O Tribunal Penal Internacional e os “senhores da guerra” na África

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hrwNatalia da Luz, Por dentro da África

Rio – Após as feridas abertas em genocídios (como o de Ruanda, em 1994) contagiarem o planeta lançando um alerta de que era preciso punir os responsáveis pelas atrocidades que sangram o mundo, foi estabelecido, em 2002, um Tribunal Penal Internacional (TPI) permanente para julgar os crimes graves. Deste então, esse instrumento da Justiça vêm colocando no banco dos réus os “senhores da guerra” na África.

– O TPI é de grande importância para o estágio atual da humanidade. O grau de moralidade global é cada vez mais sensível à violação e consequente proteção da dignidade humana, da paz, da garantia dos direitos humanos como expressão do avanço civilizacional – conta, em entrevista ao Por dentro da África, o angolano Domingos da Cruz, pesquisador e autor de obras como “Direitos Humanos na África”.

A justificativa para os africanos se sentarem no banco dos réus é simples. Desde a criação do TPI, em Haia, na Holanda, as maiores violações contra os direitos humanos em países-membros têm ocorrido na África.

Gravíssimos casos de abusos contra a dignidade estão presentes em outras nações como Palestina, Iraque, Síria… Só que, nesses casos, o TPI não pode agir porque esses Estados não fazem parte do Estatuto de Roma, que criou o TPI.

George W. Bush - Foto: State.gov

Domingos ressalta que seria absurdo afirmar que indivíduos como George W. Bush não cometeram crimes contra a Humanidade, mas enquanto os EUA não fizerem parte do Estatuto, o TPI nada poderá fazer contra tais suspeitos.

– Bush não pode ser acusado pelo TPI porque ninguém fica sob jurisdição desta instituição enquanto o seu país não ratifica ou adere ao Estatuto de Roma que institui o TPI – explica o também filósofo, relembrando a tragédia no Iraque, onde mais de 120 mil civis perderam suas vidas nos últimos 10 anos.

São julgados pelo TPI apenas os seus Estados-membros que tenham cometido crimes de guerra, que inclui a maior parte das violações graves do Direito Internacional Humanitário mencionadas nas Convenções de Genebra como o genocídio (praticado com intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso).

– Filosoficamente, o que anima a necessidade e existência de um tribunal ao estilo do TPI é o princípio de que a dignidade humilhada em algum lugar é a humilhação da raça humana em todos os lugares.

Thomas Lubanga Dyilo - Foto: linktv.orgDomingos relembra que, em 2012, o congolês Thomas Lubanga Dyilo foi condenado pelo TPI. O presidente fundador da União dos Patriotas Congoleses foi o primeiro réu condenado pelo recrutamento de crianças para lutar na guerra civil de Ituri, na República Democrática do Congo, entre 2002 e 2003. Tal sentença, de 14 anos de prisão, gerou reações, inclusive no Brasil, com críticas e insatisfação de que os réus no TPI eram apenas africanos…

Há hoje, segundo relatórios do TPI, 18 casos em oito países africanos (República Democrática do Congo, Uganda, Quênia, Costa do Marfim, República Centro-Africana, Mali, Sudão e Líbia) que foram levados ao tribunal. De acordo com o Estatuto de Roma, o Procurador pode iniciar uma investigação com base em uma referência de qualquer Estado-membro ou do Conselho de Segurança das Nações Unidas.

Atualmente, quatro Estados-membros (Uganda, República Democrática do Congo, República Centro-Africano e Mali) têm reportado situações que ocorrem em seus territórios para o Tribunal. Depois de uma análise minuciosa das informações e denúncias do Conselho de Segurança sobre Sudão e Líbia (dois Estados não-membros), o TPI incluiu os dois em seu relatório. Outro caso de país não-membro investigado é o da Costa do Marfim, que, em 2010, aceitou a jurisdição do Estatuto e, que por isso, pode levar seus criminosos à Corte.

– A Líbia e Sudão não são membros do Estatuto, mas isso não os confere impunidade. Ser membro do Estatuto dá ao Estado a exigência e obrigatoriedade de colaborar, mas não subscrevendo o Estatuto. O processo pode ser aberto com as três possibilidades: Iniciativa do Procurador, Conselho de Segurança e a pedido de um Estado parte do Estatuto.

Bandeira da Líbia nas ruas de Trípoli, Líbia - Foto: Abdusalam Como o funcionamento do TPI permite que as denúncias sejam feitas por países não-membros, uma pergunta relevante intriga os que clamam por justiça… Por que os Estados Unidos não foram investigados após os crimes de guerra cometidos no Iraque? Por que Israel ainda não foi investigado pelos ataques aos civis palestinos? Domingos esclarece que, no caso dos EUA, sabendo que podem ser alvo do TPI, assinaram muitos acordos de impunidade.

– No caso do Iraque e Afeganistão os acordos de impunidade dos EUA o protegem. Olhando a partir de um argumento subjetivo, eu diria que como o TPI começou a funcionar no final de 2002 e tais guerras começaram nesta época, talvez isso tenha contribuido para a incapacidade do TPI agir. Mera subjetividade!

Urgência para Gaza

Quanto à Palestina, Domingos afirma que existem muitas denúncias da esfera pública global e que já é tempo do tribunal agir.

