunidades em toda a África declararam publicamente seu compromisso de acabar com a mutilação feminina no ano passado.
– Em 2005, eu discursei na abertura da maior conferência sobre MGF na África. Após esse evento realizado em Nairóbi, 14 países africanos implementaram leis contra a MGF. Isso é um grande avanço, mas é preciso educar o seu povo também…
Waris recebeu muitos prêmios internacionais pelo seu trabalho como o “Prêmio Mundial da Mulher”, oferecido pelo presidente Mikhail Gorbachev, em 2004, e a Medalha de Ouro pela Defesa dos Direitos Humanos, oferecida pela presidência da Itália, em 2010. A sua história é inspiração e exemplo de um ato que não pode ter mais espaço no mundo.
– Estou muito feliz por ver a cada dia mais meninas e meninos se opondo a esse crime., por ver mais jovens engajados nessa causa. Eles estão conscientes da necessidade de fazer com que as leis não fiquem restritas a um pedaço de papel…
Para conhecer mais sobre a Fundação Flor do Deserto, visite aqui
Por dentro da África