Tunísia: Há exatamente quatro anos acendia a fagulha da revolução do Norte da África

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Marcha no Fórum Social Mundial, na Tunísia - Foto: Natalia da Luz
Marcha no Fórum Social Mundial, na Tunísia – Foto: Natalia da Luz

Natalia da Luz, Por dentro da África

(Artigo escrito em 2013, em comemoração aos três anos da Revolução na Tunísia)

Túnis, Tunísia – Há quatro anos a faísca sobre o corpo de Mohamed Bouazizi se alastrou pela Tunísia e pelos vizinhos do norte do continente, ultrapassando as fronteiras africanas. Em protesto contra a desigualdade e corrupção do governo ditatorial (que estava há 23 anos no poder), o tunisiano de 26 anos se tornou o primeiro mártir da onda de revoltas que depuseram tiranos como Ben Ali (Tunísia), Hosni Mubarak (Egito) e Muammar AL Gaddafi (Líbia).

– Eu desembarquei na Tunísia dois meses antes de Mohamed Bouazizi  atear fogo ao próprio corpo. A família do ditador extorquia setores civis e econômicos do país. Por isso, que a fuga do ex-presidente foi um grande alívio para a população. Houve muitos saques em todas as propriedades da família, e o país foi tomado por uma necessidade de mudança – disse, em entrevista exclusiva ao Por dentro da África, o então embaixador do Brasil na Tunísia, Luiz Antônio Fachini Gomes.

Desde às vésperas da revolução no país, o brasileiro pode observar que a ditadura do passado era cercada de espionagem, prisões arbitrárias, perseguição aos islamistas e pouca, bem pouca liberdade de imprensa.

Mohamed Bouazizi era um jovem vendedor de frutas que sustentava a família com cerca de US$ 100 por mês. No dia 17 de dezembro de 2010, após guardas tentarem suborná-lo, ele foi à sede do governo local (na cidade de Sidi Bouzidi) para pedir os seus produtos de volta. Ele jogou combustível sobre si mesmo e acendeu um fósforo. Bouazizi morreu 18 dias depois.

A Tunísia e a Revolução do Jasmim

Foto de Andre Kairo - Tunisia Limitada ao norte e a leste pelo Mar Mediterrâneo, o país de cerca de 10 milhões de habitantes possui fronteira ocidental com a Argélia e com a Líbia ao sudeste e tem quase 40% do território ocupado pelo deserto do Saara.

Colonizada pelos fenícios em 1000 a.C, a região onde hoje é a Tunísia foi um importante centro comercial do mar Mediterrâneo até a sua destruição pelos romanos em 146 a.C. Em 1574, a Tunísia foi incorporada ao Império Turco-Otomano até 1881, quando se tornou protetorado da França. A independência só chegou em 1956.

Em 1987, o primeiro-ministro Zine El Abidine Ben Ali assumiu o cargo de presidente. Na ocasião, ele revogou a presidência vitalícia e estabeleceu a liberdade partidária. Mesmo acusado de perseguir a oposição, Ben Ali e o seu partido venceram as eleições de 1994 e permaneceram no poder até janeiro de 2011, quando a sequência de protestos populares (iniciada com Bouazizi) e chamada de Revolução de Jasmim, fez 338 mortos e 2147 feridos, segundo dados do governo. Ali ganhava sempre as eleições porque só os seus partidarios podiam votar!

tunis mapEconomicamente, a Tunísia é considerada dependente da Europa. Cerca de 80% de suas relações comerciais eram com nações europeias. Após a revolução,  Fachini destaca que novas portas foram abertas, ligando a Tunísia aos Estados Unidos, países da Ásia e America Latina, por exemplo.

– Essa abertura é importante porque, nesses três anos de revolução, o nível de pobreza aumentou. Além da instabilidade já prevista, houve a crise europeia que, de certa forma, atingiu fortemente a Tunísia. Traçar novas rotas de negócios faz parte desse processo – afirmou Fachini que, antes da Tunísia, esteve como embaixador do Brasil na Guatemala, no Irã e como Cônsul-Geral em Sydney.

O turismo, principal atividade do país, foi diretamente comprometido pela revolução e pela instabilidade que ainda ronda o país.

Eleições de 2011

Dos países que viveram a primavera Árabe, a Tunísia foi a primeira a realizar eleições para a Assembleia Constituinte. No dia 23 de outubro de 2011, os tunisianos elegeram 217 membros da Assembleia responsável por aprovar uma nova Constituição (ainda em discussão) e designar um Governo que dirija o país até às próximas eleições gerais, ainda sem previsão.

