Protestos em Angola: “O regime usou todos os meios bélicos contra o povo”, diz ativista

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Protesto em Luanda - Foto: Maka Angola Natalia da Luz, Por dentro da África

Rio – Repressão à liberdade de imprensa e intimidação contra aqueles que se manifestam do lado oposto do governo fazem parte da rotina de Angola, país governando há 34 anos pelo presidente José Eduardo dos Santos. No último sábado, esse cenário levou angolanos às ruas de todo o país; apesar do protesto pacífico, estes foram violentamente reprimidos. Apenas em Luanda, capital do país, manifestantes afirmaram que quatro pessoas foram mortas (o governo confirmou apenas uma morte) e mais de 200 foram detidas.

– Fomos protestar contra as mortes mais recentes de ativistas, e o regime autoritário usou todos os meios bélicos contra a população. Parecia que estávamos em uma guerra… A polícia usou helicópteros da força aérea e substâncias tóxicas internacionalmente proibidas. Fizeram disparos com armas de fogo e, um dia antes, assassinaram um jovem que colava panfletos sobre a manifestação – disse, em entrevista exclusiva ao Por dentro da África, Domingos da Cruz, ativista e escritor de livros que abordam a corrupção e o autoritarismo do governo angolano.

Na madrugada de sábado, Manuel de Carvalho “Ganga”, dirigente da ala juvenil do partido da oposição Convergência Ampla de Salvação de Angola (CASA-CE), foi morto pela guarda presidencial, segundo denúncia do líder do partido e antigo dirigente da UNITA, Abel Chivukuvuku. A caminho da manifestação, o secretário-geral da CASA-CE, Lionel Gomes, foi detido por 18 horas, juntamente com outros membros da direção do seu partido.

Protesto em Luanda - Foto: Maka Angola – A polícia nos prendeu com o pretexto de que estávamos incitando a violência. Tudo porque estávamos colocando panfletos nas ruas em memória de Alves Kamulingue e Isaías Cassule – , explicou o deputado em entrevista ao Maka Angola. Alves Kamulingue e Isaías Cassule foram raptados em maio de 2012 por forças policiais e de segurança. Ativistas acreditam que os dois tenham sido torturados e executados.

No sábado, a reação por parte do governo já era esperada por Domingos, que se manifesta sobre a ausência de forças republicanas em seu país. Segundo o escritor, as forças “privadas” sempre atuam em defesa do presidente, em vez de proteger a população. A manifestação nacional fez vítimas em outras províncias, como em Benguela (a cerca de 500 km da capital), onde ativistas locais informaram duas mortes (o governo ainda não confirmou). No interior do país, as pessoas se mobilizaram, mas foram rapidamente neutralizadas. Domingos soube que, antes de começarem a marchar, a polícia já formava barreiras em seu caminho.

Manifestação em Angola – Estamos vivendo uma situação insustentável e, lamentavelmente, a comunidade internacional está ao lado do ditador… Temos que refletir e combater essa situação porque o problema do país já está identificado. Estamos copiando as manifestações do norte da África, mas o grau de repressão em Angola continua muito selvagem. O presidente chegou a um estado de irracionalidade tão grande que deixou tanques preparados para o embate contra a população – conta o ativista, que não foi atingido, mas teve que correr das bombas de gás lacrimogêneo.

José Eduardo dos Santos e seu governo de três décadas

Com o falecimento de Agostinho Neto, primeiro presidente de Angola, José Eduardo dos Santos foi eleito Presidente do MPLA em 20 de Setembro de 1979 e colocado, no dia seguinte, nos cargos de Presidente do MPLA – Partido do Trabalho, de Presidente da República Popular de Angola e comandante-em-chefe das FAPLA (Forças Armadas Populares de Libertação de Angola).  Irene da Silva Neto, filha do primeiro presidente de Angola, Agostinho Neto, teria acusado o sucessor do pai de “dirigir o país como Bokassa I”, segundo presidente da República Centro-Africana e imperador de 1966 a 1979.

O acelerado crescimento do PIB pouco se reflete na melhora da qualidade de vida da população. Na capital Luanda, a extravagância dos ricos contrasta com  a falta de educação,  água, luz e rede de esgoto.

José Eduardo dos Santos - foto: ONU – Somos um dos países mais corruptos do mundo, temos uma polícia que não trabalha para os interesses nacionais. Os interesses passam de geração para geração. Para o governo, combater a corrupção pressupõe combater a si mesmo. A corrupção angolana vai além das fronteiras. Tem influência na África Austral, Guiné Equatorial… Aqueles que deviam lutar não o fazem porque lucram com isso. Não acho que podem regenerar, a única solução é a própria força do povo –  afirma o mestre em Direitos Humanos e membro do Conselho de Governadores do MISA-Angola (Instituto de Comunicação da África Austral).

Corrupção

caso do Banco Nacional de Angola, com uma fraude de 160 milhões de dólares, é um dos casos de corrupção envolvendo o governo angolano, entre tantos outros . Após receber muitas remessas de dinheiro de Angola, o  Banco Espírito Santo de Londres fez a denúncia.

– A corrupção pode acontecer em qualquer lugar: quando os políticos colocam seus próprios interesses acima dos interesses do público, quando os oficiais exigem dinheiro e favores de cidadãos para os serviços que deveriam ser de graça. A corrupção não é apenas um envelope cheio de dinheiro –  diz o texto de apresentação do relatório da Transparência Internacional deste ano.