– Não posso deixar de defender e partilhar o mesmo sentimento de outros pesquisadores de que até ao momento existe uma urgência do tribunal em responsabilizar as atrocidades protagonizadas por Israel em Gaza, mas tal fato dependerá da anuência do Conselho de Segurança da ONU, o que parece impossível, uma vez que Israel não é parte do Tratado de Roma e é aliado dos EUA…

Tribunais Penais Específicos 

Lista de acusados de crimes de guerra pelo Tribunal Penal para RuandaHá tribunais para crimes/criminosos específicos, como o de Ruanda, ex-Iugoslávia e Serra Leoa. Neste caso, não há qualquer intervenção do Tribunal Penal Internacional (TPI) com sede em Haia, mas sim do tribunal específico. Para o caso de Ruanda, cabe ao Tribunal Penal Internacional para Ruanda (TPIR) agir conforme as atribuições que seu estatuto específico estabelece.  Tal procedimento é análogo ao Tribunal Especial para a Serra Leoa (SCSL).

– As cortes específicas mais recentes como de Ruanda, Ex-Iugoslávia e Serra Leoa foram criadas em situações de emergências, de negação sistemática da dignidade humana. Penso que essas experiências proporcionaram a criação de uma instituição judicial de dimensão mundial, o TPI.

O general servo Dragomir Milosevic, acusado de comandar o cerco à cidade de Sarajevo durante a Guerra da Bósnia (1992-1995), foi julgado pelo Tribunal para a ex-Iugoslávia. Milosevic – que não tem parentesco com o ex-presidente da Iugoslávia Slobodan Milosevic – foi condenado a 33 anos de prisão, em 2007.

A prisão de Bashir e o genocídio de Darfur

Responsabilizado pelo genocídio de Darfur, no Sudão, que provocou a morte de mais de 400 mil pessoas e dois milhões de refugiados nos últimos 10 anos, Omar al-Bashir, presidente do país, teve o seu mandado de prisão expedido pelo TPI, mas a União Africana foi contra. Para Domingos, o impasse se deve às contradições e posições divergentes dentro da própria entidade.

– Só para se ter uma ideia, em relação ao projeto de integração global do continente que visa criar os Estados Unidos de África, ao estilo da União Europeia, existem três correntes opostas: gradualista, afro-pessimista e afro-otismita. Estas correntes se manifestam de maneira mais ou menos similar em relação ao TPI na África. Em 2010, alguns Estados propuseram a saída do Estatuto de toda África em bloco, mas houve Estados como Botsuana, Namíbia e Cabo Verde que se posicionaram contra tal desvinculação.

O presidente do Sudão Omar al-Bashir - Foto: ONU Domingos destaca que mais de 30 países do continente aderiram ao Estatuto de Roma, mas al-Bashir continua transitando por alguns países e não é capturado, apesar do mandado de captura que pesa sobre ele.

– Representantes de países não-democráticos pretendem se manter à margem da ética e da justiça global para agirem impunemente. Mas isso só demonstra que o TPI tenta desempenhar o seu papel. Isto é clara manifestação de medo daqueles que tentam bloquear as atividades da Corte.

Para o escritor e mestre em Direitos Humanos, isso ocorre porque muitos Estados economicamente influentes do continente pagam as cotas de alguns Estados membros da União Africana (UA), colocando-os reféns da manipulação diplomática africana como no caso da Líbia, que na época de Muammar al-Gaddafi financiava o Orçamento Geral do Estado de Chade e suas cotas na UA.

Recusa de pedido para uma representação na África 

Soldados na República Democrática do Congo - ONUEm 2010, a União Africana recusou o pedido de uma representação do Tribunal em Adis Abeba, na Etiópia. A justificativa era de que o tribunal era muito feroz com o continente. Em maio, o primeiro-ministro etíope Hailemariam Desalegn disse que o TPI fazia “uma espécie de caça racial” ao julgar apenas africanos.

Para Domingos, tal postura demonstra contradição de muitos chefes de Estado porque subscreveram o tratado que cria o TPI e, agora, se manifestam contra.

– Muitos da antiga geração da luta anti-colonial pensam que um presidente ou qualquer figura com cargo estatal não pode ser responsabilizado criminalmente. Certamente, acreditam que a nova geração não tem direito a sonhar, a construir novas utopias para o continente. Mas isso está mudando com a força da cidadania, com a capacidade vibrante da sociedade civil africana, majoritariamente jovem.

Veja também: Manipulações e Inverdades de A.Luvualu sobre o TPI

Bloqueios e avanços 

Darfur - Foto: All Africa - Mia Farrow

Apesar de todos os bloqueios, Domingos acredita que existam sinais claros de avanços no continente. Entretanto, um dos seus receios sobre o TPI (que possui 15 Juízes, sendo seis africanos) é de que alguns Estados assinem acordos de impunidade para que seus cidadãos criminosos e bens ilicitamente adquiridos sejam protegidos, dificultando ainda mais as ações do TPI.

– A Corte está enfrentando muitos obstáculos,  principalmente, quanto à falta de cooperação por parte dos Estados-membros no sentido de entregarem os presumíveis delinquentes. A visão progressista só triunfará quando as condições históricas forem favoráveis ao nascimento de uma vontade coletiva de implementação do império da lei e do direito.

Por dentro da África