-As eleições foram muito transparentes, acompanhadas por observadores nacionais e internacionais. Os partidos puderam se organizar e, a partir daí, foi formado um novo governo de transição com ativistas que erguiam e carregavam a bandeira da mudança – ressalta o embaixador.

Marcha no Fórum Social Mundial, na Tunísia - Foto: Natalia da Luz
Marcha no Fórum Social Mundial, na Tunísia – Foto: Natalia da Luz

Nesta eleição, o Ennahda (classificado como islâmico moderado) obteve 90 dos 217 assentos da Assembleia Constituinte. Com esses resultados, o partido islâmico, duramente reprimido pelo ex-ditador, passou a exercer (e certamente exercerá) forte influência na política do país.

Veja também: “A Primavera Árabe precisava acontecer”

-As eleições mostraram que a Tunísia não era tão ocidentalizada quanto parecia… Existia uma influência de países islâmicos do Golfo, que não percebíamos com nitidez, porque a maioria dos islamistas estava na prisão, na época de Ben Ali. Hoje,  o país passa por um momento no qual o Islã está se afirmando, e talvez haja correntes radicais mais ativas no seio do movimento religioso…

Fórum Social Mundial 

Dentre as muitas interpretações, o sentido de dignidade se apresenta sobre os pilares dos direitos humanos e da justiça. No Fórum Social Mundial de Túnis, na Tunísia, esse foi o mantra do encontro que reuniu milhares de organizações e mais de 50 mil pessoas em debates que atingem, principalmente, os países em desenvolvimento. A democracia, igualdade entre os sexos, liberdade de expressão, acesso ao próprio território são temas que regeram o fórum deste ano, organizado no norte da África.

O encontro aconteceu em um momento crucial para os movimentos sociais, que ganharam impulso após a queda de Ben Ali em 14 de janeiro de 2011. Um mês antes do fórum, outro jovem, Adel Khazri, de 27 anos, fez o mesmo chamando a atenção do mundo para as mudanças que ainda precisam ser realizadas na Tunísia.

– A vinda do Fórum foi de extrema importância para esse momento político porque ele é uma inspiração para a democracia e a liberdade. Há muitas ideias democráticas que foram trazidas para cá, e esse debate só aumenta a esperança da população.

Identidade no Pós-Revolução 

Foto de Andre Kairo - Tunisia À beira do Mediterrâneo, a Tunísia é um país de influência ocidental, considerado o mais liberal do norte da África comparado aos seus vizinhos Marrocos, Egito, Argélia e Líbia. Após a revolução, em uma sociedade que virou as costas para a repressão, as questões identitárias se tornaram urgentes.

– Existe um debate sobre a identidade nacional do país, tanto na Constituição antiga quanto no presente esboço. Há uma caracterização da Tunísia como um país muçulmano e árabe, algo que preocupa certos setores da sociedade – contaFachini, lembrando que  essa caracterização pode ficar prejudicada, caso o enfoque seja na religião.

Ele exemplifica essa questão com a Sharia (Lei Islâmica), que, para muitos, deveria ser a fonte de inspiração do direito e da Constituição. Além disso, Fachini destaca que tem havido aumento no índice de violência no país, com ataques a manifestações artísticas de influências ocidentais, com críticas aos movimentos leigos e ao excesso de liberalização.

Foto de Andre Kairo - Tunisia – A Constituição tem que ser para todos os tunisianos, não pode ser para alguns. Nesse processo, pensamos: Será que isso vai restringir os direitos humanos? Como ficará a influência dos países do Golfo, onde a posição da mulher é tão criticada? – pergunta o representante do Itamaraty, listando alguns dos temores da sociedade tunisiana. No último domingo, partidos políticos escolheram o ministro da Indústria, Mehdi Jomaa, para chefiar o governo ainda em crise.

Por outro lado, há mais protestos, manifestações e críticas abertas ao regime, à economia, à sociedade do que no período de Ben Ali, quando a imprensa era absolutamente controlada, e a polícia agia como guarda privada do ditador.

– Ações radicais, no entanto, podem afugentar o capital e os turistas. Vamos ver o que será da Tunísia nas próximas eleições porque ainda estamos em transição. Eu acredito que, com o passar do tempo, haja mais equilíbrio, pois, historicamente, o povo tunisiano está acostumado com múltiplas influências, responsáveis por uma grande variedade cultural do país.

Confira o vídeo abaixo