Segundo o órgão, de 176 países pesquisados, a Somália é a nação com o maior nível de corrupção. Logo em seguida (de mais corrupto para o menos corrupto), aparece Sudão, na 173ª posição; Chade e Burundi, na 165ª; Zimbábue e Guiné Equatorial, na 163ª; Líbia e República Democrática do Congo na 160ª; e Angola, também entre os últimos,  na 157ª colocação.

Liberdade de imprensa

Domingos da Cruz - Arquivo Pessoal Em agosto de 2009, após a publicação do artigo “Quando a guerra é necessária e urgente” no jornal Folha 8, a Direção Nacional de Investigação Criminal apresentou queixa contra o ativista e jornalista, acusando-o de ter incitado o povo à guerra. No texto, Domingos acusa o governo de ser autoritário, corrupto e insensível ao sofrimento do povo. Diante desse cenário, segundo o escritor, a guerra se faria necessária…

Em muitos lugares do mundo e, principalmente, no continente africano, o trabalho desses ativistas têm sido prejudicado pelos ditadores. Os detratores da democracia veem a imprensa independente, que não serve ao Estado, como uma grande ameaça. Amin (ex-ditador da Uganda), Taylor (ex-ditador da Libéria), Gaddafi (ex-ditador da Líbia), Mubarak (ex-ditador do Egito), Mubage (atual presidente do Zimbábue)… estão entre os muitos que mapearam e que ainda continuam investigando – com lupa – o trabalho desses profissionais.

Jornalista vai a julgamento após publicação de obra que denuncia corrupção 

– A dignidade humana é uma questão metafísica e não físico-químico-matemática. Como seria capaz de dizer que Eduardo dos Santos (presidente de Angola) é mais delinquente, quando comparado ao Theodor Obiang (presidente da Guiné Equatorial), se tanto um quanto outro promovem a negação da vida em massa, mesmo que com métodos assimétricos em algumas circunstâncias? – questiona o mestre em Direitos Humanos e membro do Conselho de Governadores do MISA-Angola (Instituto de Comunicação da África Austral).

Caso Rafael Marques

Além de Domingos, outros jornalistas e ativistas vêm sendo perseguidos em Angola. Um caso de grande repercussão internacional é de Rafael Marques, que, durante alguns meses, foi impedido de sair do seu próprio país. Em seu discurso, o ativista diz que “Angola é um país que existe, embora grande parte concorde que ainda não é uma nação. A democracia é uma farsa, o governo é uma farsa, as políticas internacionais para  Angola são também uma farsa” – afirma Marques em sua obra.

Mapa de AngolaEm abril deste ano, Marques foi interrogado no Departamento de Combate ao Crime Organizado, sob a acusação de difamação por conta do livro “Diamantes de Sangue: Tortura e Corrupção em Angola”, publicado em Portugal, em 2011. A obra documenta casos de homicídio, tortura, deslocamentos forçados e intimidação contra os habitantes das áreas de extração de diamantes, em Lundas.

Em 2000, ele foi condenado a seis meses de prisão e sentenciado a pagar uma indenização por difamação contra o presidente José Eduardo dos Santos, mas o Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas decidiu que o julgamento, em Angola, violara os direitos de Marques e condenou o governo a pagar-lhe uma indenização.

– Sinteticamente, podemos afirmar que há o controle de conteúdo e o controle tecnológico, onde se incluem papel e gráficas. O país tem somente uma rádio (Despertar) e um jornal (Folha 8) que escapam do controle. O jornalista e órgãos capazes de criticar o poder hoje ficam para história e classificados como heróis – informa Domingos.

Caso Nito Alves

Nito Alves, menor detido acusado de incitar a violência - Arquivo Pessoal Nito Alves, de 17 anos, foi detido entre o dia 12 de Setembro e 8 de Novembro, acusado de incentivar o repúdio ao presidente com camisas contra José Eduardo dos Santos. O caso do menor teve repercussão na imprensa internacional pelo fato de ser o “mais novo” preso político. Após inúmeras manifestações e petições públicas, ele foi liberado. Em maio deste ano, Emiliano Catumbela, 22 anos, foi preso sem acusação (libertado um mês depois), após uma vigília em homenagem aos desaparecidos de 27 de Maio de 2012.  A data foi escolhida para marcar simbolicamente o 27 de Maio de 1977, quando uma ação de oposicionistas ao regime do então Presidente Agostinho Neto foi violentamente reprimida, resultando na morte e desaparecimento de milhares de pessoas.

Futuro

– O debate político entre oposição e governo é enfraquecido também pela ausência de vozes. No Parlamento (Assembleia Nacional de Angola), há 45 deputados de todos os partidos de oposição contra 175 do governo, que controlam os meios de comunicação social e empresas. Do ponto de vista cultural, o governo controla até o tipo de música que você deve ouvir – desabafa o ativista.

Protesto em Luanda - Foto: Maka Angola As revoluções são um processo que precisam de amadurecimento e, aos poucos, a nova geração angolana parece tomar consciência da necessidade de se criar esse movimento de descontentamento, de luta por mudanças.

– Existe um alto grau de manipulação do ponto de vista midiático. Até mesmo aqueles que estão nas escolas não conseguem perceber a manipulação… Algumas pessoas atribuem a culpa da violência a quem foi à manifestação. Como se você, a vítima, fosse culpado pela sua miséria… Temos que manter a marcha para libertamos o país. Só com mais gente, o movimento poderá tomar força.

Por dentro da África